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Um grito exumado dos arquivos

Resenha de Na quebra: estética de uma tradição radical preta, de Fred Moten

Oxóssi #4, da série Restauros, May Agontinmé, 2023

Na quebra: estética de uma tradição radical preta, lançado no Brasil pela Crocodilo e pela n-1 edições, com tradução de Matheus Araujo dos Santos, é o primeiro livro de Fred Moten, poeta e professor do Departamento de Estudos da Performance da NYU Tisch School of Arts. Publicado nos Estados Unidos originalmente em 2003, o livro apresenta uma série de elementos que retornam de modo mais matizado e instigante em suas publicações recentes, as quais integram a trilogia consent not to be a single being, sobretudo sua obstinação em investigar as estéticas pretas a partir de sua invenção contínua da liberdade em situações de não-liberdade. O poema “Viveiro”, de Paulo Colina, em toda sua ambiguidade e indecidibilidade, poderia servir perfeitamente como epígrafe para o livro de Moten: “claro campo em deslimites / de arame farpado / onde pratico meus saltos mortais”1. De fato, seria possível dizer que, para Moten, não há tradição estética que não contenha uma teoria do sujeito e uma teoria da liberdade. Muitas de suas provocações são irresistíveis e seu pensamento ousado demonstra a força criativa das diferentes vozes — de modo algum homogêneas2 — que povoam o leque amplo das teorias críticas da raça que vêm sendo publicadas recentemente no Brasil: Saidiya Hartman, Denise Ferreira da Silva, Hortense J. Spillers, Christina Sharpe e Frank B. Wilderson III, para citar alguns autores.

E é, justamente, a partir de um diálogo textual com Saidiya Hartman a respeito da relação entre o sujeito e a sujeição, ou entre sujeito branco e objeto negro (desenvolvida sobretudo em seu livro Scenes of Subjection), que Moten apresenta, na introdução, sua teoria acerca da possibilidade de objeção do objeto. Não se trata de uma oposição ao pensamento de Hartman, mas de uma aposição que busca “sujeitar esse modo incontornável de sujeição a um colapso radical”.3 Se Hartman escolhe não reproduzir a cena em que Frederick Douglass, em sua autobiografia, narra a violência sofrida por Tia Hester e descreve seus gritos, Moten dirá que: “a decisão de não reproduzir o relato de açoitamento da Tia Hester é, em certo sentido, ilusória. Primeiro, ele é reproduzido em sua referência e recusa; segundo, o açoitamento é reproduzido em cada cena que o livro [dela] aborda”.4 Tomada como primária por ambos, a cena levará os autores a caminhos distintos. Para Hartman, não reproduzir o horror dessa cena primária significa buscá-la em cenas em que o “terror mal pode ser discernido”.5 Para Moten, essa cena será primária na medida em que dá vazão a uma materialidade fônica que reemergirá, primeiro, no próprio texto de Douglass, que descreve os cantos de escravizados a caminho do trabalho — “cada nota era um testemunho contra a escravidão”6 —, mas que também reaparecerá nos gritos de Abbey Lincoln em Protest,7 experimento/manifesto do free jazz por meio dos quais a cantora dá o testemunho, segundo suas próprias palavras, de uma possessão ancestral. Não se trata, evidentemente, de uma leitura eufórica e triunfante das possibilidades de se objetar aos horrores da escravidão, mas de pensar se nessa objeção — a do grito e a do canto — não haveria um conhecimento acerca da liberdade a despeito da inexistência daquilo que poderia ser reconhecido como uma experiência de liberdade.

Ainda na introdução, Moten se volta a Marx e à mercadoria falante, lembrando-nos de que Marx é contemporâneo de Douglass. Em “O caráter fetichista da mercadoria e o seu segredo”, Marx opera, como diz Moten, um duplo ventriloquismo. Ao especular sobre o que ocorreria “se as mercadorias pudessem falar”, Marx as faz falar tanto nos termos da sua teoria do capital quanto nos termos dos economistas clássicos, de modo a criticar a ideia de que elas possam possuir um valor intrínseco, que existiria tal qual uma propriedade química. Para Moten, é por meio da certeza da impossibilidade da fala das mercadorias que Marx mobiliza a noção de que não há valor que seja anterior à troca. E, no entanto, o fato de que o/a escravizado/a — enquanto mercadoria — pode falar, ou que sua fala objetante pode irromper, é proposto como demonstração do valor inerente que antecede a troca, isto é, como o valor que Douglass persegue em sua autobiografia. Moten escreve: “O que soa através de Douglass é uma teoria do valor — uma ontologia objetante e objetável, produtiva e reprodutiva —, cujo axioma primitivo é de que as mercadorias falam”. E, ao falarem, ao objetarem à sujeição, objetando a troca, as mercadorias acessam uma subjetividade que se manifesta como um excedente em relação à própria mercadoria. Dirigindo sua crítica a Saussure, Moten então questiona a superação ou a abstração da fala sonora, que deve abrir caminho, necessariamente, a uma teoria do signo que está em relação com uma ciência universal da linguagem. Como a mercadoria que não pode falar em Marx, o fônico em Saussure não possui uma substância material, isto é, algo que lhe seja próprio e que possa, portanto, ser reapropriado nas múltiplas reencenações da cena primária do grito. Para Moten, no entanto, aquilo que é da ordem do indizível é justamente o que pode ser iterado, ao modo de Édouard Glissant, citado também na introdução, “na textura aparentemente sem sentido do ruído extremo”.8

Recorrendo a notas de Abbey Lincoln sobre uma apresentação, nas quais ela conta que ela e Max Roach tiveram que ir a um tribunal pois os vizinhos pensaram que os gritos que ela proferia se deviam à violência doméstica, Moten pensa sobre a reduplicação e a reprodução da cena do açoite de Tia Hester, pensando, inclusive, via Hortense J. Spillers, sobre a própria reprodução a partir do entroncamento entre maternidade e materialidade no contexto da escravidão. Se Douglass, como diz Spillers em “Bebê da mamãe, talvez do papai: uma gramática estadunidense”,9 considera que o direito de patrilinearidade negado às pessoas negras produz um modo ilegítimo de herança cultural, algo próximo à bestialidade, ou seja, se Douglass, como diz Moten, reprime aquela que é a lição de Spillers, de que o homem afro-estadunidense deve reconquistar a herança da mãe “como aspecto de sua própria pessoalidade — o poder do ‘sim’ à ‘mulher’ interior”10 —, isso indica também, em um contexto em que a maternidade retrocede em prol da produção de mercadorias para uma sociedade escravocrata (ou seja em que a reprodução e a produção não estão cindidas), que o não-valor produz valor e que o valor anima o não-valor. Investigando as possibilidades fonográficas da fotografia, os gemidos de dor e os prantos de revolta e luto que podem se tornar audíveis, Moten retorna no terceiro capítulo à maternidade, mas a uma maternidade post-mortem, à mãe de Emmett Till,11 que exigiu que fotos do rosto brutalizado de seu filho circulassem e que o enterro acontecesse com o caixão aberto, apesar do seu estado avançando de decomposição. Pensando com o Roland Barthes de A câmara clara, Moten pergunta: “Então, qual a diferença entre a incapacidade do filho de reproduzir a fotografia da sua mãe morta e a insistência da mãe na reprodução da fotografia de seu filho morto?”.12

Vale notar que a própria noção de herança e filiação não é uma questão menor na obra de Moten, não apenas no que diz respeito à estética radical preta, mas no que diz respeito ao seu cânone teórico, mais notadamente Jacques Derrida, talvez a figura mais referida em sua obra — chamado pelo autor de o mais preto entre os filósofos —, e para quem, no entanto, a improvisação, tão central à teoria exposta em Na quebra, se constituía como um problema. A inventividade de Moten também se demonstra no modo como escolhe dialogar com esses referencias teóricos, em uma espécie de insubordinação teórica amorosa. E, no entanto, apesar da irresistibilidade e da sedução que a sua prosa poética produz em quem o lê e da beleza aguda de algumas partes (penso aqui sobretudo na parte sobre o álbum Chinampas, de Cecil Taylor, em que a composição entre palavras, voz e silêncio são descritas como as ilhas flutuantes indígenas dos lagos do Vale do México que dão nome ao álbum, ancoradas e suspensas em uma espécie de deriva intersticial), talvez aqui valesse a pena fazer uma ressalva.

A figura da mulher negra (e também a das sexualidades dissidentes), mapeadas no frequente distúrbio que produzem a certa noção de masculinidade negra — que as recusa ou reprime, mas que também é conformada por elas, em uma operação de construção de gêneros que não equivale sempre ao binarismo que vale para os corpos brancos —, permanecem como presenças que se afirmam, sobretudo, pela sua ausência ou, melhor dizendo, por uma presença que está na ordem da reprodutibilidade espectral. A cena primária, “anoriginária”, como diria Moten, do açoite de Tia Hester, passa a estar contida no grito que atravessará toda a estética radical preta que, no entanto, é produzida, no livro, quase exclusivamente por homens: da improvisação dos famosos músicos de jazz no primeiro capítulo — Duke Ellington, Cecil Taylor e Eric Dolphy —, a Amiri Baraka (e Billie Holiday aos ouvidos de Baraka) no segundo capítulo, com uma rápida passagem por James Baldwin no terceiro capítulo, os experimentos de radicalidade estética da vanguarda preta parecem ser uma atividade predominantemente masculina, ainda que sejam marcados por esse grito feminino que, reapropriado, pode assinalar um modo desviante de dizer “sim”, em uma operação em muito sentidos dissonante àquela proposta por Spillers, à “mulher” interior: uma rematerialização que também constitui um retorno à mãe, como diz Osmundo Pinho no prefácio, ou a uma substituta para a figura da mãe, como é o caso de Tia Hester, e cujo açoite, em uma linha perversamente indistinguível com a violência sexual, relembra a própria origem de Douglass, que muito provavelmente era filho de seu próprio senhor.

A última parte do livro, uma espécie de post-scriptum que compõe um par mais ou menos simétrico com a introdução, volta-se à artista plástica e filósofa Adrian Piper, também focalizada nos termos de um objeto que resiste, no seu caso por meio de um “minimalismo feminista preto e antiescravidão” que “possibilita o reaparecimento do objeto de arte após o desparecimento do objeto que a arte conceitual havia incorporado”.13 É aqui também que talvez Moten lance mão de uma de suas afirmações mais hiperbólicas, guiado pela ideia de que não pôde haver — historicamente — uma rematerialização sem desmaterialização, ao dizer que Tia Hester encena uma “catálise teórica” em que “o comunismo-na-(resistência à) escravidão é o procedimento de descoberta do comunismo fora do fora da escravidão”14. Embora nada seja mais desejável, necessário e urgente do que a existência de um fora do fora da escravidão, é impossível não pensar no que escreve Christina Sharpe em Monstruous Intimacies: Making Post-Slavery Subjects: a narrativa de transformação heroica pela qual passa Douglass não pôde aderir ao corpo de Tia Hester (e nem plenamente ao corpo de Douglass, que oculta sua subjeção no corpo violado de Hester). Se Douglass, como ele afirma em outra de suas autobiografias, My Bondage and my Freedom, publicada dez anos após sua autobiografia mais famosa, poderá enfrentar seu torturador, que também o açoita, removendo-se parcialmente de sua tirania, Tia Hester não terá a mesma possibilidade. É nessa mesma autobiografia posterior de Douglass que Tia Hester aparecerá como Esther. A cena do açoite de H/Esther é descrita novamente, com algumas modificações, nenhuma das quais demonstra a possibilidade de repelir seu captor, que a brutaliza para demonstrar o seu direito à posse integral de seu corpo, castigando-a por demonstrar e concretizar seu desejo por outro homem. Embora só seja possível especular sobre o motivo que leva à mudança do nome, pela via do anagrama, a reordenação das letras fazia alusão à rainha judia da Pérsia, que estava naquele momento sendo tomada pelos movimentos protestantes de negros estadunidenses como uma referência para a liberdade.15 Segundo nos diz Sharpe, Esther, escolhida pelo rei por sua beleza, transforma a indistinção masculina hegemônica entre desejo e poder na possibilidade de assegurar o direito de sobrevivência do povo judeu. Essa cena primária, que retorna a todo momento em Na quebra pelo grito que fura a ontologia humanista que justificou a própria escravidão, às vezes parece conter as premissas da aderência a um gesto sacrificial: uma expiação que também pode funcionar como um expurgo. Nos encontraríamos, então, pelo menos nesse livro de Moten, na vizinhança de uma teologia da libertação muito particular.