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Brasil, vanguarda mundial da resistência à extrema direita?

Hubble 43, Manoel Veiga

Passados seis meses de governo Lula, o Brasil pode ser, e deve querer ser, o protagonista mundial na luta contra a extrema direita internacional. Ao passo que Donald Trump derruba uma por uma as acusações criminais que sofre nos Estados Unidos, apelidando-as jocosamente de “caça às bruxas” dos democratas, que Erdogan bate seus adversários pela terceira vez nas presidenciais da Turquia, que Netanyahu coordena uma coalizão reacionária para virar do avesso o estado de direito em Israel, os poderes públicos no Brasil tornaram Jair Bolsonaro inelegível, cassaram o mandato do ex-promotor lava-jatista Deltan Dallagnol, estão na iminência de mandar o ex-juiz e senador Sérgio Moro de volta para casa e consideram endurecer penas a crimes contra a democracia. Se o pulso ainda pulsa para a direita golpista na arena mundial, no Brasil a relação de forças está mudando.

Cabe então perguntar: quais as linhas de ação dessa agenda oficiosa, quais suas condições, possibilidades e possíveis consequências?

Um dos atores de peso do poder público contra o bolsonarismo é a elite do judiciário, a mesma que anos atrás quebrou a democracia do país ao meio. Tudo indica que uma parte dos togados, embora rentista e extrativista e obscenamente remunerada, sentiu o baque do anti-establishment bolsonarista, levantando-se, como um só corpo, contra aquilo que a ameaçava. Exemplar aí é o julgamento da inelegibilidade de Bolsonaro no Tribunal Superior Eleitoral.

Ali se viu um realinhamento entre magistrados, mídia e opinião pública, não mais no campo lava-jatista, mas na reação a Bolsonaro. Transmitido ao vivo na TV, cada voto pela inelegibilidade despertava nos comentaristas comemorações como em final de Copa do Mundo. Quando o placar final lacrou um acachapante 5×2, as redes sociais explodiram em êxtase coletivo. Mais uma vez, clima de Copa.

Outro pormenor. Em seu voto, a ministra Carmem Lúcia pedia a seus pares que não evocassem a “minuta do golpe” nem fatos posteriores ao motivo original da ação: desvio de finalidade na reunião com embaixadores de diferentes países que Bolsonaro realizou no Palácio do Planalto a fim de lançar suspeita de fraude sobre as urnas eletrônicas na iminente eleição de 2022. Havia ali uma filigrana jurídica importante. Lúcia queria evitar contestação da decisão do TSE no STF. Países como Estados Unidos e Turquia, que não possuem TSE, determinam questões de elegibilidade na Suprema Corte, onde as decisões são polarizadas, comoventes e politicamente delicadas. Contar com uma justiça eleitoral própria, onde as sentenças se revestem de roupagem técnica, facilitou a articulação de ações antibolsonaristas no interior do Estado. E, no caso específico da ação movida pelo PDT por desvio de finalidade, o TSE estava fazendo o que o judiciário brasileiro sabe fazer melhor: se defender. Tratava-se de barrar, mais uma vez, todas as acusações de Bolsonaro contra o bom funcionamento do sistema eleitoral, das urnas eletrônicas e da lisura do processo, condição para o bom funcionamento do estado democrático de direito.

As outras linhas de ação dos poderes públicos caem dentro do raio de ação do governo propriamente dito.

Uma delas é a reconstrução do modelo brasileiro de governabilidade política. De 2013 a 2020, o Congresso se valeu das tempestades das mobilizações de rua e do lava-jatismo para tomar de assalto o comando sobre as emendas parlamentares, esquema que foi às alturas com o orçamento secreto. O controle dos gastos se tornou a base de um sistema de apoio partidário ao bolsonarismo materializado na coligação entre PL, Republicanos e Progressistas nas eleições de 2022. Lula tenta hoje desarticular o esquema trazendo um ou mais desses partidos para dentro do primeiro escalão do governo. As investidas do Executivo complementam as decisões do TSE: enquanto estas neutralizam Bolsonaro como força de oposição, aquelas afastam a oposição do bolsonarismo.

Outra frente de trabalho do governo mira aquele ninho de piratas do bolsonarismo que é o agronegócio, no momento o alfa e o ômega do PIB brasileiro. Dados do Censo de 2022 servem de epitáfio àquele Brasil desenvolvimentista da segunda metade do século XX. As metrópoles industriais deixaram de ser motores do crescimento; as cidades médias é que agora puxam nossos índices, e a maioria delas está no nosso continental cinturão agropecuário-extrativista. O setor manda e desmanda hoje em Brasília: mais de 300 dos 513 deputados são da bancada ruralista. Quem viu o Plano Safra, maior que o maior subsídio agrícola de Bolsonaro, entendeu o que quer o governo: trazer uma parte dos nossos cowboys do século XXI para a disciplina do jogo democrático desbolsonarizado.

Tudo dando certo, o cenário é promissor. O Brasil cumpriria um importante papel de vanguarda no combate ao extremismo político de direita.

Hubble 39, Manoel Veiga

Ainda mais importante, porém, é notar que esse sucesso também pode cobrar seu preço. Com a adesão dos partidos reacionários e do agronegócio ao governo, a oposição não desaparecerá; ao contrário, atuará de dentro do seu novo corpo para atingir seus velhos fins. Um deles pode ser até a construção de um candidato reacionário despido da bestialogia bolsonarista e palatável para a direita “que sabe usar os talheres”. Um alerta feito pelo próprio ministro Fernando Haddad em entrevista recente à Folha de S. Paulo.

Há ainda outro risco, mais conceitual porém não menor. A ênfase na desbolsonarização pode levar o atual governo a se contentar com uma defesa formalista e mecânica da coalizão democrática como um fim em si mesmo, esvaziando a democracia de conteúdo social e energia transformadora e chegando ao final do primeiro mandato sendo mais uma vez obrigado a mobilizar um sentimento anti-bolsonarista para dar continuidade ao seu trabalho. Se, na prática, a desbolsonarização estreitar as opções políticas para a justiça social, a livre escolha do voto, como diz Jacques Rancière, tende a se tornar uma “ausência total de escolhas”.