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Democracia republicana à brasileira: a trajetória de uma ideia e seus entraves

resenha de O Brasil à procura de democracia, Newton Bignotto

O Brasil à procura da democracia: da proclamação da república ao século XXI (1889–2018), do filósofo mineiro Newton Bignotto, refaz o percurso da tradição política brasileira sob novas bases, e este caminho intelectual talvez seja a grande originalidade do livro. Newton mescla as já referendadas reflexões sobre o percurso das ideias democráticas no Brasil com uma inusitada matriz republicana, que tem origem na Antiguidade Clássica e se refaz na modernidade (inicialmente com as repúblicas italianas e, em seguida, com as experiências revolucionárias de Inglaterra, EUA e França). Assim, ao receber o convite da École des Hautes Études en Sciences Sociales, em 2018, para fazer uma série de conferências sobre o Brasil, no exato momento em que sua democracia estava em crise, ou, pelo menos, parecia entrar em crise, o autor reúne os seus estudos já consagrados sobre o republicanismo moderno com as suas reflexões mais recentes sobre o pensamento social e político brasileiro. Para ele, estes dois caminhos seriam complementares, pois o republicanismo não aparece como um concorrente à matriz liberal inglesa, que, segundo interpretações, teria moldado nossa tradição de pensamento político. Pelo contrário, o republicanismo (e os estudos de Claude Lefort e Hannah Arendt são fundamentais para compreendê-lo) nos traz uma série de ferramentas para pensarmos o nosso cenário político. Deste modo, conceitos como comunidade nacional, autonomia (sobretudo se pensarmos na chave da autonomia política e cultural das repúblicas italianas), participação, conflito e fundação se tornariam centrais.

A ideia de conflito, que Lefort deriva de Maquiavel, mostra-se essencial para Bignotto desancar a tese, arraigada entre nós, de que não houve conflito em nosso passado, ideia mítica e idílica, segundo ele. A nossa história recente é marcada por uma série de conflitos agrários, urbanos e sindicais; e mesmo o nosso passado colonial é forjado sob o signo do conflito. Assim, se pergunta o filósofo, a caracterização de nosso cenário político como sendo dominado pela apatia interessaria a quem? O mesmo ocorre com o conceito de fundação, que Arendt elabora tão bem. Mais do que pensar por que não houve uma revolução no sentido arendtiano no Brasil (que, em suma, refunda a sociedade em novas bases políticas), o autor retorna ao conceito de fundação contínua de Maquiavel. Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre também teriam pensado a fundação do Brasil. Mas a fundação como uma criação contínua, como propõe Bignotto, ajuda-nos a repensar as bases em que ela se dá.

Sem reservas, deve-se reconhecer que a longa tradição ensaísta brasileira ganhou este ano mais uma grande obra. Desde a geração de 1870, ou mesmo antes, com as elites imperiais, a busca por descortinar no Brasil as suas peculiaridades, seus males de origem, o diagnóstico de seus maiores problemas e suas soluções possíveis, ocupou um vasto espaço nos escritos da inteligência nacional. Do embate entre referências liberais e conservadoras (Tavares Bastos e Visconde do Uruguai) aos enfrentamentos sobre a influência ibérica (de Oliveira Viana a Raymundo Faoro) e a escravidão (de Caio Prado Júnior a Florestan Fernandes); dos termos fundamentais da “questão social” (de Josué de Castro a Francisco de Oliveira) ao recentíssimo debate sobre a fragilidade da democracia; a formação concomitante do pensamento e do Estado brasileiros jamais silenciou o questionamento sobre a originalidade do país.

Contudo, a partir da profissionalização das ciências humanas e sociais, em meados do século passado, com o desenvolvimento e inserção da universidade no debate público, essa tradição se não se alterou completamente ao menos sofreu uma brutal inflexão. Os trabalhos de síntese teórica, e sobretudo interpretativa, paulatinamente deram lugar a pesquisas mais controladas metodologicamente, e progressivamente o ensaísmo se tornaria, ele próprio, fonte de pesquisas e objeto de estudos. Uma das vertentes mais destacadas dessas novas investigações, embora quantitativamente pouco relevante, é a das reconstruções históricas de alguns dos marcos de nossa formação intelectual.1 A despeito de toda a pluralidade, o que há de comum nessas obras é que seus marcos conceituais são fundamentalmente delimitados pelas experiências europeias e norte-americanas, de tal modo que o emprego da noção de “recepção” para caracterizá-las é bastante adequado. O fato de haver um reconhecimento generalizado de que nosso socialismo e nosso liberalismo carregam consigo todas as nossas particularidades não atenua a percepção de que, no Brasil, o pensamento socialista ou liberal é passivo diante de suas origens intelectuais. O mérito de maior destaque de O Brasil à procura da democracia é colocar sob severa suspeição o confortável (e perigoso) pressuposto dessa passividade intelectual do pensamento brasileiro.

Enganam-se, porém, aqueles que julgarem que o livro é uma disputa direta com essas reconstituições. Pelos motivos detalhados ao longo da obra, a análise do pensamento brasileiro, por sua posição ativa, requer do autor uma dialética fina, que abarque o “nosso” ensaísmo interpretativo e a filosofia política “ocidental”, e Bignotto mostra, portanto, nesse jogo sofisticado, que uma entrada teórica pela filosofia política, para compreender o ensaísmo nacional, importa e muito.

Não se trata, todavia, de uma reconstituição histórica do pensamento democrático nacional, nem mesmo do emprego de teorias normativas para se mensurar os graus de democracia em contextos e textos diferentes. Trata-se, afinal, de pensar os textos nos seus contextos, à luz dos referenciais teóricos que delineiam, mas não limitam, cada etapa do pensamento brasileiro durante o período republicano.

Além disso, ainda não há, por mais absurdo que possa parecer, uma bibliografia sistemática sobre a trajetória do pensamento democrático nacional, o que talvez seja um sintoma e não uma causa do que somos obrigados a ler nos jornais atualmente. Não se pode negar que a democracia, como experiência histórica (ou, quando muito, por meio de seus autores ou experimentos isolados), tem sido o alvo predileto das pesquisas nas humanidades brasileiras, mas ainda não propriamente como objeto de reflexão na formação intelectual nacional.

Estes quatro elementos, portanto, 1. o diálogo com a história das ideias nacionais; 2. uma dialética entre a filosofia política e o ensaísmo; 3. a reconstrução histórica sob paradigmas inéditos; 4. a democracia republicana como objeto; pensamos ser a marca indelével da potência da reflexão de Newton Bignotto.

Desde o início, o leitor encontrará evidências disso. O processo que gestou a república e o seu parto são lidos com a atenção de quem não nega o estarrecimento dos “bestializados”, de um povo amorfo e debochado, para com o quinze de novembro, mas também não transforma essas chaves interpretativas em paradigmas. Newton Bignotto mostra, ao contrário, como o discurso e a prática republicanos nos foram importantes naquele fim de Império, como seus personagens políticos mobilizavam auditórios, transeuntes e leitores. O acento no caráter positivista do republicanismo no século XIX deve, entretanto, ser relativizado. A breve experiência do periódico carioca A República juntamente com os anos iniciais do Partido e do Clube republicanos não guardavam as marcas de Comte e Littré tal como o fariam com Silva Jardim, os irmãos Campos ou Teixeira Mendes. Se, por um lado, é verdade que tivemos um legítimo momento maquiaveliano, com a disseminação do republicanismo antes da do positivismo, por outro, é preciso reconhecer que ele foi de tal modo efêmero que sequer deixou rastros quando a república foi, enfim, proclamada por um marechal, na quartelada da Praça Tiradentes.

Ao tratar dos autores nacionais, sempre com análises entremeadas pelo seu contexto histórico, pela formação intelectual nacional e pela própria teoria política, Newton Bignotto deixa claro ao leitor que seu quadro classificatório dos grandes intérpretes do Brasil baseia-se na oposição entre liberais e autoritários. Aliás, esse enquadramento, já canônico, e talvez por isso polêmico, remete a um diálogo menos evidente com a produção contemporânea: Luiz Werneck Vianna e Gildo Marçal Brandão, para citarmos apenas dois clássicos das ciências sociais de hoje, se detiveram também no tema. Não obstante, um terceiro braço do pensamento nacional, o marxismo, ser por vezes aludido, sua divisão entre liberais e autoritários acabou por se consolidar. Entre os primeiros, figurariam Manoel Bonfim, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Raymundo Faoro e Florestan Fernandes; de outro lado, Oliveira Viana e Azevedo Amaral.

O desequilíbrio em favor dos liberais é evidentemente proposital e constitutivo do objeto do livro. O que chama a atenção, de imediato, na escolha dos autores e na opção classificatória, é que de nenhum deles, liberais ou conservadores, poderia ser dito republicano democrático stricto sensu. Mesmo no interior do primeiro grupo, o tema da democracia é apenas tangenciado. Como, então, fazer emergir o republicanismo democrático de nossa inteligência nacional a partir de autores que mal se identificam com um Estado de direitos liberal de matriz anglo-saxã? Essa pensamos ser a questão mais difícil que o livro se propõe resolver. Secundariamente, mas decorrente dessa primeira, surge uma outra questão: como é possível chamar marxistas (como Caio Prado Júnior e Florestan Fernandes), ou mesmo outros, que pouco ou nada se dedicaram à teoria política (como Gilberto Freyre), de liberais? A originalidade mais latente desta obra reside em ela nos colocar diante da primeira questão e nos fazer perceber, pelo seu percurso, que a segunda está a ela subsumida.

Ainda que república e democracia sejam temas apenas tangenciados (quando muito) pelo ensaísmo da primeira metade do século XX, Newton Bignotto extrai dele os limites e as potencialidades de construção de uma república participativa, livre e igualitária no Brasil. Certamente, depois de Oliveira Viana, tornou-se proibitivo, para qualquer sociologia política, afirmar genuinamente que a importação acrítica de instituições da democracia liberal seria suficiente para colocar o Brasil definitivamente no campo republicano — esse mérito é, sem dúvida, do escritor da Alameda São Boaventura. E isso tornaria o pensamento nacional de tal modo pessimista e receoso com o futuro que a dinâmica das instituições nacionais ficaria legada a segunda plano. Assim, o retorno à formação nacional, desde a colônia, se tornaria a pedra angular de nossos intérpretes. Não sem motivo, o livro aponta, direta e indiretamente, para um diálogo, no mais das vezes silenciado, entre a origem histórica do Brasil formalmente republicano e o tema, caracteristicamente republicano, da origem da cidade.

A busca pelo “caráter do brasileiro” engendrou interpretações rígidas e tendencialmente conservadoras, e outras plásticas, de fundo mais liberal. A plasticidade social do Brasil — “o homem cordial” de Sérgio Buarque de Holanda, por exemplo — tornou-se a pista segura para a investigação de nossas potencialidades democráticas, sem que, com isso, se operasse um retorno ao “idealismo da Constituição” ou se recorresse a qualquer teleologia histórica. A originalidade apontada acima se revela no fato de que no livro se busca “reunir um conjunto de reflexões de intelectuais brasileiros sobre conceitos que estão presentes tanto na tradição republicana quanto nas teorias da democracia, que não são diretamente tributárias do liberalismo inglês”.2 Ora, se é esse o objetivo, então, o que se convencionou chamar de pensamento liberal deve ser reconfigurado a fim de incluir marxistas e republicanos, ou, para dizer de outro modo, as lentes que Newton Bignotto propõe, para relermos nossos clássicos, permitem, agora, reordenar a questão, de tal modo que toda a potência democrática de cada um desses assim chamados “liberais” se deixe ver.

Na análise do período que perpassa a ditadura civil-militar até o fim do governo Lula, Newton Bignotto mescla, ainda mais, o estudo de nossas ciências sociais com análises dos anseios e ações de atores políticos e da sociedade civil. Em sua démarche, o autor torna evidente um ponto que norteia todo o livro: a entropia da estrutura política brasileira é um traço característico de nossa democracia. Retirada do vocabulário das ciências naturais, o livro nos apresenta a ideia de entropia política, associada à degeneração institucional e à predação do Estado por grupos organizados, como o “resultado e o elemento propulsor da trajetória da democracia brasileira”.3 Mas, deve-se atentar ao fato de que tal entropia, coextensiva às sucessivas crises democráticas, está longe de ser apenas deletéria ao sistema político do país. O livro enfrenta, assim, com rara coragem, o lugar comum dos discursos públicos que colocam no mesmo campo semântico “conflito” e “crise”, e que, como um pressuposto autoevidente, identifica aí as mazelas de nosso sistema político. Ao contrário desse senso rotineiro e acrítico, Newton Bignotto segue o itinerário da república brasileira com os instrumentos do republicanismo maquiaveliano, cuja principal contribuição para as democracias de hoje, se poderia dizer, reside na ideia de que o conflito é causa da liberdade, da legitimidade e do governo das leis. A escolha, portanto, do ferramental republicano justifica-se inteiramente, porquanto ele nos ensina que o traço marcante de nossa democracia pode ser também a base para a construção de um regime verdadeiramente republicano.

A despeito desse moderado otimismo, não deve o leitor manter a mesma expectativa para as sessões finais do livro. Para bem compreendê-las, a devida atenção deve ser dada a dois elementos fundamentais. O primeiro deles diz respeito ao modo pelo qual o liberalismo brasileiro se desenvolveu ao longo das décadas. Analisar sua evolução seria uma excelente oportunidade para destacar o modo contraditório segundo o qual uma ideologia que preza pela liberdade individual — tornando-a mesmo natural e/ou inalienável — foi adaptada a uma economia escravocrata. Mas, diga-se, isso consistiria noutro estudo, com outro objeto e contexto. De fato, o livro aponta para essa dificuldade, mas não visa saná-la. A contradição entre o liberalismo econômico e o político, provavelmente oriunda do contexto escravagista, abriu a possibilidade para que, no período republicano, a predação do Estado e da sociedade civil fosse regra. Essa disjunção não fez da democracia disfuncional, como suporiam alguns, mas entrópica e conflitiva e, nesse sentido, deve-se reconhecer que a democracia brasileira jamais esteve em crise, ela mesma é constituída de crise.

Paulatinamente, surgem no livro, com contornos mais nítidos, fenômenos e temas políticos recentes, como o mensalão, o golpe, a questão do fascismo etc., e as posições do autor a respeito deles não deixam dúvidas sobre o pessimismo perene da inteligência brasileira. Entramos aqui no momento final do livro: a rejeição do conflito; a disseminada ideia de que a democracia liberal e o Estado de direito não têm lugar no Brasil; e a escravidão funcional de um capitalismo periférico são os elementos aos quais o facciosismo crescente de uma classe média hipócrita, estimulada por um discurso anticorrupção combativo e moralista, se uniria para possivelmente “tragar as instituições da Constituição de 1988, como fazem prever certas ações de governantes e atores políticos e institucionais”.4 É claro que o judiciário, a grande mídia, o capital financeiro, o contexto internacional e a ressurreição do fantasma do comunismo são peças fundamentais desse jogo, mas, de algum modo, parecem ser menos estruturantes em relação às suas regras, e às suas posições, pró ou contra a democracia, não parecem inteiramente claras e muito menos homogêneas.

Ao acentuar a “guerra de facções” — tema cuja formulação teórica remete ao início da modernidade, mas que apenas em anos recentes passou a ser explorado nas pesquisas brasileiras —, o republicanismo não apenas ilumina outra faceta da democracia brasileira, com novas e perturbadoras fragilidades, como também projeta um horizonte aterrorizador de possibilidades para os próximos anos. Mas, para acompanhar essa leitura, é imprescindível distinguir “facção” de “partido”. Na tradição republicana que vai de Maquiavel a Madison, a noção de facção sempre foi condenada na mesma medida em que a de partido foi louvada. A facção atua se valendo dos meios públicos para satisfazer interesses privados, passando ao largo da legitimidade política e da ordem constitucional. As facções são milícias, literalmente. A guerra de facções, no Brasil, contribuiu para a erosão da suposta coerência entre os discursos políticos e as ações de governo, sobretudo depois do golpe, e a maior evidência disso parece estar na desconcertante atualização bolsonarista da já citada contradição entre liberalismos econômico e político no Brasil.

Um discurso e uma ação pró-mercado, mas que persegue minorias, como se observa no governo Bolsonaro, são insustentáveis sem ações robustas e violentas. Como o “Estado mínimo”, sonhado por Paulo Guedes, teria aparato para perseguir indígenas, homossexuais e trabalhadores? Saímos, assim, da contradição teórica da tensão constante, do equilíbrio instável, para adentrarmos o universo do combate fratricida e deslegitimador do conflito político, que vai muito além dos personagens que compõem o governo e chega àquilo que se tem denominado “nova direita”. Em resumo, ser liberal na economia e conservador nos costumes é absorver o pior do liberalismo e o pior do conservadorismo: é esse o caminho que erode por completo as possibilidades de construção de uma república democrática.

É provável, segundo Bignotto, que estejamos diante da mais perigosa entropia da história republicana: “constato que as instituições, embora possam continuar a existir, não conseguem mais frear o ímpeto das partes que ambicionam o poder”.5 Diante disso, teme-se que as vias para se pensar a democracia a partir de suas possibilidades e potencialidades estejam fechadas, pois “chegou o momento de pensar a democracia a partir de seus inimigos”.6