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Modernismo: produção, destruição

Porque eu continuarei a chamar guerra a toda esta época embaralhada de inéditos valores e clangorosas ofensivas que nos legou o outro lado do Atlântico com as primeiras bombardas heróicas da tremenda conflagração européia.

— Oswald de Andrade, “A guisa de prefácio”, Memórias sentimentais de João Miramar (1924)

Um período de construção criadora sucede agora às lutas da época de destruição revolucionária.

— Paulo Prado, Poesia pau-brasil (1924)

Suspensivo, Daniela Serna

Em artigo recente para esta Revista Rosa, “A carta perdida: a Semana, sua transmissão e seus extravios”, Eduardo Sterzi destacava, na leitura consolidada da Semana, a indissociabilidade entre a lacuna e a sua fortuna, especulando sobre a talvez mais proveitosa lição a se retirar da presença dos ausentes e a ausência dos presentes, esforçando-nos por compreender as razões e, em particular, os efeitos, de ambas. Recontar hoje a história da Semana, dizia Sterzi, implica empenhar-se em ler “cartas perdidas”, não apenas na esperança de uma possível reconstituição do jogo, mas confiando na potência extravagante da perda, como instância reconfiguradora daquele cenário. Por isso gostaria de deitar os olhos sobre uma questão ausente à Semana (a guerra), que nos fornece, entretanto, poderosa iluminação para entendermos o contexto atual, isto é, como se processou o moderno no último século.

Em 1919, Lima Barreto, cuja morte também completa cem anos em 1922, observava, numa crônica, que cada vez que as nações enfrentadas na Grande Guerra prorrogavam o armistício, aquelas que se diziam vencedoras mais exigiam da Alemanha; e essas exigências, ditadas, como diz em outra crônica, pela “Santa Aliança da finança e do capitalismo”,1 eram destinadas a aniquilá-la e a favorecer as duas principais potências europeias, a Inglaterra e a França.

A monstruosa guerra europeia que durou quatro anos, na qual se inutilizaram cerca de dez milhões de homens, que destruiu cidades, vilas, monumentos inestimáveis, bibliotecas, recordações do passado que as anteriores guerras tinham poupado, não sabe ela mesmo como acabar. Quando começou, parecia a todos os simplórios, mais ou menos ideólogos como eu, que bastava a anulação do brutal e estúpido poderio militar alemão para que os povos vencedores, cheios de boa-fé e sinceridade, resolvessem rapidamente de vez, logo após a vitória, as cláusulas da paz. (…) Veio a vitória ou cousa parecida; a Alemanha ficou aniquilada militarmente — por que então não se fez a paz? É que a guerra não conseguiu modificar a mentalidade dos dirigentes e dos seus imediatos clientes. (…)

A guerra não resolveu nada; ela faliu como processo para solucionar questões entre Estados. A resolução dessas questões só poderá ser obtida pela eliminação desses pequenos Estados…2

É evidente que está aí a gênese da Segunda Guerra Mundial, vinte anos distante. Mas, já no início da primeira, José Ingenieros, lido e reivindicado por Mário de Andrade em A escrava que não é Isaura, reconheceu a guerra como “o suicídio dos bárbaros”, processo em que a civilização feudal, dominante nas nações bárbaras da Europa, imolava-se, atirada ao abismo bélico. Durante séculos, a partir da Renascença, o insensato oprimiu o sábio; o parasita o produtor e o funcionário o homem livre. Agora, porém, o horizonte apresentava-se auspicioso para países novos como o Brasil, empenhados na construção de pátrias culturais, que deveriam, a rigor, rezar para ser definitiva a catástrofe. Oswald de Andrade reconheceu o processo em depoimento sobre o modernismo para a revista Anhembi (1954), argumentando que não só a importação dos países em confronto, habituais fornecedores de manufaturas, declina e mesmo se interrompe, em muitos casos, mas a forte queda do câmbio reduz também consideravelmente a concorrência estrangeira. Não obstante, os resultados benéficos dessa enorme crise histórica dependiam, em última análise, da intensidade com que se definissem, em cada povo, as aspirações rupturistas. E essa consciência só podia formar-se em uma parte da sociedade, nos jovens, nos inovadores, nos oprimidos, pois eles eram a minoria pensante, os únicos capazes de compreenderem o porvir.3

Victor Chklovski, analisando a “Nuvem de calças”, o poema de Maiakóvski, também falava, em 1917, de um suicídio da cultura europeia, cujo objetivo era dar a sensação das coisas, enquanto visão, e não mais como reconhecimento racional, ideia que reencontramos em Georg Simmel, quando, em “A crise na cultura” (1917), menciona, em função da guerra, o retardo no aperfeiçoamento das pessoas, em relação ao das coisas. Constata-se, igualmente, em Paul Valéry, cuja compreensão do caráter mortal da civilização ocidental se lê no começo de La Crise de l’Esprit (1919). Monteiro Lobato nos daria, também em 1919, uma leitura local do problemático processo.

Durante a guerra houve pelo mundo — e aqui como reflexo inevitável — um torneio literário entre Cultura e Civilização. Nihil novum… Não passava de reflorescência dos velhos temas escolares, obrigatórios entre meninos que prometem, associados em grêmios literários: Qual o maior, César ou Alexandre? Qual mais forte, a Pena ou a Espada?

Nesta disputa entre cultura e civilização, graças ao apoio solerte de Havas, vencia sempre esta. Cultura não passava de mero aparelhamento material, sem sentimento nem alma. Civilização era uma coisa assim, assim … (Aqui intervinha a mão crispada como garra, em gestos que arredondam a ideia no ar).

A Cultura matava mulheres e crianças, bombardeando cidades abertas. A Cultura não respeitava os tratados. A Cultura pilhava. Era forçoso, pois, que a formidável representante da Cultura, — a Alemanha, fosse esmagada de vez, para que o mundo se gozasse ab eterno das delícias inenarráveis da Civilização.

E arrematava o texto dizendo que “no torneio entre Cultura e Civilização há de vencer sempre aquele que tiver a seu lado as agências telegráficas e o fiel da balança no mercado monetário”.4 A conclusão era completamente paradoxal: as nações conflagradas e, notadamente, os impérios hegemônicos, eram responsáveis pela persistência do feudalismo. Mas, considerando que todos os países implicados eram claramente capitalistas, esses críticos agudos eram incapazes, contudo, de concluir que a autêntica barbárie residisse no próprio capitalismo, razão pela qual preferiam atribuí-la a uma qualquer exterioridade de atraso. Sob o ponto de vista da civilização como progresso, era impossível, à maneira de Walter Benjamin, ver a barbárie no cerne da cultura.

Qual é a inovação trazida pela Grande Guerra e que, no Brasil, se consolida a partir de 1922? Criar uma megamáquina de produção, integrando o Estado, a economia, a sociedade, a ciência e a técnica. O Estado hipostasia, aos poucos, o poder executivo de gestão, em detrimento do legislativo, cada vez mais esvaziado. Ao judiciário cabe então consolidar apenas práticas aceitas e reiteradas, com o intuito de gerir a emergência. A economia concentra-se em monopólios. A sociedade é orientada à produção e ao consumo, e, como atesta a pandemia, mesmo à revelia de sua própria sobrevivência. A inovação científica e técnica, sob o controle direto do Estado, experimenta uma firme aceleração, inseparável, no caso das potências, do horizonte bélico, mas o General Intellect em seu conjunto obedece à guerra e a uma produtividade voltadas para a destruição. Não apenas o objeto de cultura é agora um objeto de barbárie: todo aumento da produção acarreta, paralelamente, um aumento da capacidade de destruição, como intui Ingenieros na resposta que lhe envia a Henri Bergson, a respeito da situação da ciência e a técnica latino-americanas em 1923.5

A propósito, na viagem do turista aprendiz Mário de Andrade, lá por 1927-8, há uma célebre página sobre a vitória-régia (a flor do Império Britânico: quando Robert Hermann Schomburgk levou a Londres as primeiras sementes, os ingleses homenagearam com elas a Rainha Vitória).

Feito bolas de caucho, engruvinhadas, espinhentas as folhas novas chofram do espelho imóvel, porém as adultas mais sábias, abrindo a placa redonda, se apoiam n’água e escondem nela a malvadeza dos espinhos. Tempo chegado, o botão chofra também fora d’água. É um ouriço espinhento em que nem inseto pousa. E assim cresce e arredonda, esperando a manhã de ser flor. Afinal numa arraiada o botão da vitória-régia arreganha os espinhos, se fende e a flor enorme principia branquejando a calma da lagoa. Pétalas pétalas vão se libertando brancas brancas em porção, em pouco tempo matinal a flor enorme abre um mundo de pétalas pétalas brancas, pétalas brancas e odora os ares indolentes. Um cheiro encantado leviano balança, um cheiro chamando, que deve inebriar sentido forte. Pois reme e pegue a flor. Logo as sépalas espinhentas mordem raivosas e o sangue escorre em vossa mão. O caule também de espinhos ninguém poderá pegar, carece cortá-lo e enquanto a flor boia n’água, levantá-la pelas pétalas puras, mas já estragando um bocado. Então, despoje o caule dos espinhos e cheire, cômodo, a flor. Mas aquele aroma suavíssimo, que encantava bem, de longe, não sendo forte de perto, é evasivo e dá náuseas, cheiro ruim…6

É o tópico de Guido Gozzano e de Baudelaire, o castigador de si próprio, o Heautontimoroumenos, em que o belo moderno, se bem analisado, carrega em si próprio o abjeto, assunto que, sem o tratamento roseano do diário da viagem amazônica, em registro jornalístico (“Flor nacional”, na coluna Táxi do Diário Nacional, 7 jan. 1930), Mário rebaixaria a uma discussão sobre a flor como “alegoria nacional”, que é, por sinal, a tese de Fredric Jameson para a literatura do Terceiro Mundo. O texto de Andrade, além do mais, se lê em sintonia com as fotos de Karl Blossfeldt, que tanto geraram outro texto, não menos célebre, de Georges Bataille, sobre a linguagem das flores, quanto a ideia de que só a fotografia inspira o inconsciente ótico, de Walter Benjamin.7 Estamos, em suma, em plena confiança modernista de magia e técnica. Mas, passados trinta anos, Carlos Drummond de Andrade vê outra flor.

A bomba
é uma flor de pânico apavorando os floricultores
A bomba
é o produto quintessente de um laboratório falido
A bomba
é estúpida é ferotriste é cheia de rocamboles
A bomba
é grotesca de tão metuenda e coça a perna
A bomba
dorme no domingo até que os morcegos esvoacem
A bomba
não tem preço não tem lugar não tem domicílio

A destruição, agora, “está principalmente onde não está”, “multiplica-se em ações ao portador e portadores sem ação” e “dobra todas as línguas à sua turva sintaxe”.8 Portanto, a equivalência entre produção e destruição (e não mais a destruição apaziguada pela disciplinada construção do moderno, como sustentava Paulo Prado, no prefácio à poesia pau-Brasil) emerge, no marco da “paz” do pós-guerra, através da Guerra Fria do Primeiro Mundo que, no Terceiro, porém, será de incontáveis interferências no processo democrático, como em 1964, até se disseminar como a “guerra civil mundial”, anunciada por Hannah Arendt e Carl Schmitt (1961) e analisada por Giorgio Agamben, não só em Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I (1995), mas, fundamentalmente, em Stasis: a guerra como paradigma político (2015), onde se traça um limiar de indiferenciação entre o interno e o externo, o político e o impolítico, sendo a guerra civil a passagem pela qual o impolítico se politiza e o político torna-se econômico. “Esta história acontece em estado de emergência e de calamidade pública”, diz a menina de Chechelnyk Clarice Lispector em A hora da estrela (1977). Daí que os indivíduos, ao fabricarem a catástrofe, sejam, alternativamente, cúmplices da destruição e vítimas da exploração. Não só já não há fora, senão que desaparece a reserva. O capitalismo globalizado torna irreversível a devastação que, durante o pós-guerra, era simples aceleração. Nessa conjuntura, em vez de cosmopolitismos, não importa que sejam de abonados Oswaldos ou de pobres Silvianos, consolidam-se agora lógicas identitárias, binaristas, uma vez que o capital está abrigado sob as asas do Estado, construído a partir da identidade: nacionalismo, racismo, sexismo. Nada pode nos surpreender e diríamos que, tanto a atual histeria anti-Rússia, quanto a política do ódio ou do cancelamento, foram longamente preparadas por essa destruição simbólica da subjetividade, que se identifica com a guerra como única higiene do mundo.

O estado de emergência e de calamidade pública é o novo normal da produção-destruição que dura o mesmo tanto que a Belle Époque de uma vitória-régia. Após brevíssimas etapas de euforia, como a esfuziante fase heroica modernista, ou a globalização rampante, após a queda do muro, retornam a guerra e o fascismo como alternativas às anteriores contradições. Em vez de prosperidade coletiva, temos absurda concentração oligopólica, aliada à devastação financeira e a uma luta à morte pelo acesso a recursos básicos, pagas, indiscriminadamente, por ativos e inativos na conflagração em pauta. A identidade entre produção e destruição torna, assim, inoperante a oposição entre forças produtivas e relações de produção, pela simples razão de que as forças produtivas são, simultaneamente, forças destrutivas. Muito embora uma destruição apocalíptica do conjunto não possa (não queira) ser pensada, resta então apenas o papel, o documento avulso, e esse papel se torna ele mesmo o fim da história. Contudo, o papel, sendo igual em toda parte, ou seja, ilimitadamente divisível, desfaz o arquivo, pulverizado em miríades de escritos individuais. Mas aí se todo papel pode desaparecer, então desaparece também o infinito espaço de signos do alto modernismo.

Em outras palavras, o otimismo da modernidade conviveu com o pessimismo emancipatório, mas, se a denúncia do progresso técnico foi, por muito tempo, um privilégio “de direita”, enquanto o progresso, para a “esquerda”, significava a libertação do homem do poder da natureza e da tradição, a situação contemporânea inverte os fluxos. Na “Mensagem ao antropófago desconhecido” lançada após a Segunda Grande Guerra, Oswald de Andrade dizia que o ser é a “Devoração pura e eterna”, quando o homem, de volta das viagens ao país do Absoluto e do Tabu, trajeto que vai de Platão a Hegel, isto é, quando dominasse a técnica e a socialização, ele plantaria a bandeira angustiada de Agostinho, de Pascal, de Nietzsche e de Chestov. Durante a Semana, Oswald leu fragmentos de Os condenados no Municipal. Não em vão, Tristão de Athayde reconheceu neles o espectro de Tchekhov, Kouprine ou Búnin. Boris Groys, por sua vez, nos explica, em sua Introdução à antifilosofia, que, no pensamento russo do período simbolista, o impulso dionisíaco de Nietzsche se fundiu com a ideia de uma história da salvação eslavófila, que deveria concretizar a unidade da humanidade na liberdade (sobornost), e, com isso, aportar sabedoria (sophia) ao Ocidente. O dionisíaco transformou-se então em um código que expressava um ideal, uma esperança. Associava-se a essa concepção a ideia de uma Rússia futura, que superaria a cultura ocidental e realizaria a reconstrução de todo o mundo.

Os dias do centenário modernista nos encontram no recuo dessa onda.