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Entrevista com Matheus Rocha Pitta

FEED (third pizza commandment), Matheus Rocha Pitta. Serigrafia sobre caixa de pizza, 41×41×4 cm. Foto de Pieter Huybrechts.

O quanto nossas subjetividades estão espelhando a lógica dos algoritmos? Se concordamos que “a colonização ocorre quando estamos cercados pelos chamados ‘dispositivos inteligentes’ que constantemente nos observam e nos gravam, coletando grandes quantidades de dados” — pois, seguindo as palavras do filósofo camaronês Achille Mbembe, é disso que se trata, também, a colonização no século XXI —, então pensar formas de descolonização na nossa época passa, igualmente, pelo estabelecimento de uma visão crítica diante das consequências do uso da tecnologia em meio a uma contemporaneidade marcada pela hiperestimulação sensorial, pela colonização do sono, pelo déficit de atenção, pelo esgotamento psíquico, pela precarização do trabalho, pelo sequestro do futuro, pelo confisco do comum.

Esse pano de fundo perpassa a entrevista que realizamos com o artista Matheus Rocha Pitta ao longo do segundo semestre de 2021, quando trocamos por e-mail algumas perguntas e respostas. O objetivo era produzir reflexões sobre um mundo algoritmizado e traçar conexões entre trabalhos de diferentes momentos de sua trajetória. Lançando mão de um imaginário amplo que aproxima figuras históricas a celebridades contemporâneas, aproximando a pedra do smartphone, Rocha Pitta apresenta em sua obra uma aguda especulação crítica diante das novas formas de colonização do capitalismo-financeiro-informacional.


Pizza Stella #3 (feed), Matheus Rocha Pitta. Concreto, pigmento, saco plástico, papel, nanquim e edição do Wall Street Journal de 11 de abril de 2019, 41×41×3 cm. Foto de Pieter Huybrechts.

Na exposição As sirenes do toque de recolher (The Curfew Sirens), na Kustverein, em Hamburgo, celulares concretados exibem os imperativos do mundo virtual: SEE SOMETHING, HEAR SOMETHING, SAY SOMETHING. As esculturas cravam a incessante demanda por expressão que vivemos hoje. Como o seu trabalho reage à atual pressão por produção, consumo e interação com a imagem?

Matheus Rocha Pitta — Acho que a reação primária é dizer não a essa expressão opressiva, que inclui uma demanda moral de “fazer o bem”, uma demanda que se esquece que todo mal é feito em nome de um bem. If you SEE SOMETHING or HEAR SOMETHING, SAY SOMETHING, esses imperativos têm origem no pós 11 de setembro, com a criação de uma paranoia denuncista, um cidadão “vigilante”, uma sociedade regida por uma fantasia de uma segurança absoluta. Talvez as sirenes estejam petrificadas porque demonstram o limite do denuncismo: uma impotência que vacila entre o oportunismo cínico e o engajamento ressentido. A pressão não é apenas por produção e consumo da imagem, mas principalmente por posições políticas imaginárias.

As sirenes do toque de recolher, Matheus Rocha Pitta (2019–2020). Concreto, papel, correntes, nanquim e pau-de-selfie, 240×48×48 cm cada. Foto de Fred Dott.

Cabeça. Concreto. Corrente. Os materiais que você utiliza parecem sinalizar operações de controle e contenção. Você já disse anteriormente que as situações de controle e opressão hoje possuem uma insidiosa natureza espectral, ou seja, exercem um tipo de violência, mas um tipo sorrateiro muitas vezes. As sirenes do toque de recolher também apontam para como determinados códigos de linguagem são cooptados por regimes autoritários. Em entrevista recente sobre a mostra, você fala algo que parece definir bem a forma como a exposição contraria essa lógica repressora. Você diz: “A força da exposição está no modo como não se pode localizar as dinâmicas de poder.” Talvez possamos especular como essa característica insidiosa das formas de controle atuais possam ter um elo com uma outra, aquela que nos fala de um crescente confisco do comum (do espaço público) e de uma diluição da dimensão corpórea na relação com a realidade. De que forma você imagina que essas pontas podem estar ligadas?

M.R.P. — Acho que existe uma diluição daquilo que se chama realidade. Com a pandemia isso ficou patente pois, por motivos óbvios, a digitalização da vida se acelerou. Os gestos que dão conta da realidade, principalmente da realidade da morte, como abraços por exemplo, foram interditados. É preciso entender que aquilo que chamamos realidade não é um composto de informações, é antes de qualquer coisa um acordo que se faz. Me parece muito difícil que esse tipo de acordo possa ser mediado apenas por imagens.

A primeira sirene (Beyoncé como Nefertiti), Matheus Rocha Pitta (2019–2020). Concreto, papel, correntes, nanquim e paus-de-selfie, 240×48×48 cm. Foto de Fred Dott.

Ao longo da sua trajetória você vem pesquisando o lugar dos gestos em nossas relações. Os gestos não são simplesmente movimentos anatômicos de corpos, gestos também são espécies de pactos éticos. Assim, seria bom te escutar a respeito do modo como você aborda o gesto deste trabalho específico, o do “toque de recolher”, pois parece que você nos endereça um sentido diverso daquele que costumamos associar a essa situação. E esse desvio que a obra recupera, indo ao sentido original da expressão, ecoa, por sua vez, noções importantes para pensarmos as relações atuais tanto no campo da vida online quanto off-line.

M.R.P. — Originalmente o toque de recolher era um sino, que determinava o momento, antes de dormir, de se apagar o fogo para que ele não se descontrolasse e incendiasse a cidade. Era uma forma de proteção. A maneira que percebemos o toque de recolher, ao contrário, é sempre repressiva, um modo muito ocidental que encara o silêncio sempre como repressivo e não produtivo. Uma referência importante foram os três macacos sábios: no ocidente eles são vistos como cínicos e conformistas, porém em seu contexto original japonês não ver, não ouvir, não falar significa quebrar a corrente da violência contida na linguagem. Se você vê ou ouve algo violento, você não fala para que essa violência não se propague. Portanto, o toque de recolher, o silêncio, pode ser um modo de deter a violência do mundo e das palavras, de cuidar da linguagem para que ela não nos sufoque.

A terceira sirene (Pasolini), Matheus Rocha Pitta (2019–2020). Concreto, papel, correntes, nanquim e paus-de-selfie, 240×48×48 cm. Foto de Fred Dott (vista traseira).

No mundo pré-redes sociais, os acessos aos registros de um trabalho eram restritos e póstumos à exposição. Hoje, a sensação é de que a imagem vem antes. Como você observa a influência das plataformas de visibilidade sobre a produção artística e sua circulação hoje?

M.R.P. — De um modo bastante desconfiado! Pertenço à última “geração pré-internet”: já estávamos “formados” quando ela chegou, com suas promessas de democratização e acessibilidades infinitas, embarcamos nessa também. Mas hoje esses valores não passam de ilusões, depois das eleições de Trump e de Bolsonaro (só pra citar dois exemplos), não dá para achar que a internet é um espaço “neutro”, ou mediamente “democrático”, muito pelo contrário, a democracia se fragilizou com as redes sociais.

Dito isso, tem dois processos que percebo: um é a indiferenciação entre “arte” e “imagem”, e os respectivos canais de circulação: toda imagem pode ser arte, abriu-se mão de um espaço da arte mais reservado ou antagônico em relação à cultura. E o resultado é que as exposições se parecem cada vez mais com “feeds” de redes sociais: a forma de exibir arte está absolutamente colonizada pelo algoritmo, ela é escrava do binarismo das curtidas: o valor social é mediado por esse populismo digital.

Eye-shot, Matheus Rocha Pitta. Concreto, pigmento, papel, 17×9×1,5 cm.

Pegando o gancho da sua última resposta, na qual você nos fala sobre como atualmente as exposições se parecem cada vez mais com “feeds” de redes sociais, lembramos que você acaba de abrir uma exposição na Antuérpia, precisamente com esse título. Nela, alguns trabalhos recuperam procedimentos caros e frequentes em sua obra, tais como a alusão à comida, o universo de circulação das mercadorias e a ainda uma recorrente imagem do buraco negro. Você poderia nos contar sobre essa exposição, o seu título e o reaparecimento aqui desses elementos que são relevantes ao longo da sua trajetória?

M.R.P. — Nessa exposição estou lançando uma série de serigrafias, The Ten Pizza Commandments, onde ordens, imperativos e regras de conduta (muitas vezes não ditas) se transformam em emblemas, impressos em caixas de pizza. “Feed” é o título do primeiro emblema e o verbo está conjugado no imperativo: feed the black hole of gratitude and debt. Esse buraco negro se revela como um aparelho cósmico anal de acumulação primitiva de capital, que pega tudo pra si e não devolve nada, como o milionário que paga somente o mínimo que mantem sua força de trabalho viva (não só viva quanto grata). É nesse circuito de uma economia cotidiana — na banalidade do nosso dia a dia onde até a figura do patrão foi algoritimizada — que surge a obscena glória do buraco negro, ponto de fuga de um imaginário paternalista e retentivo.

Não é de hoje que a questão da materialidade do valor, em sua forma ordinária de comida, me é cara. Mas há uma mudança em curso agora tão terrível quanto o buraco negro: a informação se apresenta como um valor tão vital quanto o alimento. Não é à toa que esse mesmo fluxo de informação se chama Feed, uma alimentação sem pausa nem descanso, onde somos convocados (através dos dispositivos de liberdade de expressão e narcisismo) a fornecer conteúdo para uma máquina, a alimentar uma máquina que corrói todo e qualquer valor que lhe seja antagônico. Um sistema capaz de se autodevorar para seguir vivo, como Saturno comendo os próprios filhos. No mito grego, depois de dar à luz a Zeus, Réa o esconde e dá a Saturno uma pedra embalada em roupas de bebês, que a devora sem perceber. Voltando pra nós aqui, acho que dá pra alimentar com pedras a máquina e tentar romper suas engrenagens.

Detalhes de As sirenes do toque de recolher, foto de Matheus Rocha Pitta.

Você mencionou anteriormente figuras públicas, como Trump e Bolsonaro, e sua influência sobre as narrativas sociopolíticas vigentes. Ao longo do seu trabalho, você recorre a imagens de personagens ou situações do imaginário coletivo como forma de complexificar nossas convicções sobre a história e o presente. De Einstein a Beyoncé, passando por Tiradentes e Madonna, de que modo essas “imagens” do passado e do presente informam o trabalho?

M.R.P. — Na maioria das vezes de um modo bastante aleatório. Essas imagens não são escolhidas por um suposto conteúdo fixo, ao contrário, as pus ali justamente pela capacidade delas de embaralhar e desfazer narrativas fixas, idênticas. O poder “presente” sempre vai criar mitos sobre o passado para justificar e legitimar seu exercício — de modo a não deixar restos nem arestas. É nesses restos que encontro essas imagens.

Detalhes de As sirenes do toque de recolher, foto de Matheus Rocha Pitta.

Detalhes de As sirenes do toque de recolher, foto de Matheus Rocha Pitta.

Detalhes de As sirenes do toque de recolher, foto de Matheus Rocha Pitta.

Detalhes de As sirenes do toque de recolher, foto de Matheus Rocha Pitta.

Detalhes de As sirenes do toque de recolher, foto de Matheus Rocha Pitta.

Detalhes de As sirenes do toque de recolher, foto de Matheus Rocha Pitta.