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Encarar a luz que cega, resistir à penumbra que conforta

Otávio Dantas

Fiquei arrependido de não ter ido à posse do Lula pela razão estúpida de não ter onde dormir. Todos viram o tamanho e a importância do que ocorreu ali. A retomada, em chave renovada, de todo o ideário do modernismo brasileiro, unindo Villa-Lobos a Niemeyer, em uma espécie de realização concreta do chiste (que não é apenas isso, claro) de Oswald, Tupi or not Tupi…, fez chorar qualquer pessoa que tenha algum tipo de humanidade e que tenha vivido os últimos anos no país. Talvez aliás o registro peculiar da imagem modernista-tropicalista-antropofágica da subida da rampa tenha sido a realização justamente daquilo que a alegoria do passado queria imaginar possível, ainda que em um instantâneo que (como sabemos) durou algo como uma semana: as imagens que no modernismo eram alegóricas aqui se tornaram humanas, e assim, embora representassem uma nação, as pessoas que subiram a rampa eram simultaneamente, elas todas, o tempo inteiro isso: pessoas. Esta parece ser a imagem que vimos nos televisores e, suponho, algo do que se sentiu nas ruas de Brasília naqueles dias: era como se a imagem modernista de um Brasil múltiplo e utópico pudesse ser revivida, mas em chave concreta, não mais como um sonho alegórico, mas feito de pessoas reais (e de uma cadelinha).

A ocupação algo caótica da rampa, a cachorrinha que não se porta, e nem poderia, com a pompa que o momento exige, as pessoas que não têm experiência em participar desse tipo de “honraria”, nada disso foi apagado da posse, antes, esse foi o seu gesto central.1 Lembra o que Niemeyer dizia em seu texto nostálgico sobre a construção de Brasília (sabemos, claro, o quanto esse texto é problemático, assim como a própria construção da cidade): depois de descrever o que ele se recordava como uma ilusão de que no entanto sentia falta, uma espécie de convivência pacífica entre classes que ele idealiza da época da construção da cidade, o arquiteto diz, "Somos, entretanto, otimistas. Breve, a ilusão que perdemos será realidade" (NIEMEYER, 1961, p. 36). Brasília é feita desse otimismo que, baseado em uma ilusão quase autoconsciente (que, para alguns, pode logicamente ser também lida como algo cínica), como que torce para que ela se realize no futuro, uma cidade que aponta para um mundo que ainda não é possível. Por um instante, no dia primeiro de janeiro de 2023, pareciam renovadas as forças capazes de repor esse tipo de pensamento — e aqui, de novo, a sua renovação era consciente: estávamos voltando, de caso pensado, a pisar em um certo ideário, uma certa tradição, que remete a muito do que se mobiliza na política nacional já há muito tempo — como se sabe.

Diante da comoção frente à retomada de algo que parecia ter se perdido para sempre, vi-me às voltas com uma questão, em parte pessoal, mas não só. Tínhamos uma nova temporada do espetáculo Verdade,2 um mergulho nas Forças Armadas Brasileiras e na sua participação nos jogos de poder recentes do país, marcada para maio de 2023, no teatro do Tusp Maria Antônia. Diante daquele desfile de otimismo, de que todos estávamos necessitados, o que menos me apetecia era ocupar o lugar daquele que levantaria o dedo para dizer, “É, mas vejam bem”, ou, “Sim, sim, mas não vamos esquecer de…” — não me apetecia, pois, e nem aos outros artistas envolvidos com que pude falar, fazer o papel daqueles que fazem a ressalva — aliás absolutamente óbvia — de que “não vai ser tão fácil assim”. Creio que não nos interessava fazer esse papel porque, já ali, no dia 1º de janeiro, parecia ser muito claro, para todos nós, que os desafios eram muitos. Não creio que estivéssemos ali querendo nos iludir. Não, ao contrário, precisávamos da possibilidade de comemorar as nossas vitórias, que eram grandes, justamente para com isso nos fortalecermos para as lutas que, sabíamos perfeitamente, seriam grandes também.

Creio, e posso dizer que tenho certeza disso, que muitos de nós não estávamos, assim, nos esquecendo de nada, não estávamos, pois, iludidos, como Niemeyer disse ter estado. A posse de Lula não teve essa característica, foi muito mais a coroação de uma vitória muito sofrida, incomensuravelmente trabalhosa, a maior tarefa política que as nossas gerações viveram, que foi a de impedir a manutenção do bolsonarismo, e impor a interrupção desse regime, depois de ter resistido a quatro anos do inferno mais absurdo que já conhecemos. A posse foi isso, foi o choro de alívio de quem sabe das dificuldades que acabaram de ser enfrentadas, mas nem por isso diminui as que virão: ao contrário, sente-se fortalecido para enfrentá-las. Assim foi a maneira como vi, como senti a posse, e a sua concretude, o seu “rosto humano”, também nos dizia o tempo inteiro isso: essa vitória era nossa, ela nos pertencia, nós (de fato) estávamos lá. Creio que essa sensação não é falsa. De verdade, para além dos acordos feitos, de todo o trabalho efetuado por Lula e aliados, em termos de negociações políticas, etc, nós fomos fundamentais para essa vitória, e aí essa primeira pessoa do plural ganha um sentido que raramente teve para a minha geração. Todos aqueles que resistiram ao bolsonarismo, que ficaram, que seguiram trabalhando, tentando sobreviver, entender o horror, lidando com ele como puderam, cada um a partir do seu ponto de vista, todos nós estávamos ali também, aquela vitória nos pertencia realmente, contava com o nosso sofrimento, com a nossa perseverança, com as nossas perdas reais. Para quê, então, nesse contexto, retornar em cartaz com uma obra como Verdade? Uma vez que não havia sentido algum em ser a pessoa portadora do lembrete, ou da má notícia, que todos nós já conhecemos de trás para diante. Mas aqui talvez houvesse algo mais para ser pensado, que para mim se conecta com acontecimentos que observei, com algum estranhamento, na temporada de 2022 da obra em São Paulo. Como já ocorreu com outros trabalhos meus e do Tablado SP, creio que também no caso de Verdade é possível interpretar algumas características da recepção da obra como sintomas de algo mais amplo do que ela.

Silêncio

Logo depois, exatamente uma semana, como se sabe, ocorreram os fatos de 8 de janeiro, chame-se como se quiser. Não creio que seja necessário narrar o ocorrido, e nem analisá-lo no todo, muitos já o fizeram. O aspecto que me interessa daquilo é justamente algo que se conecta diretamente à peça Verdade, que, desgraçadamente (acho que não é uma expressão exagerada), decidimos criar nos idos de 2019 e que nos levou — eu, Alexandra Tavares, Gabriela Elias, Nilcéia Vicente, Clayton Mariano, André Capuano e Ligia Oliveira — a entrarmos em contato com o universo bizarro, distante, ao mesmo tempo parte constitutiva da nossa realidade, que são as Forças Armadas Brasileiras. Um projeto do mais tradicional “teatro de pesquisa”, em que ficamos algo como dois anos e meio mergulhados nesse tema, entendendo suas lógicas, tentando compreender como agiam, como pensavam, de que eram feitos os militares brasileiros — e, talvez sobretudo, o que eles pensavam sobre nós. Tal processo passou longe de ser um prazer, pois de fato o terreno pesquisado é horrendo como parece quando visto de fora — na verdade muito pior.

Mas voltemos. É evidente que os eventos de 8 de janeiro têm conexão direta com as Forças Armadas. O que não é claro — nunca é — é como essa conexão se dá, ou seja, como os militares atuaram ali, e com que intenção. Em geral, com os militares, é assim: sabemos vagamente que a mão deles está ali, mas nunca sabemos como, e nem qual o nível de envolvimento. Aliás, acho que, no que se refere aos militares depois do fim da ditadura, como que não queremos saber mais do que já achamos que sabemos. Nós, e aqui me incluo plenamente nisso, simplesmente não queremos mais ouvir falar de exército, de militares, de coisas desse tipo. Estamos cansados dessas pessoas, das suas paranoias surrealistas, dos seus esquemas de guerra psicológica de manual, das suas crenças estapafúrdias etc. Sabemos que isso é um problema, não somos ingênuos, mas, mesmo cientes, preferimos não saber. E isso não por algum tipo de cinismo pós-moderno, mas, sim, por puro cansaço. No entanto, talvez não apenas por isso. Aqui, creio que vale relembrar um pouco do que citei acima como um fenômeno que me causou certo estranhamento em relação às duas temporadas de Verdade realizadas em 2022, e que parece ser um sintoma de algo.

Estreamos a obra em 14 de julho, no Centro Cultural São Paulo, e em seguida migramos para a Oswald, em uma temporada contínua, dividida em dois espaços, de 21 apresentações ao todo. A temporada, a tomar por outras obras minhas e do Tablado SP, teve um público de fato muito bom, acima da média, muitas apresentações lotadas, outras quase. Aqui se inicia o que me fez estranhar. É claro que não tenho nenhuma objetividade para analisar o “sucesso” ou o “fracasso” do meu próprio trabalho, e não estou aqui tentando abordar nada que se pareça com isso (até porque não acredito nessas categorias unitárias, justamente por conta das múltiplas formas de sucessos e/ou fracassos que uma obra pode ter3). Outra característica bastante clara da temporada foi a muito frequente tendência de que pessoas do público, conhecidas ou não, viessem, depois da peça, conversar conosco, seja por “discordarem” do que julgavam ter entendido da obra, seja por “concordarem”, e sobretudo quase sempre no sentido de tentar desdobrar as questões que o trabalho suscitava. Essa “temperatura” do impacto de uma peça no público é algo difícil de medir com objetividade, mas que se percebe com muita clareza, na prática (no caso do teatro, essa presença é bem concreta e perceptível). Nesse ponto, Verdade me pareceu semelhante a outra obra nossa, de 2015, Abnegação 2, outra peça que teve bastante impacto no público, e que — e aqui as duas obras se aproximam — também não teve praticamente nenhuma (ou ainda, literalmente nenhuma mesmo4) reverberação no que poderíamos denominar como a “crítica oficial” paulistana.5

Aqui vou me permitir entrar em um terreno perigoso, ou seja, o de falar sobre a crítica em relação a um trabalho meu, para pensar sobre essa recepção (ou a sua ausência) como um sintoma maior de como nós lidamos e pretendemos lidar com a questão militar no Brasil. É claro que esse tipo de assunto é delicado, mas vamos adiante, não vou me furtar, por receio de ser criticado, a apontar hipóteses para entender o que de fato aconteceu, e que, penso, pode nos ajudar a pensar sobre o que está nos ocorrendo em um sentido mais amplo.

Tanto no caso de Verdade como também no caso de Abnegação 2, foi possível sentir com bastante clareza a diferença clara de impacto entre o que ocorria na peça real, na sua relação com o público real, ao longo da temporada, e — nos dois casos — um relativo mas bastante perceptível silêncio por parte da crítica oficial em relação aos trabalhos. Aqui, é necessária uma ressalva (que não altera o diagnóstico): os trabalhos de Amilton de Azevedo (Ruína acesa) e de Márcio Tito (Deus ateu), que, simplesmente ignorando os limites e as dificuldades da crítica de teatro na atualidade, criaram espaços próprios, livres, off, em que efetivam um trabalho hercúleo, impressionante, de escrita sobre praticamente todos os trabalhos em cartaz na cidade. Se esses dois veículos já existissem em 2015, tenho certeza de que a primeira temporada de Abnegação 2 teria tido ao menos duas críticas escritas no calor da hora, o que de fato faz diferença, não por “valorizarem” o trabalho, mas porque o desdobram e complexificam sua relação com o público (e aqui, realmente acredito e defendo a importância da crítica, de fortalecê-la ao máximo, porque creio realmente que ela tem uma função). No entanto, à exceção desses dois veículos que, como dito, são os responsáveis por realizarem a leitura de praticamente tudo o que está sendo feito, a crítica “oficial” de teatro,6 digamos, não tomou conhecimento da obra.

Vejam bem, não me tomem pelo que não sou, não estou aqui reclamando de ter sido mal compreendido, muito menos de ter tido pouco espaço, inclusive confesso que eu mesmo talvez não escrevesse sobre Verdade, se tivesse que escolher entre obras minhas sobre as quais gostaria de escrever — não é um dos trabalhos meus de que mais gosto, se formos falar dessa forma. Digamos que não creio que goste muito dele.7 No entanto, isso não importa aqui: o que chama a atenção é, de novo, a sensível diferença entre o impacto, digamos, real da obra e o silêncio da crítica institucional. A isso se soma (e não se trata de um contra-argumento, mas de uma confirmação), os dois textos impressionantes, olhares de profundidade real, que raramente ocorre em relação ao teatro, escritos, respectivamente, por Artur Kon, nesta mesma Revista Rosa, e por Tales Ab'Saber, na revista Cult de agosto de 2022. Os dois ensaios se aprofundam em patamares de interpretação com que raramente um trabalho teatral tem a possibilidade de ser lido, e apontam para muito do que a peça quis de fato mobilizar, desdobrando tais questões em outras etc. São textos em que nós (os artistas envolvidos) nos sentimos não só traduzidos, mas de fato pensados e levados adiante, com rara complexidade, e olhares que analisam a obra em todos os seus aspectos, sobretudo na forma como ela se coloca, artisticamente, em um terreno de tão forte tensão política. Não vou comentá-los mais do que isso, apenas indico a leitura, a referência está no final deste artigo. Penso, no entanto, que estes dois trabalhos sérios e profundos reafirmam o mesmo fenômeno (sintoma) que me pareceu sumamente estranho. Vale repetir a ressalva, pois é evidente a tendência que se leia este texto de maneira equivocada: não estou infeliz com a recepção da peça, até pelo contrário: tratou-se de uma das recepções mais ricas que tivemos.8 Chama-me a atenção portanto, justamente por isso, o silêncio tão óbvio, que não combina com a realidade da obra (sua recepção de fato, não só por parte do público, mas por parte da crítica não-institucionalizada), algo que se aproxima bastante do que ocorreu com Abnegação 2, e, creio, em certa medida pela mesma razão. Já passei da idade de considerar que isso se referiria à “qualidade” do trabalho, e mesmo a qualquer característica intrínseca a ele. Estou convencido, pois, que o problema aqui, ou ainda, a questão (pois que não há problema algum) esteja no assunto da obra. Creio, portanto, que esse silêncio curioso se refere a algo nosso, algo que carregamos, todos nós, na peculiar relação que estabelecemos com os militares brasileiros — que é o real objeto da obra; daí talvez o incômodo que ela parece causar, ou ainda o sub-reptício desejo de silenciá-la. Sigamos.

Sem anistia

O peculiar em 8 de janeiro, a meu ver, não foi tanto o seu tamanho, ou toda a permissividade das polícias etc., mas sim as dinâmicas de inversão envolvidas no ato — algo que, como se sabe, é sempre caro aos manuais de guerra psicológica.9 Muitos já falaram dos perigos da inversão do lugar do terrorismo, em que as acusações que agora fazemos aos terroristas de extrema-direita poderiam supostamente voltar-se contra nós em um outro contexto. No entanto, pouco se falou sobre o assunto da anistia. Creio que aqui também há uma inversão.

Quando se gritou a palavra de ordem “sem anistia”, durante o discurso de posse de Lula, não penso que estivéssemos pensando, ao menos não em um primeiro plano, nos militares, mas sim, em Bolsonaro, e em todos os “seus comparsas”, alguns deles militares, mas muitos civis. Aqui, no entanto, faz-se importante citar algo que durante a pesquisa que resultou em Verdade realmente aprendemos: as Forças Armadas Brasileiras, ao contrário do que se divulga o tempo inteiro, não têm diversas “alas” internas. Isso simplesmente não existe. Muitos são os estudiosos que o relatam, e trata-se mesmo de um consenso com que estão de acordo desde Piero Leirner até João Roberto Martins, passando por Marcelo Pimentel, e outros: as Forças Armadas agem de maneira unitária, não há, portanto, diferenças de posicionamento dentro do oficialato brasileiro atual — todas elas foram expurgadas com sucesso durante a ditadura, e não foram mais permitidas jamais desde então.

É aqui, então, que me parece ocorrer a inversão talvez mais assustadora que o 8 de janeiro nos propõe. Nós, quando gritávamos “sem anistia”, tínhamos em mente, salvo engano, sobretudo Bolsonaro, seus filhos, alguns militares que ele “corrompeu” etc, mas quase nunca as Forças Armadas Brasileiras, ou ao menos o Exército brasileiro como um todo. No entanto, em 8 de janeiro, curiosamente, o Exército como um todo se posiciona, não para desaparecer (como seria de se esperar, digamos, em um raciocínio mais óbvio: deixar a bomba explodir no colo do Bolsonaro, retirar-se de cena silenciosamente, caso quisessem efetivamente, digamos, sair “numa boa” do processo, e conseguir a sua anistia). Ao contrário, o Exército, em 8 de janeiro, faz tudo o que pode para ser lembrado. Desde diversos posicionamentos públicos, e sobretudo com o concreto (e institucional, uma ação que não pode ser delegada a um indivíduo apenas) impedimento que a polícia desfizesse os acampamentos que havia na frente do quartel em Brasília (para defender os seus familiares, como se sabe).

A ideia de anistia remete, justamente, a um silenciamento, ao pacto do fim da ditadura, quando gritamos “sem anistia”, estamos dizendo que não queremos que os crimes cometidos sejam silenciados de novo, como daquela vez, quando tal pacto, no entanto, foi-nos proposto por eles. Ora, se as Forças Armadas quisessem que os seus crimes fossem silenciados, a primeira coisa a fazer seria, suponho, ficarem em silêncio, e propor, de preferência por trás dos panos, uma espécie de “transição lenta, gradual e segura”. O que os militares fazem em 8 de janeiro? Ao contrário de apagar as suas pegadas, parecem fazer questão de deixá-las ainda mais evidentes, de diversas maneiras (inúmeros são os tuítes nessa direção, os posicionamentos imediatamente anteriores, a mencionada atitude de simplesmente impedir a polícia de agir, etc). Em outras palavras, o que quero dizer é que, se nós, por nosso lado, gritávamos “sem anistia”, as Forças Armadas, de sua parte, gritavam a mesma coisa. E aqui, creio, entra o que há de bizarramente peculiar na nossa relação com as Forças Armadas, algo que talvez seja o mesmo aspecto que Eliane Brum conceituou como o fetiche da farda (BRUM, 2020).10


A minha hipótese é muito simples (em terrenos tão lamacentos é bom tentar manter a simplicidade). Depois da vitória de Lula, em outubro, sentimos que tínhamos a capacidade de — com muito trabalho, não estávamos iludidos aí — lidar com o bolsonarismo e que, com o tempo, conseguiríamos talvez desbolsonarizar o país, por meio da punição dos envolvidos em crimes, e assim por diante, a começar pelo próprio Bolsonaro. Há, no entanto, uma variável nesse cálculo que, acho, como que fazemos questão de esquecer, que são as Forças Armadas. Eu mesmo me vejo fazendo isso. Como se trata de uma instituição inteira, que sabemos extremamente fechada, retrógrada, muito difícil de mexer, tendemos a tentar acreditar que de alguma forma eles vão se resolver a si mesmos, sair de cena, “voltar para os quartéis”, na medida em que retirarmos dali os elementos bolsonaristas, as “alas golpistas”, etc. Esta versão não existe à toa: é o que a grande imprensa nos faz escutar todos os dias, através dos jornalistas que supostamente têm acesso aos meios militares. As Forças Armadas, no entanto, no 8 de janeiro, e na verdade em muitas outras ocasiões recentes, fazem o movimento diametralmente inverso, e nos forçam justamente a lidar com elas, a não as esquecer — a não as silenciar. Porque, por incrível que pareça, eles é que não queriam a anistia. Eles simplesmente não consideram que exista nada a ser anistiado, e estão nos dizendo o tempo inteiro o exato contrário (inversão): exigem o reconhecimento, de nossa parte, de que jamais cometeram crimes e a manutenção dos lugares de poder e protagonismo que eles conquistaram nos últimos anos — nada menos do que isso.

Assistindo, assim, ao dia 8 de janeiro, me dei conta de que, de certa forma, o que o Exército estava fazendo ali era em parte a mesma provocação que Verdade instaurava no terreno teatral, porém, em chave invertida — e aqui, creio que a peça de certa forma soube reconhecer algo do lugar das Forças Armadas no país hoje: elas é que se recusam a se esconder sob a ideia de um silenciamento que a anistia envolveria; elas é que nos gritam “sem anistia”! Para lidar com isso, portanto, creio que precisamos olhar de frente para um problema que nunca chegamos a encarar, e aqui acho que cabe a ideia de Brum, não evidentemente para de alguma forma mistificar ainda mais o assunto, mas para abordar algo que, penso, é talvez também o que gerou essa certa reação algo estranha da crítica institucional em relação a Verdade.

O tal fetiche da farda se deve talvez a muitas coisas, mas uma delas, talvez a mais importante, é bastante óbvia (como tudo o que se refere aos militares, há certa obviedade envolvida, que, no entanto, não se vê): deve-se ao medo. Sim, acho que nós temos muito medo dos militares. Não o medo que teríamos de um bandido inescrupuloso, mas de um pai tirânico que nunca deixamos de secretamente desejar que volte a nos tratar como merecemos (ele, que jamais o fez). Com o perdão da metáfora paterna clichê (tudo o que é militar é clichê), creio que haja algo de verdade aí. Creio, pois, que o silêncio relativo sobre Verdade se deva em grande medida simplesmente ao medo, a um medo que secretamente deseja que o problema desapareça por si só. Um medo que pode aparecer disfarçado de estratégia (o velho “não é o momento de falar sobre isso”), ou então, de dificuldade material (o também velho “tinha tanta coisa em cartaz, não deu tempo”), ou ainda, eventualmente em forma de juízos estéticos facilmente inventáveis para evitar o problema. Talvez seja esse o resumo do que quero dizer, e quero dizê-lo também para mim mesmo: infelizmente, nós ainda estamos, em relação ao exército brasileiro, e às Forças Armadas Brasileiras em geral, simplesmente evitando o problema. Há várias formas de fazê-lo. A troca de comando que foi realizada no dia 21 de janeiro,11 por exemplo, qualquer estudioso dos militares sabe, vários o apontaram, não significa nada nem mesmo próximo de punição, e sim apenas um jogo de cena para aparentar que o comando está sendo assumido. Talvez seja um sinal — inversamente ao que gostaríamos de imaginar, e com certa ironia amarga contida — de que os militares, eles, tenham afinal aceitado parcialmente a anistia que lhes foi proposta por nós. Jamais um sinal de que serão punidos. Se quisermos punição de fato, a meu ver, teremos que começar a discutir seriamente a necessidade da própria existência das forças armadas brasileiras. Se elas forem efetivamente necessárias (como se sabe há exemplos de nações que não as têm), teríamos que reduzi-las àquilo que lhes é efetivamente específico, e alterar completamente as suas estruturas. Evidente que não sou aqui ninguém além de um cidadão brasileiro, não sou especialista em Forças Armadas, só estivemos, eu e mais umas amigas e amigos, por algum tempo, passeando por esse universo bisonho (não no sentido que eles usam essa palavra), e me permito emitir a minha opinião como meropaisano (é assim que se referem a todos que não são militares, ou seja, a todos nós) sobre o que concluo de tal passeiosumamente desagradável: é urgente que olhemos sem temor para as Forças Armadas, e isso significa entender que o problema é muito mais difícil de resolver do que parece.

Ainda que não tenhamos força para alterar tudo o que queremos agora, há algo que com toda certeza não podemos voltar a fazer — e curiosamente são eles os primeiros a nos dizer isso: não podemos em hipótese alguma tentar fingir que esse problema não existe ou que se resolverá por conta própria. Não, as Forças Armadas Brasileiras são nossas e precisamos entendê-las e tomá-las nas nossas mãos, perguntar-nos sobre a sua real função e necessidade, ou seja, discuti-las a sério, e com certeza desnaturalizá-las. Não podemos simplesmente delegar esse assunto sempre a outros, ao Lula, a não sei que ministro, ao governo, isentando-nos completamente de lidarmos com o problema e esperando que ele se solucione, simplesmente porque isso não vai acontecer (tudo já o indica).

Para explicitar minha posição pessoal, tenho a impressão de que o governo lidou de forma primorosa com a situação do 8 de janeiro, tendo em vista o tamanho do jogo de forças com que estavam lidando. A meu ver, querer que o governo se mostrasse, ali, mais enérgico em relação aos militares, como se isso fosse uma mera questão de vontade, é não ter dimensão do tamanho do problema. Quando digo, assim, que para mim nosso horizonte deveria ser a revisão total das Forças Armadas, entrando inclusive no mérito de entender a sua real necessidade (ou algo próximo disso), não estou afirmando que isso tem como ser feito agora, menos ainda que deveria ter sido feito naquele momento, ou que o governo devia ter se posicionado de maneira diversa ali. No entanto, preocupa o silêncio que volta a rodear aos poucos o assunto, e nisso creio que nós precisamos estar atentos. Cabe a nós compreender o que é essa instituição e tomá-la nas nossas mãos, só a partir disso o governo poderá talvez agir de maneira mais efetiva em relação a ela. Como se sabe, é um problema que se arrasta desde a anistia, questão que de alguma forma foi atropelada pelas Diretas Já, e agora estamos novamente correndo grande risco de atropelar novamente a discussão sobre essa espécie de nova anistia. É claro que sabemos que a nossa tarefa central nesses próximos quatro anos, já imensa, é a de desbolsonarizar o país, o que passa por muitas frentes — apenas uma delas (central) sendo as Forças Armadas. É claro que é complexo realizar esse tipo de ação, sobretudo quando não estamos saindo de uma derrota militar. A Alemanha se desnazificou depois de ter sido esmagada militarmente — é uma situação completamente diversa. O fim da ditadura argentina se seguiu a uma derrota militar nas Malvinas. Ao que parece, portanto, levando em conta o contexto, o governo se iniciou de forma exemplar.12 A maneira como, depois dos fatos do dia 8, o ministro Flávio Dino desviou da armadilha mais óbvia, que seria instaurar uma GLO, e deixou os militares como que escanteados no processo, pareceu extremamente habilidosa (e evitou a estratégia mais evidente deles, que era a de retomarem o orgulho das Forças Armadas e saírem como defensoras da democracia — Flávio Dino evitou isso, e os manteve no lugar mais facilmente desmoralizável que já estavam ocupando). Depois, no entanto, ao que parece, se manteve essa via, ou seja, criando um enfrentamento mais direto com os bolsonaristas civis, e abordando a questão militar de maneira menos central. A estratégia ao que parece vem sendo essa (e aqui se mostra claramente como o silêncio da crítica sobre Verdade fala de um medo que é bem maior do que ela, e que é bastante concreto — de resto é também disso que a própria obra fala, ou é disso que ela parte): gritamos “sem anistia!” para os bolsonaristas civis, enquanto sussurramos “anistia!” para os militares, que, aliás, ainda não sabem se a aceitarão. Cabe a nós, se tivermos coragem para tanto, pautar o contrário, e começar a entender e questionar radicalmente o lugar das Forças Armadas nesse país.

É, pois, com esse espírito que gostaria de retomar Verdade nesse ano, com o fito de, ainda mais uma vez, olhar de frente para esse ambiente, e para essa lógica. A peça é também uma provocação, e uma autoprovocação, para que façamos isso. Para sermos provocados, no entanto, precisamos sair da posição retraída que ocupamos e superar o nosso medo fetichista (que aliás é perfeitamente justificável e de que eu mesmo compartilho, afinal estamos falando de uma instituição que vive de chantagem, como gângsters, oferecendo-se para nos defender basicamente do que eles próprios ameaçam fazer, e fazem13).

Eu preferiria com certeza apenas levar adiante o estandarte neomoderno-tropicalista do novo lulismo, e me arrependo profundamente de não ter estado na posse por isso, no entanto, mais do que ser aquele que faz ressalvas à vitória e lembra que existem os problemas de que todos jamais esquecemos, sinto que gostaria de nesse momento tentar ajudar a mensurar as suas dimensões reais, que são de fato bem maiores do que tendemos a pensar. Desse ponto de vista, creio que é preciso ver, como colocado no início, os sinais, as anomalias que percebemos na superfície como sintomas. No entanto, assim como não basta, em um ambiente de análise, saber da existência de uma neurose, é preciso ter coragem para compreendê-la, olhar com toda a calma para as suas dinâmicas e lógicas, para poder lutar contra ela; assim também, creio, é que precisamos lidar com essa nossa espécie de doença formativa (as Forças Armadas): não basta saber que ela existe, é preciso observar a maneira como ela age, entender a sua lógica, perder o medo diante dela, para então agir contra ela. É assim que Verdade retorna, penso: querendo nos ajudar, em um momento muito mais favorável que o da sua estreia, a lidar com uma doença que sabemos que existe, mas que não temos ideia de como abordar, cujo maior risco no entanto é a tentação de acreditarmos que se resolverá por si só. Isso não vai acontecer e ao que tudo indica, de novo, pagaremos caro por acreditar nisso mais uma vez.

É urgente abrir mão de qualquer aparência de esperança difusa que ainda nutrimos em relação a essa instituição (que é o lado secreto do medo estranho que sentimos dela). Para isso, o caminho não passa por ridicularizá-la e diminuí-la dentro do nosso próprio discurso, ou silenciar aqueles que tentam abordá-la, mas, pelo contrário, em procurar entendê-la na sua força e também na sua pequenez reais. Não creio que Verdade faça isso, não creio que a peça entenda e nemexplique propriamente nada, mas talvez nos auxilie a lidar com o nosso próprio espanto diante dessa parte integrante do nosso mundo que gostaríamos tanto de fingir que não existe.


Faz tempo que já é lugar-comum falar sobre “o contemporâneo” nos termos do célebre ensaio de Agamben, para quem olhar para o contemporâneo é olhar para a sombra do agora, e não para a sua luz.14 No entanto, se unirmos essa ideia ao conceito de profanação, como o pensa o próprio filósofo italiano, poderemos pensar que, assim como o capital vive atualmente, não da conservação de qualquer tipo de aura improfanável, mas, ao contrário, justamente da captura do gesto profanatório, assim também vive de criar regiões de sombra, incluídas na própria luminosidade do agora, que no entanto estão lá justamente para serem profanadas. Digamos que os jogos de luz e sombra complexificaram-se de tal modo que aquilo que aparentemente está no escuro, assim como o que está aparentemente sendo profanado, muitas vezes já existe justamente para isso. Temas aparentemente “tabu”, tornam-se justamente o mainstream, e vice-versa, a depender do momento, em um vaivém que passou a ser o próprio motor do sistema15. Em outras palavras, é como se a ideologia na atualidade funcionasse sobretudo tendo como seu combustível a própria profanação, como indica Agamben, mas também incluindo no seu movimento ideológico, com todo o cinismo necessário para isso, o próprio gesto de olhar na direção inversa à da luz — ou seja, hoje, de certa forma, muitas vezes aquela “luminosidade” que Agamben apontava, a parte mais explicitamente visível do contemporâneo, que nos impede de enxergá-lo de fato, é justamente o que parece estar na sombra, já que todos estão o tempo inteiro tão focados no escuro da noite que, inversamente, essa própria mirada em direção às sombras aparentes se torna uma maneira extremamente eficiente de esquecer voluntariamente que há, digamos, estrelas gigantescas explodindo bem diante de nós, soterrando-nos com seus estilhaços. É assim que um assunto tão evidentemente fundamental como os militares brasileiros torna-se uma espécie de tabu invertido, a um só tempo esfregado todos os dias nas nossas caras, mas sobre o qual não se ousa falar.

Estejamos atentos, pois nesse contexto por vezes a melhor forma de se esconder pode ser justamente manter-se diante dos holofotes. Olhar para o contemporâneo em um tal ambiente talvez signifique, além de enxergar a luz que está tentando nos alcançar por trás da escuridão (Agamben), por vezes também conseguir encarar os holofotes do agora de tal maneira que possamos, neles, entrever aquilo que à primeira vista não enxergamos, não porque esteja escondido na penumbra difusa, mas sim porque torna-se indiscernível pela ofuscação da luz.