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Às voltas com o novo padrão expropriatório: crise do bolsonarismo e luta política atual

Betume 5, Eduardo Climachauska

O horizonte do golpe bolsonarista assombrou e encantou a sociedade brasileira antes, durante e logo depois do 7 de setembro. Entre temor e euforia, o debate público indicava que um governo ditatorial havia começado ou avançado. Apesar dos antagonismos, as principais forças (extrema direita, PT e terceira via) têm compartilhado convicção sobre o regime democrático, na qual aquilo que não tem sido é tomado como se o fosse. Isto é: para todos, democracia é uma ordem política inclusiva, integrada por arranjos desenhados para assegurar participação, liberdade e trabalho. Enquanto conservadores a culpam pela dissolução da obediência e moralidade, progressistas a julgam um modelo dirigido ao bem-estar individual e social. Mesmo Bolsonaro, quando a defende, a considera lugar de livre expressão e ação.

E como tem sido a prática democrática no Brasil? Uma experiência com imperativos de valorização do capital, na qual desigualdade e violência se reproduzem nos termos das instituições legais. Exemplos são vários, não é possível listá-los. Há, porém, certa idealização da democracia, quando discutimos o tipo de autoritarismo a que hoje estamos subordinados.

Essa idealização tem efeitos sobre a descrição e reação adequada ao bolsonarismo. De um lado, é tentador voltar-se à semântica do século XX, sobretudo em razão do fascínio que os conflitos de alta voltagem da época despertam. Noções empoeiradas, como fascismo ou ditadura, reaparecem. Por óbvio há paralelo entre expressões de Bolsonaro e Mussolini; afinidades quanto ao controle irracional à margem do iluminismo. Mas são correlações de força, disposições de classes, sistemas de acumulação diferentes. Ao cancelar as distinções, o idealismo democrático torna-se romantismo nostálgico de esquerda. Para evitá-lo, tem surgido análises que não chamam o golpe de Bolsonaro um assalto clássico, mas a corrosão da institucionalidade por dentro. Uma leitura, porém, que reforça a metafísica da democracia.

Coerção, consenso e eficiência: a fase bolsonarista do regime expropriatório pós-2008

Para superar tal metafísica, sugiro considerar o bolsonarismo parte da dinâmica atual do capitalismo, caracterizada pela financeirização. Como tal, ele é uma fase do regime político expropriatório, inaugurado após a crise de 2008, cuja solução tem forçado o capital a criar condições capazes de absorver o excedente financeiro. Para tanto, a política Bush-Obama foi essencial: entre 2008 e 2010, o FED injetou US$ 16 trilhões em bancos e agências de investimento através de empréstimos com juros próximos de zero. Com isso, deu-se a fórmula anticrise, qual seja, salvar o sistema financeiro e redistribuir o ônus à população.

Esta pressão por desarme da sobreacumulação de capital financeiro já se encontrava num quadro de consórcios de capitais, o que constrangeu ainda mais a criação de mais-valia. O pós-2008 restringiu salários e serviços públicos. Isso agravou o elo do trabalhador com o mercado, pois aumentou as políticas de crédito, elevando o endividamento para atender a demanda por pagamento de necessidades sociais (Lavinas, 2017). A crise de 2008 aprofundou, assim, o nexo entre expropriações de bens coletivos e financeiras (Lapavitsas, 2009).

Na era PT, a financeirização cresceu. Com a recessão, o ritmo das expropriações se acelerou e trouxe à tona desilusões, mostrando que o regime político expropriatório se expõe a dissenso, conforme verificado em junho de 2013. Embora à época Rousseff tenha reforçado o aparato repressivo, não foi suficiente para assegurar a expectativa hegemônica anticrise: a campanha desenvolvimentista de 2014, ainda que negada pela formação de Ministério da Fazenda de perfil neoliberal, manteve incertezas em torno da eficiência da presidenta.

O interesse em neutralizar o potencial dissensual das expropriações impulsionou nova onda de autoritarismo em 2016 com o golpe jurídico-parlamentar, que autorizou a Temer impor teto nos gastos públicos por vinte anos e reforma trabalhista. Para evitar o dissenso latente, o ritmo das expropriações ocorreu pari passu ao da repressão (uso de Garantia da Lei e da Ordem, morte de Marielle Franco etc.). Ampliou-se a violência, mas não se conseguiu fazer o mesmo com a austeridade. A tentativa fracassada da Reforma da Previdência mostrou que o excesso de rejeição a Temer bloqueou ações expropriatórias. De fato, tais ações dependem do equilíbrio entre coerção e consenso. Bolsonaro não apenas proporcionou tal equilíbrio, mas também permitiu que a função de legitimidade fortalecesse o aparato repressivo. Com isso, tornou-se vital para a política expropriadora pós-2008.

O bolsonarismo foi capaz de gerar aceitação social. Converteu o conservadorismo radical na expressão dominante da insatisfação com as expropriações, desonerando o capital e criando falsos culpados através de práticas discriminatórias baseadas em uma ideologia da inferiorização, cuja adesão prolonga-se até aos grupos mais expropriados (mulheres e negros), estimulados pelo que Fanon (1965) descreveu como “sonhos de possessão do colonizado”. Essa ideologia foi gerada junto a discurso essencializador da corrupção do PT. Antipetismo e conservadorismo tornaram-se, assim, constitutivos do programa bolsonarista.

Bolsonaro conseguiu articular com êxito violência e legitimidade. Tal articulação valeu-se de alianças com poderes judicias, políticos e econômicos. Nutriu e se alimentou da fundamentação moral e messiânica da Operação Lava Jato, acenou para o mercado com mais neoliberalismo e agregou partidos tradicionais pelo imaginário antipetista e reacionário. Essa aliança foi expressa pelo tripé Moro-Guedes-DEM.

Crise do bolsonarismo: covid-19 e nova fase do regime expropriatório

Esse circuito autoritário foi eficiente até o início da pandemia da covid-19. Agora está em crise. Ao mesmo tempo que a pandemia expôs a urgência da prestação de saúde pública e ciência, desmantelou a economia produtiva (paralisação de atividades industriais e queda na demanda) e financeira (colapso das bolsas em março de 2020). Esse cenário passou a exigir novo padrão expropriatório mundial — que Bolsonaro tem dificuldade em implementar.

Esse novo padrão segue a lógica de flexibilização da ortodoxia fiscal e monetária, trazida pelo pacote de Biden. Se, tal qual 2008, há injeção de dinheiro no mercado financeiro pelo FED e compra desmedida de títulos, também há grande profusão de recursos públicos para garantia de emprego, renda e saúde. Além disso, conforme Lavinas, Bressan e Rubin (2021), tal pacote está blindando a reprodução ampliada do capital fictício dos riscos de inadimplência sistêmica causados pelos efeitos da covid. Para tanto, introduz mecanismos de transferência monetária às famílias combinados com planos de suspensão, renegociação e expansão do pagamento das dívidas. Como, no entanto, essas medidas não aprofundam o sistema de bem-estar, debilitado por décadas de desfinanciamento, preparam novo ciclo de expropriações financeiras, na qual a ampliação do crédito agrava a dependência dos pobres com o mercado e alarga o endividamento, renovando rotas de securitização e derivativos.

O bolsonarismo é incapaz de realizar o keynesianismo financeirizado. Em 2020, ele flexibilizou o regime fiscal sem sequer planejar os meios de financiamento do “orçamento de guerra”. Apesar da pressão por investimentos em saúde, o governo não executou os créditos extraordinários aprovados para compra de remédios e custeio de leitos. A liberação das verbas foi lenta e, em 2020, apenas cerca de 10% do valor destinado à compra de vacinas foi usado. Este embuste orçamentário está ajustado à visão reacionária do negacionismo científico (Bahia at al., 2021). Ela é motor da tragédia bolsonarista da covid-19. Ao recentralizar o valor vida, tal tragédia tem questionado a prestação de legitimidade do conservadorismo radical para o novo padrão expropriatório. A rejeição ao governo passou a subir.

Esse processo desorganizou antigas alianças com o DEM (saída de Mandetta da pasta da saúde) e com o Judiciário. A demissão de Moro desordenou o imaginário messiânico do antipetismo e explicitou fissuras entre atores judiciais, que levaram à anulação das sentenças de Lula e à adoção por ministros do STF da defesa do direito à saúde contra o negacionismo.

Outro pilar bolsonarista, Guedes não tardou a abalar. É verdade que o início de 2021 transcorreu com projeções otimistas de crescimento do PIB em razão da alta dos preços das commodities, do retorno das atividades econômicas, bem como de sinais de que a política fiscal seria menos restritiva e de que a economia responderia pela baixa do juros de 2019-20. Mas a política econômica de Guedes não correspondeu às expectativas. Já no segundo trimestre de 2021, o PIB começou a recuar. Na verdade, desde o início a ação governamental de enfrentamento dos efeitos da pandemia foi ambígua. As ações do “orçamento de guerra” foram acompanhas pela reprovação das medidas sanitárias e pela defesa de disciplina fiscal. O respiro anticíclico de 2020 foi asfixiado em 2021. A EC 109 retomou expropriações via austeridade pela criação de subteto dentro do teto de gastos, arrocho dos salários dos servidores e desvinculação do superavit financeiro aos fundos sociais, desviando-o para amortização da dívida (Bahia et al., 2021). O fornecimento de créditos para as empresas, que já não era plenamente utilizado, minguou. A área da saúde voltou a ser subfinanciada. Além disso, o Auxílio Emergencial (AE), cujo orçamento já não havia sido gasto na integralidade em 2020, foi redesenhado; em 2021, passou a ter prazo mais curto e valor bem menor.

Principal suporte econômico à população, o AE tinha potencial para empurrar o bolsonarismo à lógica do novo ciclo mundial de expropriações financeiras. Lavinas, Bressan e Rubin (2021) mostram que ele foi capaz de aumentar o crédito e reduzir dívidas atrasadas e inadimplência. Em 2020 era possível notar que o endividamento ampliou, bem como a dependência dos trabalhadores ao mercado financeiro, mas seu desenho limitado em 2021, ao lado do reforço da ortodoxia fiscal e monetária, não indica apenas tendência de mera expansão das dívidas após suspensão e renegociação, tal qual o pacote Biden. Ao contrário, indica recrudescimento muito mais selvagem das expropriações financeiras, semelhante à fase logo após 2008 do regime político expropriatório com parca estratégia bailout às famílias. Dito de outro modo: o AE de Guedes não dá espaço para expansão de longo prazo da dívida e da dependência ao mercado (à la Biden), mas sim espoliação e mercantilização imediatas.

Para além do idealismo democrático: luta antibolsonarista, mas antiexpropriatória

O padrão expropriatório mudou com a crise do covid-19 e Bolsonaro permanece aferrado à fase anterior. Está na contramão da história. Desde o início da pandemia, seu modelo de articulação entre violência e legitimidade tem falhado. O resultado tem sido isolamento político, descrédito por diferentes sectores do capital e desaprovação popular. O recrudescimento da crise econômica (inflação, juros altos, desemprego, escassez de água etc.) tende a questionar ainda mais a eficiência do tipo de autoritarismo bolsonarista. Até entre os militares há fissuras quanto à adesão ao governo. Diante desse quadro adverso, a aliança com o Centrão foi uma busca por recomposição da capacidade expropriadora de Bolsonaro, mas até agora não regenerou nem poder coercitivo nem legitimador.

O mesmo aconteceu no 7 de setembro: obra do desespero bolsonarista por restaurar aceitação social e disposição de atores estatais armados com o fim de reafirmar a validade de seu programa expropriatório. A insistência retórica de que foi um ato grande, expressão do povo, confirma esse desespero. Isso nada tem a ver com golpe. Bolsonaro tentou se mostrar ainda útil à reprodução ampliada do capital. Não conseguiu. Se os procedimentos de legitimação pós-covid (valores, discursos e modos de regulação) já não correspondem aos outputs governistas, seus apodadores do Exército e da polícia deixaram as armas em casa. Estão mais preocupados com a Reforma Administrativa do Guedes.

A ato foi grande, mas sem o povo. E pior: acenou para expropriações que não têm mais lugar. O mercado financeiro percebeu e, enquanto a bolsa caiu quase 3%, o dólar subiu para R$ 5,28 no dia 8 de setembro. Partidos tradicionais e elites jurídicas reagiram, colocando o impeachment na ordem dia. Diante do risco de aprofundamento da crise econômica, os grupos dominantes chamaram à cena o político mais sensível a mudanças expropriatórias desde 2008. A nota de Temer, assinada por Bolsonaro, não foi recuo de golpe, mas sinal de que os meios de coerção e consenso vão mudar. Foi um “assopro” para as classes expropriadoras de que o presidente começou a entender que seu tipo de “mordida” não funciona mais. Precisa minimamente se flexibilizar.

O momento é propício para a luta antibolsonarista. O bolsonarismo está em crise. O modo, porém, como o debate sobre o impeachment tem sido conduzido ajuda pouco. Ao eleger a democracia como o centro das reivindicações, o idealismo com as instituições liberais (supostamente não violentas) levam tal debate a romantizar o estado repressivo atual (supostamente ditatorial) e desviam a direção política do foco principal: os projetos expropriatórios e suas tensões. Movimentos sociais, sobretudo o MTST, já problematizaram essa questão. No dia 23 de setembro, ocuparam a B3 em protesto contra desigualdade.

O ascenso dessa forma de mobilização nos ensina a importância de materializar o “Fora Bolsonaro” e construí-lo a partir de demandas concretas que surgem daquilo que o bolsonarismo faz (espoliação dos meios de subsistência), não daquilo que esperam que ele faça. Mas na medida em que mover o impeachment pela luta antiexpropriatória importa romper com o idealismo democrático, também significa renunciar à política de alianças com quem tem participado ativamente das expropriações. Impeachment se costura no conflito entre rua e elites. As frentes amplas ficaram no século XX. O regime expropriatório bolsonarista realiza-se em meio ao processo democrático. Não faz mais nenhum sentido falar em “etapismo” ou fase prévia de defesa das instituições. A democracia já está ai. O presente sociopolítico exige, ao contrário, levar as expropriações a sério e encará-las de frente.