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A obscena senhora D ou a escrita do sacrifício

, Chris Moraes

O livro A obscena senhora D, publicado em 1982, opera uma profunda reflexão a respeito da morte. Nessa direção, é possível estabelecer uma relação íntima entre a obra de Hilda Hilst e o presente contexto pandêmico em que tantas vidas foram perdidas. Na perspectiva de quem habita um perene estado de luto, a protagonista Hillé mantém um intenso diálogo com o seu esposo já falecido, Ehud — a materialização constante da finitude humana. Por ocasião dos seus 40 anos de publicação, pretende-se aqui ampliar tal discussão com o objetivo de trazer a lume um viés interpretativo não tão explorado pela fortuna crítica: a elaboração ritualística da morte, sob a figuração do sacrifício. Dito de outro modo, pode-se considerar o texto hilstiano como a atualização do sentido do sacrifício como prática religiosa, cuja vítima consagrada aponta para uma dimensão sagrada da morte.

Com a “alma em vaziez”, a senhora D vive em uma situação de completo despojamento a ponto de ser “só eu e o Nada do meu nome, minhas mesquinharias, meu ser imundo, um Nada igual ao Teu, repensando misérias” (Hilst, 2018, p. 33).1 Em permanente procura pelo sentido último das coisas — “isso de vida e morte, esses porquês” —, Hillé rompe com a cegueira embotada de todos aqueles que a circundam e os lugares-comuns enrijecidos pela “sangrenta lógica dos dias” para somente assim selar o seu real encontro consigo mesma: “estou encostada à parede no vão da escada, escuto-me a mim mesma, há uns vivos lá dentro além da palavra, expressam-se mas não compreendo, pulsam, respiram, há um código no centro, um grande umbigo, dilata-se, tenta falar comigo, espio-me curvada” (p. 19). Abandonar-se no vão da escada sinaliza o estado de total renúncia e de abertura para um “centro”2 sagrado vivo, pelo qual é possível comunicar-se com uma verdade mais vasta e não verbalizável. O gesto de desintegração e de reduzir-se a nada, encaminhando-se para uma realidade sobre-humana, metaforiza o próprio regime do sacrifício, cuja dinâmica entre a morte e a vida está prenunciada nas imagens do poema3 que antecede a obra:

Para poder morrer
Guardo insultos e agulhas
Entre as sedas do luto.
Para poder morrer
Desarmo as armadilhas
Me estendo entre as paredes
Derruídas.
Para poder morrer
Visto as cambraias
E apascento os olhos
Para novas vidas.
Para poder morrer apetecida
Me cubro de promessas
Da memória.
Porque assim é preciso
Para que tu vivas.

(p. 15)

O “morrer” é o pórtico, o caminho necessário, no qual uma existência, “entre as sedas do luto”, é imolada para que outrem “viva”, qual seja, insuflar “novas vidas”. O sacrifício4 é uma palavra de origem latina que se remete ao ato de fazer ou de revelar o sagrado, isto é, de executar a passagem da esfera do profano à do sagrado por intermédio da imolação ou da destruição de uma vítima. Com efeito, o ritual sacrificial por si só já está atrelado à noção de perda e não raro à violência de um aniquilamento. Pois, o princípio do sacrifício está interligado não somente à destruição e à ruína, mas também à abnegação e à doação. Consoante Bataille (2016b, p. 42), “sacrificar não é matar, mas abandonar e dar”. Com base nisso, essa “alguém-mulher” abdica da vida anterior e, reduzida à condição de “minimez”, sacrifica o que é convencionalmente aceitável dentro das normas prescritas pelo convívio social — tanto é assim que, além de ser tachada de louca ou de “exibida cadela”, recebe dos vizinhos na vila onde reside a alcunha de “Porca”, a “mulher desse Porco-Menino Construtor do Mundo” — em prol da experiência radical de perder-se: “Como foi possível ter sido Hillé, vasta, afundando os dedos na matéria do mundo, e tendo sido, perder essa que era, e ser hoje quem é?” (p. 21).

A operação de perda ocupa a centralidade da estruturação da narrativa de Hilda Hilst. Em nota de trabalho a propósito de A obscena senhora D, a escritora sugere que a “Busca” de Hillé envolve um processo sacrificial de morte, que, ao deflagrar o “eu essencial”, impulsiona a “ressurreição” para uma nova possibilidade de existir:

A Senhora D é faminta de sua essencialidade. Busca o inominável dentro de si mesma e usa multiplos artifícios ao longo dessa Busca, para encontra-lo. Desafia, instiga, provoca, anula-se. O ego artificial quer morrer. A alma imortal quer emergir. […] A intensidade da experiencia no eu essencial (dependendo da gradação dessa intensidade) afasta o homem da comunidade. Dobrar-se sobre si mesmo, ‘morar no vão da escada’, ir até e não mais possivel, para emergir. Há alguns riscos nessa Busca, um deles é a loucura, e estar frente a frente com seus demonios e não suportar. Há uma grande esperança: a ressurreição, isto é, uma nova e luminosa aceitação de si mesmo e do outro.5

É forçoso ressaltar que a decisão de residir no vão da escada torna-se sinônimo de “dobrar-se sobre si mesmo”, de forma a desenhar um círculo em torno do próprio centro. Esse traço alude à própria disposição da letra D, a saber, à “primeira letra de Derrelição, doce curva comprimindo uma haste, verticalidade sempre reprimida” (p. 24). À luz da circunferência de uma “doce curva”, Hillé perfaz um arco intersecionalizado pela “verticalidade” da escada. A curvatura para a aliança com a totalidade não se completa; figurando-se, dessa maneira, como um semicírculo tensionado, em ângulo perpendicular, por uma linha ascensional. É nesse conjunto de forças que se delineia a busca.

A trindade erótica: Deus, Hillé e Ehud

Na demanda constante por Deus, é sintomática a decisão de passar a residir no vão da escada, que, como uma espécie de limiar ou de lugar de passagem, constitui uma das possibilidades de ingresso no espaço do sagrado. Ou, ainda, como interpreta Maria Thereza Todeschini (1989, p. 10), a movimentação pela casa obedece a um “sentido agônico da cruz”, que culminará em sua oferta em sacrifício. De todo modo, Hillé dispõe-se justamente no meio do caminho entre o terreno e o celeste, o profano e o sagrado. Nesse sentido, Nelly Novaes Coelho escreve em seu importante ensaio “A agonia dialética de A obscena senhora D”, de 1983, que a personagem “cristaliza o momento-de-assombro, em que o homem se descobre ponte, passagem (entre o absoluto e a vida-em-ato), mas não consegue descobrir a grandeza desse destino, porque permanecem no oculto as respostas”. Às apalpadelas, além da “ponte” que em forma de linha vertical ata o baixo e o alto, Hillé traça uma geometria, na qual, por intermédio de um liame triangular, interpela diretamente, com a potência dramática dos diálogos, Ehud — o amante — e o ser divino — o “pai eternamente ausente” —, lançando sobre eles as indagações sem respostas.

Desnudando-se do “nome” ou dos “sessenta anos”, Hillé sente visceralmente o desamparo interno diante da “espessa funda ferida da vida” (p. 56), de onde se abisma a consciência do devir temporal e do isolamento pela solidão, assim como se escancara a pequeneza humana diante de Deus, do Infinito, do Imperecível ou de um “pai eternamente ausente”. Resta, por conseguinte, uma incompreensão que parte também da própria divindade encarnada, em virtude da negligência e, sobretudo, da inexistência de um sentimento de complacência com relação ao seu rebento terreno. Nesse viés, desmonta-se a promessa ou o consolo de que o evento de crucificação de Jesus pudesse oferecer a libertação da humanidade de todas as suas faltas. Tomada pelo desespero, Hillé se dá conta de que o distanciamento entre Deus e os seres humanos apenas se amplifica,

porque todas as perdas estão aqui na Terra, e o Outro está a salvo, nas lonjuras, en el cielo, a salvo de todas as perdas e tiranias, e como é essa coisa de nos deixar a nós dentro da miséria? que amor é esse que empurra a cabeça do outro na privada e deixa a salvo pela eternidade sua própria cabeça? e o que Ele fez com Jó, te lembras? (p. 49)

Nessa fala de Hillé reside toda a dramaticidade presente nas procuras incessantes empreendidas pelas personagens hilstianas, cujas existências se encontram, em sua maioria, cindidas pelo divórcio com o “Outro”. Elabora-se uma crítica severa no tocante a esse Deus, que vive apartado nas “lonjuras” celestes; caracterizando-se, por um lado, como indiferente às “perdas” e às “misérias” do homem; por outro, ocupando a posição de um rei déspota e truculento por não prover a proteção acolhedora e desferir contra aquele as suas “tiranias”, tal como fez sofrer a personagem bíblica de Jó. A senhora D coloca em xeque toda a construção de um ideal cristão de sacrifício investido pelo Santíssimo contra o próprio Filho: antes de denotar uma prova do seu amor condoído pela danação da humanidade, pode significar, nas palavras de Nelly Novaes Coelho (1983), a extensão de uma “fraude” divina:

Prisioneira em um universo estigmatizado pela culpa, e de onde a esperança na redenção desertou, compreende-se que a revolta de Hillé se exerça contra aquele que é o símbolo da esperança na vida redimida — aquele que João Batista chamou de “Cordeiro de Deus”, vindo para se imolar pelos pecados dos homens. É contra esse “Cordeiro” que a senhora D investe, chamando-o de “porcomenino”, e assim denunciando a fraude em que ele transformou a esperança que sua vinda anunciara.

Hillé produz, de fato, uma revolta contra todo o legado do cristianismo alicerçado sobre a “esperança” de salvação em um plano superior e sobre-humano: a vida eterna. Apesar de se corroborar o posicionamento crítico da intérprete, vale sublinhar que aqui não se trata mais, ou unicamente, de um imaginário pertinente a um Deus cristão — vingativo e punitivo — e das ambivalências mutuamente excludentes: bem e mal, céu e inferno, remissão e pecado. A demanda religiosa da personagem prescinde de uma inclinação à culpa ou de qualquer preocupação quanto à salvação ou à imortalidade. Ao contrário, o vislumbre epifânico do Menino-porco marca a aparição desse “Outro”, ou seja, dessa divindade incorporada ao dionisismo e à ritualística pagã, na qual “tudo se representa na existência presente. O desejo incontestável de uma liberação, de uma evasão para um Além, não se exprime sob a forma de uma esperança de uma outra vida, mais feliz, depois da morte, mas na experiência, no seio da vida” (Vernant, 1999, p. 340). Por assumir as contradições da vida, o deus dionisíaco de Hilda Hilst reivindica o lugar do múltiplo, do transitório e da ambiguidade, sob uma profusão criativa de formas e de contornos, convergindo em unidade o deus, o homem e o animal. Com o seu espírito selvagem, ele opera a destruição dos limites entre o divino e o bestial, a razão e a loucura, o aqui e o Além.

A trindade sacrificial: Deus, Hillé e a porca

A senhora D já apresenta, na própria designação, a marca da experiência do dispêndio — a “derrelição”. No seu desnudamento, Hillé é uma “alguém-mulher” que procura o sentido das coisas e, para isso, enfrenta a tarefa hercúlea de nomear. Afinal, “os sentimentos vastos não têm nome”.6 Uma vez que resvala no inominável, em que o intelecto ou a capacidade racional malogram, tal tarefa aciona muitas vezes os sentidos do corpo humano para suprir essa lacuna: “Por que me chamo Hillé e estou na Terra? E aprendi o nome das coisas, das gentes, deve haver muita coisa sem nome, milhares de coisas sem nome, e nem porisso elas deixam de ser o que são, eu se não fosse Hillé seria quem? Alguém olhando e sentindo o nome” (pp. 29–30). A visão corrobora a possibilidade de apreender o nome, de sorte que o olhar dispara uma luminosidade instantânea sobre os seres e as coisas — “um oco ardente de luz”.

Para Hillé, conhecer a realidade ao seu redor significa sofrer dela. Dito de outra forma, implica tornar o abandono, a ferida da perda em “matéria viva”, em saber que reluz, a olho nu, nas superfícies. Nessa associação entre o conhecimento e o sofrimento, a consciência e a privação, a senhora D encarna a persona de uma “Édipo-mulher”. Tal como o herói sofocliano, ela reconhece os limites humanos e, além disso, o quanto o seu itinerário até então foi feito de “inutilidades” e de certezas esvaziadas. No auge dos sessenta anos, já na iminência da velhice, Hillé depara-se com o seu corpo, o qual está naturalmente acometido por um processo de desgaste, de definhamento e de abatimento do combustível vital — o assombro do ser humano diante do implacável prenúncio da morte. A senhora D trilha a “via do excesso”.7Em consequência disso, combina a vitalidade da paixão e o quadro de finitude inerente à senilidade e ao sepulcro do esposo. Nesse trecho em específico, a encenação desse corpo em ruínas, no decurso avançado de desintegração, lançado às chamas do “desperdício”, evoca a própria insuficiência da faculdade de compreensão e do dizer humano.

Em A obscena senhora D, a realidade tão somente ganha contorno e sentido mediante a aparição da porca, a senhora P, que é quando, finalmente, Hillé adquire a compreensão. O vislumbre do “concerto todo” parece estar condicionado à triangulação, quer dizer, à trindade composta pelo animal, o humano e a divindade. No tocante às narrativas de Hilda, as personagens reportam-se aos ritos sacrificiais, nos quais se instaura um vínculo sagrado entre três elementos: Deus, o homem e o animal — estes dois últimos no papel do sacrificador e do sacrificado, respectivamente. Convém ressaltar que, para que ocorra tal vínculo, o fenômeno de identificação torna-se fundamental, no qual a “vítima é o intermediário pelo qual a corrente se estabelece. Graças a ela, todos os seres que participam do sacrifício se unem, todas as forças que nele intervêm se confundem (Mauss; Hubert, 2013, p. 51). A porca ocupa a posição do elemento “intermediário” que ata, como uma corda, uma extremidade à outra, tornando possível a projeção ou o espelhamento da senhora D na figura animal e, assim, o acesso à aura sagrada do entendimento. É sintomático disso, no encerramento da narrativa, a materialização do Porco-Menino no nível do discurso; sugerindo, com o repentino e misterioso apagamento de Hillé, a cabal integração com o absoluto.

Ainda no desfecho, a senhora D passa a conviver com a senhora P, o nome dado a uma porca que fugiu de um quintal da vizinhança. De acordo com Raquel Cristina de Souza e Souza (2007, p. 62), a visão do “rombo sanguinolento” existente no dorso do animal “leva Hillé a uma identificação tal que difere da atitude do senso comum de ignorar o valor do sacrifício do animal. A ferida aberta na porca viva […] é a vida que jorra, como a vida que se esvai aos poucos no momento da imolação”. Essa visão do “rombo sanguinolento” existente no dorso do animal, isto é, essa cisão proveniente do corte reflete o próprio dilaceramento interior em “roxo-encarnado”, a sua “própria ferida, a espessa funda ferida da vida”, que deixa escapar o dilaceramento da incompreensão e do exílio existencial em face de um “sem-fim, sem-fim, sem-fim [do] nosso existir sem-Deus” (p. 56). Hillé escancara a fenda que se abre sobre a morte, destroçando a montagem humana, enquanto “ser que se descasca” (p. 53). Tanto é que, nos últimos parágrafos, a senhora D desaparece textualmente para ser referida, por meio de uma instância narrativa impessoal, tão somente como “ela”. A precária forma humana é abandonada, como em um ritual de sacrifício, em prol de uma identificação completa8 com a vida animal: “E me vem que só posso entender a senhora P, sendo-a” (p. 56). Por outro lado, o Senhor, espelhando-se nela, “muito deseja[s] ser Hillé, um atormentado ser humano” (p. 56). Firmando o consórcio, ela enquanto “porca ferida” pode então encarnar amorosamente a esposa do Porco-Menino Construtor do Mundo.

A saga de Hillé, na tentativa de obter explicações possíveis para as indagações presentes na jornada pelo autoconhecimento, implica o desafio de enveredar-se em um processo de dissolução e de desintegração, conduzindo-a até os limites derradeiros — o sacrifício. Buscar Deus é, para Hillé, a grande paixão, sempre associada à experiência (de destruição) do corpo. A expiação ou o sofrimento plenificam-se no instante de abertura para um existir completo pela comunhão com o numinoso. Finalmente como senhora P, cingida pela circularidade infinita do “incrível sol de hoje”, Hillé transpõe o umbral da morte para a ressurreição, integrando-se à santidade que a permite finalmente atingir as raias do sentido, tal como se anuncia na resposta do Menino-Porco presentificado na cena narrativa: “Um susto que adquiriu compreensão” (p. 57). Em suma, tal desenlace coroa a invocação final da narradora: “Livrai-me, Senhor, dos abestados e dos atoleimados” (p. 57).