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A carta perdida: a Semana, sua transmissão e seus extravios1

Entrevista com Tarsila do Amaral em 1972.

Tarsila do Amaral, numa breve entrevista concedida a uma equipe de televisão em 1972, quando chegava de cadeira de rodas à exposição que comemorou os cinquenta anos da Semana de Arte Moderna no Masp, relembra que, como estava em Paris em 1922, recebeu notícias do evento por meio de uma carta de Anita Malfatti ― carta que, como ela acrescenta de imediato, depois se perdeu. Podemos ver nesse episódio da perda da carta algo como uma alegoria da própria Semana: afinal, atualmente, a Semana ― nesta fórmula sintética um tanto reificada e hipostasiada (isto é, espetacular) que o tempo lapidou, com a elipse do qualificativo “de Arte Moderna” ― designa não apenas o evento que ocorreu nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922, mas a relação entre ele e a sua transmissão ao longo dos anos posteriores, uma transmissão que, como a alegórica carta perdida, é a um só tempo notícia e extravio, memória e esquecimento, desejo de conhecimento e contingência do não saber, construção e ruína. Não surpreende, portanto, que a própria Tarsila, nesta mesma ocasião em que conta não ter estado presente no evento, seja saudada pelo seu entrevistador ― sem que nem ela nem ele assinalem o paradoxo ― como “musa inspiradora de 22” e “uma das pessoas mais importantes, uma das grandes personalidades da Semana de 22”. Numa outra entrevista realizada por ocasião do cinquentenário da Semana, concedida a Leo Gilson Ribeiro e publicada na revista Veja, Tarsila também relembra o episódio da carta, acrescentando: “Embora eu estivesse na Europa, eu acho que participei da Semana de 22 pela carta que a Anita Malfatti me mandou, contando tudo, com todas as minúcias”.2 Ou seja, para a própria Tarsila, a notícia do evento ― sua transmissão no tempo e no espaço ― teve o dom de alterá-lo a posteriori, conferindo presença a quem lá não estava.

Podemos, por respeito à simetria, concluir que, se isso é plausível,3 talvez o contrário igualmente tenha se dado ― isto é, a um olhar retrospectivo, alguns dos que estavam presentes, e muitas vezes com destaque, foram se tornando, de pouco em pouco, ausentes. Ou, no caso dos protagonistas evidentes e inegáveis ― um Mário, um Oswald, uma Anita, um Di, um Villa-Lobos ―, se não eles, suas obras é que sofreram, em alguma medida, esse lapso de transmissão: quando recontamos a história da Semana, tendemos a salientar nela aspectos que, muitas vezes, dizem respeito sobretudo a obras que seus autores só produziriam e publicariam depois, ao mesmo tempo que não damos a devida atenção às obras efetivamente ali apresentadas. O Macunaíma e o “Manifesto antropófago”, as Bachianas brasileiras e, para não perdermos de vista a presença in absentia de Tarsila, o Abaporu são bem posteriores à Semana ― e, quando surgiram, eram mesmo antitéticos, em certa medida, com relação ao que esteve em questão no evento. Porém, tantas vezes, sobretudo na imprensa, são apresentados como representativos da Semana e do ideário supostamente discernível nela. Mais do que apenas censurar ou corrigir quem assimila, retroativamente, tais obras ao modernismo inicial e àquele que seria seu evento de afirmação e divulgação, é preciso compreender os motivos dessa assimilação. Todo ruído e todo equívoco na transmissão dos fatos da cultura têm valor de sintoma e, portanto, demandam interpretação ― e acabam por ser, para a posteridade, outros fatos dessa mesma transmissão. De um ponto de vista crítico, se a Semana, hoje, é o evento e a sua transmissão, não faz sentido apenas tentar reparar o lapso, para presumivelmente restituir a verdade dos fatos: o próprio lapso é já inseparável da transmissão; e o mais proveitoso talvez seja aprender a se deslocar entre a presença dos ausentes e a ausência dos presentes, esforçando-nos por compreender as razões e, especialmente, os efeitos, de uma e outra. Em suma, recontar hoje a história da Semana é se empenhar em ler aquela carta perdida ― as muitas cartas perdidas ― não apenas na esperança de sua possível reconstituição, mas conscientes da potência extravagante da perda como instância reconfiguradora.


Não nos chegou nenhuma fotografia da Semana ― muito menos algum registro cinematográfico. Nem mesmo quanto às obras que foram apresentadas nela, sobretudo as plásticas e literárias, podemos ter total segurança: o programa do evento, a propósito de algumas obras, oferece informações demasiadamente vagas, com títulos aproximativos ou posteriormente alterados, que nos permitem, tantas vezes, apenas conjecturar. Isto faz com que a Semana, mais do que ser conhecida, no sentido positivo e positivista do conhecimento, se preste sobretudo a ser imaginada ― e reimaginada, sempre de novo. Não foi outra coisa, aliás, que fizeram, ao longo destes cem anos, os críticos e historiadores, mas em especial os artistas, que a ela se referiram e que nela reconheceram um marco relevante para suas próprias obras.

Aliás, mais do que traçar, diante da Semana ― isto é, da memória e da história da Semana ― uma oposição entre conhecimento e imaginação, devemos talvez admitir, como ponto de partida, que conhecer é imaginar, sobretudo quando estamos diante de fatos que pertencem eles mesmos, originária e inegavelmente, ao domínio do imaginário (como é o caso das artes). O que não significa, claro, ignorar os fatos: aquilo que ocorreu e foi testemunhado e que os arquivos dão a ver e compreender aos pósteros. Pelo contrário: significa extrair todas as potencialidades dos documentos de que dispomos ― os quais muitas vezes são fragmentários, residuais, opacos ou, pelo menos, ambivalentes e, portanto, não apenas passíveis de interpretação, mas exigentes de interpretação para realmente se constituírem como documentos. Devemos, por isso, levar a sério o fato de que a Semana não foi um evento qualquer, mas, sim, uma sequência de três “festivais” (como se dizia à época), cuja continuidade era ressaltada por uma exposição de artes plásticas que permaneceu aberta ao longo de todo o período, nos quais se exibiram obras literárias, musicais e visuais que encontravam um traço comum na pretensão de alterar, em certa medida, a compreensão que se tinha da arte ― e também, não menos, a compreensão corrente do tempo e da história.

E levar a sério a centralidade das obras de arte num evento significa admitir que aquilo que nele tivemos de mais importante e, portanto, de definidor não eram exatamente documentos, por mais que, com a distância histórica, as obras terminem por adquirir teor documental. Mais do que apenas dar testemunho de um determinado fato ou mesmo de uma determinada época, uma obra de arte é, em si, um fato (um fato estético, como diria Oswald em 19244) ― e, mais do que isso, um fato com capacidade ímpar de abalar a nossa percepção estabelecida da história, e não só da história das artes. É por isso que, se dermos a devida atenção às obras apresentadas na Semana, ou ainda àquelas que foram produzidas ou publicadas nos anos ― mas sobretudo nos meses ― imediatamente anteriores e posteriores a ela, não há como aderir às interpretações simples e simplistas da Semana e do modernismo, que o reduzem seja a uma adaptação local de determinadas poéticas europeias, seja a uma manifestação de nacionalismo artístico.


Para compreender o que estava, de fato, em questão na Semana, é preciso dar o devido relevo a uma constatação precisa de Oswald num texto memorialístico de 1954: “Ninguém sabia ao certo o que era ser moderno”.5 Retornar à Semana a partir desta asserção retrospectiva nos permite ressaltar nela, antes que qualquer afirmação ou consagração, a dúvida e, portanto, a procura. O modernismo, no Brasil, foi, entre outras tantas coisas, um conjunto muito desconexo de propostas de renovação artística e de interpretações do país que, num determinado momento, muito breve, quis se dar a ver como uma proposta mais ou menos coesa e como uma interpretação mais ou menos unitária, simulando, para efeitos de publicidade, uma coerência que, a rigor, nunca existiu. A Semana foi o evento que celebrou este momento fugidio ― ao mesmo tempo que foi ela também que, ao tornar públicas as ideias e formas modernistas, evidenciou, para seus próprios protagonistas, o que havia de inconciliável entre as diferentes propostas e interpretações. Não por acaso, em seguida à Semana, a unidade precária se converteu, muitas vezes, em aberto antagonismo. O que, aliás, a olhos e ouvidos mais finos, já deveria ter sido perceptível, em certa medida, ao longo mesmo da Semana, na tensão implícita e às vezes até mesmo explícita ― e anedótica ― entre diferentes instantes dos três festivais: no incômodo da pianista Guiomar Novaes com a interpretação, por Ernâni Braga, de uma peça de Erik Satie que ironizava uma passagem de Chopin, no contraste entre a nonchalance irônica de Oswald com as vaias que interrompiam as declamações de trechos literários e a perturbação quase paralisante de Mário diante daquelas, ou ainda na estratégica aquiescência, nunca isenta de sarcasmo, com que os literatos mais jovens acolheram as pretensões de protagonismo do então acadêmico Graça Aranha.

O modo mais simplista de traduzir criticamente esse descompasso mais ou menos geral entre os participantes da Semana consiste em identificar, em algumas das obras apresentadas ou em alguns dos discursos proferidos, uma modernidade mais legítima ou acabada e, em outras e outros, uma modernidade menos legítima e menos acabada. Este é, de fato, o curioso ponto de partida de vários críticos da Semana: reprovam, nas obras e nas proposições que as acompanharam, não terem sido suficientemente modernas. Ora, a qualquer observador menos passional, ficará claro, de início, que essa cobrança é rigorosamente absurda, porque finge ignorar o principal: que aqueles que imaginaram e realizaram o modernismo entre nós ― a partir da absorção de modelos estrangeiros, mas também a partir de um contexto (artístico, cultural, social, político, econômico, histórico) que não converge, de imediato, com aqueles modelos e que, portanto, tensiona aqueles modelos, exigindo sua reelaboração ― não sabiam, de antemão, o que era ou, mais exatamente, o que poderia ser o modernismo no Brasil. Uma ideia de moderno como pressuposição desejante e, portanto, como motor ― mais até do que como objeto ― de uma procura jamais coincidirá com uma ideia de moderno como retrospecção e resultado. Foi, aliás, mesmo por não saberem o que era ou o que seria exatamente o moderno, e o que poderia significar ser moderno, que alguns artistas brasileiros dos primeiros anos do século XX, assim como, mais ou menos pela mesma época, fizeram artistas de todo o mundo, retomaram o impulso codificado, décadas antes, por Rimbaud, quando escreveu que “é preciso ser absolutamente moderno” (“Il faut être absolument moderne”). Vale frisar, de resto, que, nesta formulação, mais importante do que o adjetivo substantivado, moderno, talvez seja o advérbio de modo, que esconde outro adjetivo substantivado: absolutamente. Porque, de fato, a busca do moderno talvez só possa se dar na forma da busca de um absoluto, ainda que ― ou sobretudo porque ― a partir de um vazio: isto é, na forma daquilo que, ensina a etimologia, apenas se dá a perceber como acabado ou perfeito na medida em que se faz livre ou desatado e, por outro lado, remido e resgatado, ou seja, absolvido ou mesmo dissolvido (absolutus é o particípio passado do verbo absolvere). Não deve surpreender, portanto, que uma das obras mais características da emergência do modernismo no Brasil, publicada apenas dois anos depois da Semana, defina-se justamente, desde o título, pela absolvição ou dissolução do ritmo, do ritmo da poesia, mas também, pode-se inferir, do ritmo da história ― refiro-me a O ritmo dissoluto, de Manuel Bandeira.

Não faz sentido, portanto, diminuir a relevância da Semana, como têm feito, ao longo de todas as décadas que nos separam do evento, aqueles que apontam um suposto déficit de modernidade na “arte moderna” de que o evento se fez vitrine. Esta é, a rigor, uma tolice lógica, mais até do que uma tolice crítica ou historiográfica. A noção de arte moderna que emerge da interpretação das obras literárias, plásticas e musicais, assim como das conferências e demais discursos da Semana (e em torno da Semana, porque o evento se expandiu mediaticamente em inúmeras intervenções de seus protagonistas na imprensa, pouco antes e consecutivamente às noites das apresentações), não é, de modo algum, deficitária ― até porque não há nenhuma régua que defina o ponto justo ou bastante do moderno e que, portanto, nos permita concluir que uma obra ainda não é moderna de todo ou que é quase moderna ou mesmo que se trata de um cordeiro antiquado em pele de lobo modernista (cabe aqui a inversão da metáfora de praxe). Pelo contrário, a noção de arte moderna que emerge daí é bem mais complexa do que aquela oferecida pelos manuais de história da literatura ou das demais artes ― e mais complexa sobretudo no que diz respeito às dissonâncias temporais e históricas que ela comporta, naquele enlace de arqueologia e futurismo, mitologia e vanguarda, que é a verdadeira configuração do modernismo quando este assume, na forma de um desejo absoluto, sua radical incoerência.

É por isso que, para compreender a Semana e o modernismo, talvez seja necessário entregar-se a dois movimentos complementares. Por um lado, retornar a 1922 para tentar compreender, a partir de releituras atentas de algumas obras, especialmente aquelas produzidas ou divulgadas no próprio ano da Semana ou nos seus arredores imediatos, 1921 e 1923 ― percorrendo também momentos pontuais, sobretudo os menos conhecidos, da década anterior ―, o que significava ser moderno e modernista naquele momento. Desse modo, complexificam-se as noções de modernidade e de modernismo envolvidas na Semana não a partir de uma leitura retrospectiva e, por assim dizer, discursiva (historiográfica, crítica e teórica), mas, antes de tudo, a partir das próprias obras, que são elas mesmas já, desde o início, versões dessa história. Isso envolve também tentar compreender por que a Semana se fez necessária (ela poderia não ter ocorrido, mas um determinado grupo sentiu necessidade de que ela ocorresse e, sobretudo, que tomasse a forma, por mais contingente que fosse, que tomou) e avaliar o que ela trouxe de novo, antes de tudo, para os seus próprios participantes. Uma hipótese a testar: trouxe uma visão de grupo, por um lado, mas também, por outro, a noção de que a unidade pretendida era frágil ― não por acaso, em pouco tempo o grupo se dividiu em correntes antagônicas e mesmo inimigas.

O segundo movimento consiste em tentar ver como a Semana e suas obras continuaram produzindo efeitos ao longo do século. Para isso, mais do que se contentar com uma espécie de pan-modernismo crítico e hermenêutico, que interpreta todas as manifestações artísticas e culturais posteriores, de modo arbitrário, como reverberações da “arte moderna” da Semana, é preciso rastrear e compreender as reivindicações explícitas do evento e das obras ali em questão por artistas tão distantes no tempo como os poetas concretos, os músicos tropicalistas, os poetas marginais ou os rappers da atualidade. Ou mesmo entre fundadores de instituições ― como foi o caso do Museu de Arte Moderna de São Paulo e da Bienal, inicialmente vinculada ao museu ― ou políticos com notável atuação cultural ― como foram os casos de Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek em discursos já bastante conhecidos. A cada reivindicação dessas, muitas vezes antitéticas entre si, não apenas a Semana e o moderno ressurgem para iluminar aspectos das produções específicas de cada presente, na forma de origem mítica ou precedente formal, mas a própria compreensão da Semana e do modernismo se altera. Daí que a ideia de ruína seja tão importante para dar conta do legado modernista: porque essa tradição de recorrente invocação do modernismo que atravessa o século não diferencia (seguindo nisso uma tendência presente já em algumas das principais obras de 22 e de suas imediatas pré e pós-história) entre o monumento e a ruína. Isto fica evidente, por exemplo, na Tropicália (e mais especificamente ainda na canção de mesmo nome), mas também, antes, no construtivismo brasileiro da poesia e da arte concretas ― que consiste menos numa simples busca da pureza das linhas situadas além da história e de suas contingências do que no ato profundamente enraizado na história de construir com ruínas. Em suma, temos aí, sempre de novo, ruínas de linhas puras, como escreveu Mário de Andrade, de modo deliberadamente ambíguo (as ruínas têm linhas puras, mas também as linhas puras estão em ruínas), no seu poema “Carnaval carioca”.