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A história do PT

Detalhe do painel Massa, Carol Caliento,
óleo sobre impressão em tela, 2012

Fui convidado pela Revista Rosa para fazer uma resenha sobre o livro PT, uma história, de Celso Rocha de Barros, publicado pela Companhia das Letras, em 2022. Trata-se de um livro a respeito da história de um dos mais importantes e progressistas partidos de esquerda do planeta, baseado em um conjunto de mais de sessenta entrevistas com os principais dirigentes, parlamentares, além de documentos tanto do Partido dos Trabalhadores, como também daqueles que interagiram com membros do partido. A obra está bastante completa. Achei por bem trazer informações relevantes sobre episódios dos quais participei.

Em agosto de 1976, o então assessor econômico, Osvaldo Cavinato, do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, disse ao Lula: “Hoje vai falar na minha classe de 4º ano de Economia, da Fundação Santo André, aquele professor Eduardo Suplicy, que escreve na Folha de S.Paulo. Você não quer assistir?”. O Lula foi. Eu fiz uma palestra sobre como o Brasil crescia bastante, mas com forte concentração de renda e riqueza. Que se um dia os ouvintes se tornassem ministros da Economia precisariam dialogar não apenas com os empresários, mas com os trabalhadores que seriam afetados por suas decisões.

Ao terminar a palestra inicial, abri para perguntas e observações. Lula logo levantou a mão e fez diversas colocações. Ao que o professor lá atrás então reagiu: “O que vai dizer o diretor da faculdade na hora em que souber que aqui está presente um perigoso líder sindical?”. Lula ficou sem graça, saiu da sala. Ao terminar de responder todas as perguntas, eis que Lula, junto com Devanir Ribeiro, estava no pátio me aguardando. Conversamos bastante e ele disse: “Apareça lá no Sindicato, vamos continuar a conversar”. E assim o fizemos. Anotei algumas opiniões de Lula em meus artigos.

Por ocasião das eleições de 1978, a Editora Brasiliense fez o lançamento de meu livro, Compromisso, de artigos na Folha de S. Paulo, em evento no calçadão da Rua Barão de Itapetininga, organizando um diálogo meu com Lula e outro líder do Sindicato dos Padeiros, José Afonso da Silva. Cerca de 200 pessoas estavam assistindo. Segundo Osvaldo Bargas, diretor do Sindicato dos Metalúrgicos, aquela foi a primeira vez que Lula elaborou sobre a necessidade de se formar um Partido dos Trabalhadores.

Fui então eleito deputado estadual pelo MDB com 78 mil votos. No primeiro ano de meu mandato na Alesp, ocorreram inúmeros movimentos de reivindicação por melhores salários e direitos por parte dos metalúrgicos do ABC, dos lixeiros, professores, entre outros. Procurei ser solidário a eles. Fiz uma entrevista com os que foram indiciados na Lei de Segurança Nacional e a li na tribuna da Alesp.

Houve também preocupação com a ofensa aos direitos humanos com menores infratores, o que me levou a visitar a Febem. No segundo semestre de 1979, seis deputados eleitos pelo MDB em 1978, Irma Passoni, João Batista Breda, Marco Aurélio Ribeiro, Sérgio dos Santos, Geraldo Siqueira e eu fomos convidados para sermos fundadores do PT, e assim o fizemos em 10 de fevereiro de 1980. Li então os estatutos do PT que falavam da construção de uma sociedade mais justa por meios pacíficos e democráticos. Que o PT viria para dar voz e vez aos que não eram suficientemente ouvidos. Transmiti aos meus eleitores que gostaria de saber o que achavam de eu participar da fundação do PT. Muitos responderam: “é o que nós esperamos de você.”

Nos primeiros meses da história do PT ainda não havia sede, e algumas das primeiras reuniões da direção do partido se deram em minha residência. Uma de nossas primeiras batalhas na Alesp foi para que tivéssemos um governador eleito diretamente pelo povo. O governador não eleito Paulo Maluf indicou para ser aprovado o nome de Laudo Natel, também não eleito diretamente. Só em 1982 conseguimos que houvesse eleições diretas para governador.

Em 1982, o PT indicou-me para ser deputado federal. Fui eleito com 83 mil votos, junto como José Genoíno, Bete Mendes, Airton Soares, Luiz Dulci, José Eudes e Irma Passoni. Em 1983 e 1984 dediquei-me bastante para desvendar o caso Coroa-Brastel. Foi em 1983 que aconteceu o primeiro comício pelas Diretas Já na Praça Charles Miller, diante do Estádio Municipal do Pacaembu. Eu lá estava ao lado de mais de 30 mil participantes. Isso fez com que todos os partidos de oposição se animassem com a realização de comícios em praticamente todas as capitais, culminando com os dois comícios da Candelária, RJ e do Anhangabaú, SP, ambos com mais de um milhão de pessoas.

Por poucos votos, a emenda Dante de Oliveira, que restabeleceria as eleições diretas, acabou sendo derrotada em 25 de abril de 1984. Somente em 1988 a Constituinte consagraria as eleições livres e diretas em todos os níveis. O PT foi um dos partidos que mais se mobilizou para esse objetivo.

Em 1985, sendo deputado federal, fui indicado para ser candidato a prefeito de São Paulo pelo PT, tendo Luiza Erundina como candidata a vice. Jânio Quadros venceu com 37% dos votos, Fernando Henrique Cardoso teve 34% e eu tive quase 20%. Em 1986, após três debates com José Genoíno e Plínio de Arruda Sampaio, fui escolhido para ser candidato a governador de São Paulo. Foi uma campanha difícil. Orestes Quércia venceu, Antônio Ermírio de Moraes ficou em segundo, Paulo Maluf em terceiro, eu em quarto.

Voltei a lecionar Economia em tempo integral na Escola de Administração de Empresas de São Paulo (FGV), onde ingressei por concurso em 1966. Em 1988, o PT me fez um apelo para ser candidato a vereador de maneira a ajudar a candidatura da prefeita de Luiza Erundina. Felizmente, ela foi eleita, e eu tive 201 mil votos, o mais votado vereador. Por isso indicaram-me para ser o presidente da Câmara Municipal de São Paulo. Fui eleito e lá coloquei em prática a norma: “a transparência em tempo real é a melhor maneira de prevenir irregularidades”.

Por tudo que lá aconteceu, em 1990 Lula e o PT me disseram: “Você está muito bem na opinião pública. Seja nosso candidato a senador”. Aceitei. Perante fortes competidores, como Franco Montoro, Ferreira Neto, João Cunha, Francisco Rossi e outros, fui eleito com 4,2 milhões de votos.

Um de meus objetivos maiores sempre foi colocar em prática os instrumentos de política econômica que possam elevar o grau de justiça, erradicar a pobreza e promover maior igualdade. Logo, em abril de 1991, apresentei o projeto de lei para instituir um Programa de Renda Mínima através de um Imposto de Renda Negativo. Toda pessoa adulta que não recebesse pelo menos 45 mil cruzeiros da época, equivalentes a 150 dólares, passaria a ter o direito de receber 50% da diferença entre aquele patamar e seu nível de renda. O relator, senador Maurício Corrêa, deu parecer favorável, propondo que fosse instituído gradualmente, ao longo de oito anos. Em 16 de dezembro daquele ano o projeto foi aprovado praticamente por consenso. Recebeu parecer favorável do deputado Germano Rigotto.

Em agosto de 1991, Walter Barelli, coordenador do programa de governo de Lula, convidou cerca de cinquenta economistas simpatizantes do PT para um diálogo em Belo Horizonte/MG. Na ocasião, eu e Antônio Maria da Silveira explicamos o funcionamento da garantia de renda mínima através de um imposto de renda negativo. Foi então que o professor José Márcio Camargo, até hoje na PUC-RJ, ponderou: “será bom a garantia de renda mínima. Mas será melhor se começarmos pelas famílias carentes com crianças em idade escolar. Se provermos a renda mínima às famílias mais pobres, desde que coloquem as suas crianças nas escolas, estaremos contribuindo para cortar um dos círculos viciosos da pobreza”. E ele escreveu sobre o tema na Folha de S.Paulo em 1991 e em 1993.

Em 1995, o governador Cristovam Buarque, eleito pelo PT no Distrito Federal, e o prefeito José Roberto Magalhães Teixeira, em Campinas/SP, iniciaram programas de renda mínima relacionados à educação. Os exemplos e os resultados positivos frutificaram. Diversos municípios também adotaram. Na Câmara e no Senado, surgiram diversos projetos.

Em 1996, solicitei ao presidente Fernando Henrique Cardoso uma audiência para que recebesse o professor Philippe Van Parijs, da Universidade Católica de Louvain e fundador da Basic Income Earth Network, BIEN, que estava fazendo palestras na UFRJ e na USP. Van Parijs explicou ao presidente que o objetivo maior será um dia chegarmos à Renda Básica Universal e Incondicional, mas iniciar a renda mínima relacionando-a às oportunidades de educação é um investimento em capital humano, portanto positivo. Então FHC deu sinal verde para que o Congresso Nacional, com meu apoio e de todos partidos, aprovasse a lei que instituía a Renda Mínima associada às oportunidades de educação, também chamado de Bolsa Escola, conforme Cristovam Buarque havia designado. Em seguida, FHC introduziu o Bolsa Alimentação, relacionando à necessidade de os pais vacinarem suas crianças, e pouco depois o Auxílio Gás, para que as famílias carentes adquirissem o gás de cozinha.

Em 2002, alguns amigos sugeriram que eu me candidatasse à presidência da República. Achei por bem consultar o presidente Lula, pois se achasse que isso iria prejudicar ele ou o PT, eu não seria. Ao visitá-lo em seu apartamento, Lula me disse que por tudo que eu havia feito na vida, poderia perfeitamente ser pré-candidato. Em 17 de março de 2002, cerca de 172 mil filiados do PT compareceram. Foi a primeira vez que um partido político no Brasil realizou uma prévia entre seus filiados. Lula teve 84,4% dos votos e eu, 15,6%. Ao conhecer o resultado, transmiti ao Lula que tudo faria para que ele fosse o vencedor até fechar as urnas.

Em 2003, uma vez eleito, o presidente Lula instituiu o Programa Fome Zero com o Cartão Alimentação para as famílias carentes, no valor de R$ 50,00, que só poderiam ser gastos com alimentos. Em outubro de 2003, o presidente Lula resolveu unificar e racionalizar estes programas, o Bolsa Família, o Bolsa Alimentação, o Auxílio Gás e o Cartão Alimentação, e mais tarde o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, no que veio a ser o Bolsa Família. Já em dezembro de 2003, havia 3,5 milhões de famílias inscritas no programa.

O número de famílias beneficiárias foi crescendo gradualmente até cerca de 14,2 milhões de famílias em 2014/15. Neste período, o coeficiente Gini de desigualdade foi ano a ano diminuindo, assim como os indicadores de pobreza absoluta e extrema, a ponto de o Brasil ter sido classificada pela ONU em situação de fome zero. Mas nestes últimos anos, de 2016 adiante, não houve os devidos cuidados com a erradicação da pobreza e a diminuição da desigualdade.

Mais e mais estudando os programas de transferência de renda e os debates proporcionados pela Basic Income Earth Network em seus congressos, fiquei persuadido que melhor ainda do que a garantia de renda condicionadas às oportunidades de educação, saúde e renda, será melhor quando instituirmos uma Renda Básica de Cidadania, de caráter Universal e Incondicional.

E assim, em dezembro de 2001, apresentei novo projeto de lei para instituir a Renda Básica de Cidadania. O relator do projeto, senador Francelino Pereira, considerou boa a proposta, mas sugeriu um parágrafo que diz que será instituída por etapas, a critério do Poder Executivo, começando pelos mais necessitados, como, portanto, o fazia o Bolsa Família. Achei de bom senso e aceitei. Graças a este parágrafo, o Senado, em dezembro de 2002, e a Câmara, em novembro de 2003, aprovaram praticamente por consenso. E, em 08 de janeiro de 2004, o presidente Lula, em belíssima cerimônia, sancionou a Lei 10.835/2004.

Nessa ocasião, o professor Celso Furtado, um dos maiores economistas brasileiros, que se encontrava lecionando na Universidade de Sorbonne, enviou a seguinte mensagem ao presidente Lula, lida na cerimônia:

Neste momento em que Vossa Excelência sanciona a Lei da Renda Básica de Cidadania, quero expressar-lhe minha convicção de que, com essa medida, nosso país se coloca na vanguarda daqueles que lutam pela construção de uma sociedade mais solidária. Com frequência o Brasil foi referido como um dos últimos países a abolir o trabalho escravo. Agora, com este ato que é fruto do civismo e da ampla visão social do senador Eduardo Matarazzo Suplicy, o Brasil será referido como o primeiro que institui um sistema de solidariedade tão abrangente e, ademais, aprovado pelos representantes de seu povo.

Em 21 de junho de 2021, data em que completei 80 anos, o presidente Lula me fez a generosidade de realizar um diálogo ao vivo, em suas redes sociais, que foi publicado, com a sua autorização, com prefácio da oitava edição de meu livro Renda de cidadania — A saída é pela porta (Cortez Editora e Editora Perseu Abramo 2022). Nesse diálogo, eu transmiti ao presidente Lula que empregaria toda a minha energia para que ele fosse novamente eleito presidente em 2022, como felizmente o foi. Ele abriu o diálogo com muito bom humor:

Eu queria dizer que é uma alegria imensa, Eduardo, estar falando com você no dia do teu aniversário, ouvir você contar para nós essa tua dedicação. Eu diria que é uma coisa que parece profissão de fé essa tua dedicação pela Renda Básica no nosso país e no mundo, porque cada vez mais, Eduardo, está ficando claro que a Renda Básica deixou de ser uma ideia do Eduardo Suplicy e passou a ser uma necessidade da humanidade. E quanto mais houver avanço tecnológico, mais vai ter pessoas que precisam do Estado para cuidar dessas pessoas.

E ele também observa, com clareza, quando eu disse a ele:

Agora há uma ótima notícia: o Supremo Tribunal Federal decidiu que o Governo Federal precisa regulamentar a lei e deu prazo até 2022, isso por causa da iniciativa do defensor público do Rio Grande do Sul, em nome do morador de rua Alexandre da Silva Portuguez, epiléptico, 51 anos, que estava recebendo 89 reais do Bolsa Família. O defensor público alegou que, conforme a lei, teria direito à Renda Básica de Cidadania.

E Lula assim respondeu:

Eu acho, Eduardo, que nós vamos viver para fazer acontecer isso em 2022. Obviamente que o povo brasileiro vai ter que acompanhar com muito carinho, porque a eleição de 2022 passa efetivamente pela construção do Brasil, que o povo brasileiro tanto quis e tanto almeja, e que às vezes não consegue tornar realidade. Veja, eu tenho clareza, Eduardo, de que nós conseguimos fazer a mais forte política de inclusão social que este país já conheceu, e que parte das que já foram feitas estão desmontadas, isso significa que a gente vai ter todo um trabalho. Eu acho que hoje a questão da Renda Básica já está consolidada na cabeça das pessoas. Sabe, acho que será necessário menos discussão do que já foi feita até agora, para gente poder garantir de verdade o direito de as pessoas poderem tomar café, almoçar e jantar todos os dias, das pessoas viverem com dignidade, com dinheiro garantido pelo Estado brasileiro.

Em 2 de março de 2023, o Diário Oficial da União publicou a Medida Provisória nº 1.164, que reinstitui o Bolsa Família e extingue o Auxílio Brasil, que havia sido criado pelo presidente Jair Bolsonaro. No §1º desta MP está expresso que

O Programa Bolsa Família constitui etapa do processo gradual e progressivo da implantação da universalização da renda básica de cidadania, na forma estabelecida no parágrafo único do Artigo 6º. do art. 1º da Constituição e no caput e no §1º do art. 1º da Lei nº 10.835 de 8 de janeiro de 2004.

A MP está sendo objeto de análise e deliberação neste mês de maio. É importante que compreendamos muito bem as vantagens da Renda Básica Universal e Incondicional. Eliminamos toda e qualquer burocracia envolvida em se ter que saber quanto cada pessoa ganha no mercado formal ou informal, na carteira de trabalho assinada ou em qualquer atividade, se uma mãe toma conta das crianças da vizinha e recebe um trocado no dia seguinte. Eliminamos qualquer sentimento de vergonha de a pessoa precisar dizer: “eu só recebo tanto, por isso preciso tal complemento”. Será que não vai estimular a ociosidade? Pensemos em nós seres humanos. Todos amamos fazer uma série de atividades, mesmo sem remuneração no mercado. Nas associações de bairro, nas igrejas de todas denominações, nos centros e diretórios acadêmicos, quantos de nós estamos colaborando por nos sentirmos úteis perante a comunidade?

Qual é a principal vantagem da Renda Básica Universal e Incondicional? É a da dignidade e da liberdade do ser humano, de que fala Amartya Sen em “Desenvolvimento como Liberdade”, ao expressar que desenvolvimento, se for para valer, deve significar maior grau de liberdade para todos na sociedade.

Como na letra da música O homem na estrada, personagem dos Racionais MC’s, o dia em que houver uma Renda Básica Universal (RBU), essas pessoas vão ganhar o direito de dizer “Não”; agora eu não preciso aceitar esta única atividade que me surge pela frente, mas que vai ferir minha dignidade, minha vontade. Agora, graças à RBU para mim e todos os membros da minha família, suficiente para atender as necessidades básicas, vou poder aguardar um tempo, quem sabe fazer um curso, até que surja uma atividade mais de acordo com a minha vontade, com a minha vocação. Assim, a RBU vai elevar o grau de dignidade e liberdade para todos os membros da sociedade.

É importante, pois, que o Congresso Nacional tome os passos para que haja, de fato, a transição do Bolsa Família para a Renda Básica Universal durante o governo do presidente Lula. Para auxiliar nesse propósito sugiro que seja formado um Grupo de Trabalho para estudar os passos da gradual passagem do Bolsa Família para a universalização da Renda Básica de Cidadania. Desta forma, o Brasil será o primeiro país do mundo a implementar para valer a RBU.