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“O Grande Inquisidor”, de Fiódor Dostoiévski

Metade terra, Eduardo Climachauska

É uma experiência estranha, examinar sua reação a um livro ao longo dos anos. Lembro-me de quando li Os irmãos Karamázov pela primeira vez, em 1913, do quão fascinado fiquei, ainda que pouco convencido. E me lembro de Middleton Murry1 dizendo: “É claro, toda a chave para entender Dostoiévski está naquela história d’‘O Grande Inquisidor’”. E me lembro de dizer: “Por quê? Para mim, aquilo é um lixo”.

E era verdade. A história para mim não passava de uma peça de exibicionismo: a ostentação de uma pose cínico-satânica francamente irritante. Essa atitude cínico-satânica sempre havia me irritado, e eu não conseguia ver outra coisa naquele Grande Inquisidor de rosto escuro, falando tão longamente com Jesus. Eu sentia que tudo aquilo era pose, que ele não falava a sério quando dizia aquelas coisas, que estava apenas pavoneando blasfêmias.

Desde então, reli Os irmãos Karamázov duas vezes, e a cada vez pareceu-me mais deprimente, porquanto, desgraçadamente, mais fiel à vida. Primeiro, ele fora um romance lúgubre. Agora, releio “O Grande Inquisidor” novamente e meu coração afunda nos sapatos. Ainda vejo uma pitada daquele exibicionismo cínico-satânico. Mas, por baixo disso, escuto a crítica final e inapelável de Cristo. É uma súmula mortal e devastadora; incontestável, pois corroborada pela longa experiência da humanidade. É um embate entre realidade e ilusão, e a ilusão foi de Jesus, enquanto o próprio tempo retruca com a realidade.

Se perguntarem: quem é o Grande Inquisidor? — diremos com certeza que ele é o próprio Ivan.2 E Ivan é a mente pensante do ser humano revoltado, destrinchando a coisa toda até seu fim amargo. Como tal, ele é idêntico, claro está, ao revolucionário russo do tipo pensante. Ele também é, evidentemente, o próprio Dostoiévski em seu eu pensativo, distinto de seu eu passional e inspirado. Em parte, Dostoiévski detestava Ivan. E mesmo assim, ao fim e ao cabo, Ivan é o maior dos três irmãos, o elemento decisivo. O apaixonado Dimitri e o inspirado Aliócha são, em suma, apenas contrapontos a ele.

Não devemos duvidar de que o Inquisidor revela a opinião final de Dostoiévski sobre Jesus. E sua opinião cruamente é esta: Jesus, você é inadequado. Os homens tiveram de corrigi-lo. E, finalmente, Jesus dá o beijo de aquiescência no Inquisidor, como Aliócha faz com Ivan. Os dois inspirados reconhecem a inadequação da sua inspiração: o pensador deve aceitar a responsabilidade de um ajuste completo.

Podemos concordar ou não com Dostoiévski, mas somos forçados a admitir que sua crítica de Jesus é a crítica final, baseada em uma experiência de 2 mil anos (ele diz 1.500)3 e em uma revelação profunda sobre a natureza da humanidade. O homem não pode senão permanecer fiel à sua própria natureza. Nenhuma inspiração ou coisa que o valha poderá levá-lo permanentemente para além dos seus limites.

E quais são esses limites? Essa é a primeira pergunta profunda de Dostoiévski. Quais são os limites da natureza, não do Homem em abstrato, mas dos homens, homens comuns e ordinários?

Os limites, diz o Grande Inquisidor, são três. A humanidade como um todo jamais poderá ser “livre”, pois o homem em conjunto faz três grandes exigências à vida, e não poderá sobreviver se essas exigências não forem satisfeitas.

  1. Ele exige pão, e não apenas como alimento, mas como um milagre, vindo da mão de Deus;
  2. Ele exige mistério, o sentido do miraculoso na vida;
  3. Ele exige alguém a quem se curvar, a quem toda a humanidade deverá se curvar.

Essas três demandas, por milagre, mistério e autoridade, impedem o homem de ser “livre”. Elas são as “fraquezas” do homem. Somente alguns poucos, os eleitos, são capazes de se abster da necessidade absoluta de pão, milagre, mistério e autoridade. Esses são os fortes, e eles devem ser como deuses, para serem cristãos e cumprir com todas as demandas de Cristo. Todo o resto, os milhões e milhões de seres humanos de todos os tempos, são como bebês, crianças ou gansos, demasiado fracos, “impotentes, viciosos, inúteis e rebeldes” para partilhar do pão da terra, caso lhes reste alguma migalha.

Esse, portanto, é o resumo da natureza humana feito pelo Grande Inquisidor. A inadequação de Jesus reside no fato de que o cristianismo é difícil demais para os homens, para a vasta maioria dos homens. Somente uns poucos “santos” ou heróis foram capazes de realizá-lo. Para o restante da humanidade, o homem é como um cavalo atado a uma carga pesada demais. “Se o estimasses menos, menos terias exigido dele, e isto estaria mais próximo do amor, pois o fardo dele seria mais leve.”4

O cristianismo, portanto, é o ideal, mas ele é impossível. Impossível porque impõe demandas maiores do que a natureza humana é capaz de suportar. Assim, para arranjar um esquema vivível e funcional, alguns dos eleitos, como o Grande Inquisidor, recorreram a “ele”, aquele outro grande espírito, Satã, e instituíram a Igreja e o Estado de acordo com seus princípios. Pois, segundo o Grande Inquisidor, para que a humanidade possa seguir vivendo, ela precisa ser amada com mais tolerância e mais desprezo do que Jesus a amou, amada por isso mesmo mais verdadeiramente, amada por si, pelo que é, e não pelo que deveria ser. Jesus amou a humanidade por aquilo que ela deveria ser, livre e sem limites. O Grande Inquisidor a ama pelo que é, com todas as suas limitações. E ele afirma que o seu amor é mais bondoso. No entanto, diz ele, esse amor é Satã. E Satã, ele dissera no princípio, significa aniquilação e não ser.

Como sempre em Dostoiévski, há uma perspicácia espantosa misturada a uma perversidade hedionda. Nada é puro. Seu amor selvagem por Jesus confunde-se com um ódio perverso e venenoso contra Jesus: sua antipatia moral pelo diabo mistura-se a uma secreta adoração ao diabo. Dostoiévski é sempre perverso, sempre impuro, sempre um pensador maligno e um profeta admirável.

Será verdade que a humanidade exige, e exigirá sempre, milagre, mistério e autoridade? Certamente é verdade. Hoje em dia, o homem extrai o sentido do miraculoso da ciência e da maquinaria, rádios, aeroplanos, navios gigantes, zepelins, gás venenoso, seda sintética: essas coisas nutrem o sentido do miraculoso no homem como a magia fizera no passado. Agora, porém, o homem se tornou o mestre do mistério, não há mais poderes ocultos. O mesmo acontece com o mistério: medicina, experimentos biológicos, estranhos feitos paranormais, espíritas, cientistas cristãos — tudo isso é mistério. Quanto à autoridade, a Rússia destruiu o czar para ficar com Lênin e o atual despotismo mecânico, a Itália tem o despotismo racional de Mussolini e a Inglaterra anseia por um déspota.

O diagnóstico da natureza humana feito por Dostoiévski é simples e incontestável. Somos obrigados a nos submeter, e a concordar que os homens são assim. Mesmo quando se trata de repartir o pão, temos de convir que o homem é demasiado fraco para fazê-lo, ou vicioso, ou o que quer que seja. Ele precisa entregar o pão comunal a alguma autoridade absoluta, o czar ou Lênin, para que seja repartido. E, ainda assim, a multidão de homens é incapaz de ver o pão como mera subsistência, por meio do qual o homem se sustenta com o objetivo de viver verdadeiramente, pois a vida verdadeira é o “pão celestial”. Parece estranho que o homem, a imensa maioria dos homens, não entenda que a vida é a grande realidade, que viver verdadeiramente nos enche de vida pura, do “pão celestial”, e que o pão da terra é um mero suporte. Não, os homens não conseguem entender, nunca entenderam esse fato simples. Eles não veem qualquer distinção entre o pão, isto é, a propriedade, o dinheiro e a vida pura. Pensam que a propriedade e o dinheiro são equivalentes à vida. Somente aqueles poucos, os heróis em potencial, os “eleitos”, são capazes de enxergar essa diferença elementar. A maioria não consegue ver, e nunca verá.

Talvez Dostoiévski tenha sido o primeiro a perceber essa verdade devastadora, que Cristo não previu. Ela é, contudo, uma verdade, e quando for reconhecida, mudará o rumo da história. Somente resta aos eleitos se encarregarem do pão — da propriedade, do dinheiro — e então devolvê-lo às massas como se fosse o verdadeiro dom da vida. Desse modo a humanidade poderá viver feliz, como sugere o Inquisidor. Do contrário, com as massas propagando o terrível e insano disparate de que dinheiro é vida, e que, portanto, ninguém deve controlar o dinheiro, e que os homens devem ser “livres” para pegar tudo o que puderem, somos levados a um estado de insanidade competitiva e a um suicídio terminal.

Muito bem, até aqui o diagnóstico de Dostoiévski se sustenta. Mas então será preciso trair Cristo e abraçar Satã quando os eleitos finalmente compreenderem que o cristão heroico deve agora aceitar suas três ofertas, ao invés de recusá-las? Jesus recusou as ofertas por orgulho e por medo: ele queria ser melhor do que elas, estar “acima” delas. Mas compreendemos agora que nenhum homem, nem mesmo Jesus, pode estar “acima” do milagre, do mistério e da autoridade. A única coisa acima da qual Jesus está realmente é a confusão entre dinheiro e vida. Dinheiro não é vida, diz Jesus, então você pode ignorá-lo e deixá-lo para o demônio.

Dinheiro não é vida, é verdade. Mas ignorar o dinheiro e deixá-lo para o demônio significa entregar a imensa maioria dos homens ao demônio, pois a massa de homens não é capaz de distinguir entre dinheiro e vida. É difícil acreditar nisso: Jesus certamente não acreditava: e, no entanto, como apontam Dostoiévski e o Inquisidor, é assim.

Muito bem, então o quê? Devemos apelar ao diabo? Afinal de contas, o cristianismo não se limita à rejeição das três tentações. A essência do cristianismo é um certo amor pela humanidade. Se amar a humanidade implica aceitar a amarga limitação da maioria dos homens, sua inabilidade para distinguir entre dinheiro e vida, que se aceite a limitação e fim de caso. Em seguida, basta tomar do demônio o dinheiro (ou o pão), o milagre e a espada de César e, por amor à humanidade, devolver o pão aos homens como um prodígio, dar-lhes o milagre, o maravilhoso, dar-lhes, por fim, um homem, uma hierarquia de homens aos quais se curvar, em degraus cada vez mais altos. Deixar que se curvem, deixar que se curvem en masse,5 pois a massa, que não compreende a diferença entre dinheiro e vida, deverá sempre se curvar aos eleitos que a compreendem.

Será que isso é o mesmo que servir o demônio? Com certeza não é o mesmo que servir o espírito da aniquilação e do não ser. É antes servir o grande conjunto da humanidade e, nesse sentido, é o cristianismo. Em todo caso, é o serviço de Deus Todo-Poderoso que fez os homens como eles são, limitados e ilimitados.

Onde Dostoiévski é perverso é ao fazer desse antiquíssimo e sábio governante de homens um Grande Inquisidor. O reconhecimento da fraqueza dos homens é um traço comum a todos os grandes sábios e regentes de povos, desde os faraós e Dario, passando pelos grandes papas pacientes da Igreja primitiva, até os dias de hoje. Eles conheceram a fraqueza dos homens, e sentiram uma certa ternura. Esse é o espírito de todo grande governo. Mas não era o espírito da Inquisição espanhola. A Inquisição espanhola em 1500 era uma coisa inovadora, própria da Espanha, com sua curiosa sede de morte e perseguição, um instrumento político rigorosamente espanhol, nem um pouco católico, mas ferozmente nacionalista. Na realidade, a inquisição espanhola era diabólica. Ela não poderia ter produzido um Grande Inquisidor que fizesse a Jesus as tristes perguntas de Dostoiévski. E o homem que fizesse a Jesus essas tristes perguntas não poderia ter sido um inquisidor espanhol. Ele não teria sido capaz de queimar cem pessoas num auto de fé. Ele seria demasiado sábio e previdente.

A esse respeito, portanto, Dostoiévski demonstrou sua perversidade epilética e um tanto criminosa. O homem que sente certa ternura pela humanidade por sua fraqueza ou limitação não é, por isso, diabólico. O homem que compreende que Jesus exigiu demais da maioria dos homens ao pedir que escolhessem entre o pão celestial e o pão da terra e distinguissem entre o bem e o mal não é, por isso, satânico. Pensem em como é difícil conhecer a diferença entre o bem e o mal! Ora, por vezes é mau ser bom. Como o homem comum seria capaz de entendê-lo? Ele não é. Os homens excepcionais têm de entender por ele. Será que isso significa abraçar o diabo? Ou então pensem na dificuldade em escolher entre o pão da terra e o pão celestial. Lênin, seguramente uma alma pura, foi alçado a um poder gigantesco para dar aos homens — o quê? O pão da terra. E qual foi o resultado? Eles não apenas perderam o pão celestial, como o próprio pão da terra desapareceu por completo de uma Rússia produtora de trigo. De fato, é muito estranho. E por que lutam todos os socialistas e os pensadores mais generosos de nossos tempos? O mesmo: repartir mais uniformemente o pão da terra. Mesmo eles, que praticam o cristianismo par excellence,6 não são capazes de escolher adequadamente entre o pão celestial e o pão da terra. Quanto aos pobres, eles escolhem o pão da terra, e mais uma vez o pão celestial é perdido: e mais uma vez, tão logo é escolhido, o pão da terra começa a desaparecer. É um grande mistério. Mas hoje em dia, os crentes mais fervorosos em Cristo acreditam que a única coisa a fazer é lutar para dar aos pobres o pão da terra (boas moradias, bom saneamento etc.), e que isso é, em si mesmo, o pão celestial. Mas não é verdade. Especialmente não para os pobres. Para eles, isso representa a perda do pão celestial. E os pobres são a esmagadora maioria. Pobres, como todos os detestam hoje em dia! Pois a benevolência é uma forma de ódio.

O que é então o pão celestial? Cada geração deve responder por si mesma. Mas o pão celestial é a vida, é viver. Qualquer coisa que torne a vida vibrante e prazerosa é o pão celestial. E o pão da terra deve vir como uma consequência do pão celestial. A grande massa nunca será capaz de entendê-lo. No entanto, essa é a verdade essencial do cristianismo, como da própria vida. Os eleitos entenderão. Que assumam eles a responsabilidade.

O Inquisidor diz novamente que essa é uma fraqueza do homem, que o homem precisa de milagre, mistério e autoridade. Mas será que é assim? Ou será que essas três demandas, por milagre, mistério e autoridade, estão eternamente vinculadas às nossas emoções? Jesus recusou o milagre na Tentação, mas há milagres novamente nos Evangelhos. Jesus recusou o pão da terra, mas disse: “Na casa do meu Pai há muitas moradas”.7 E sobre a autoridade: “Por que me chamais ‘Senhor, Senhor’, e não fazeis o que eu digo?”.8

O que Jesus tentou fazer foi suplantar a emoção física com a emoção moral. De modo que o pão da terra se tornasse, em certo sentido, imoral, como o é para muitos grã-finos hoje em dia. O Inquisidor vê que esse é o equívoco. O pão da terra deve ser ele próprio o milagre, estar conectado com o milagre.

E nesse ponto, é claro, ele está certo. Desde que o homem começou a pensar e a sentir vividamente, o plantio e a colheita são os dois grandes períodos sagrados de milagre, renascimento e celebração. A Páscoa e o Harvest Home9 são festivais do pão da terra, festivais que penetram nas raízes da alma. Pois o pão da terra existe como um milagre, um milagre anual. Todas as religiões antigas perceberam esse fato: a católica ainda o vê, nas margens do Mediterrâneo. Isso não é fraqueza. Isso é verdade. O arroubo do beijo de Páscoa, na antiga Rússia,10 está intimamente ligado à eclosão das sementes e aos primeiros passos do recém-nascido pão da terra. O arroubo do beijo de Páscoa é o que torna o pão digno de ser comido. E a ausência do beijo de Páscoa é o que torna o pão bolchevique árido, morto. Eles agora comem pão morto.

Metade terra, Eduardo Climachauska

O pão da terra deve ser fermentado junto com o pão celestial. O pão celestial é a vida, o contato e a consciência. Ao lançar a semente, o homem entra em contato com a terra, com o sol e com a chuva: ele não deve romper esse contato. Ao contemplar o nascimento do milho, ele adquire a consciência perpetuamente renovada do milagre, da maravilha e do mistério: a maravilha da criação, procriação e recriação que se seguem ao mistério da morte e à tumba fria. É o luto da Semana Santa e o deleite do domingo de Páscoa. E o homem não deve nunca, jamais abrir mão desse supremo estado de consciência fora de si, ou terá perdido a sua melhor parte. A segadura e a colheita são outro contato, contato com o sol e com a terra, uma rica carícia do cosmos, uma corrente viva de atividade, e depois o contato com os lavradores e a alegria da festa. Tudo isso é vida, é o pão celestial, que comemos enquanto conquistamos o pão da terra. O trabalho é, ou deveria ser, nosso pão celestial de atividade, contato e consciência. Todo trabalho que não seja isso é um anátema. É verdade, trabalhar é duro; há o suor na testa. Mas que problema há com ele? Nas devidas proporções, isso é vida. O suor na testa é a manteiga celestial.

Eu penso que os egípcios mais antigos compreenderam isso no decorrer de sua história longa e maravilhosa. Penso que, provavelmente, por milhares de anos, as massas do Egito foram felizes na hierarquia do Estado.

Milagre e mistério caminham juntos e se confundem. Há, então, o terceiro elemento, a autoridade. A palavra é ruim: um policial tem autoridade e ninguém se curva diante dele. O Inquisidor quer dizer: “aqueles diante de quem os homens se curvam”. Vejamos, eles se curvaram a César e a Jesus. E se curvam primeiro, como notou o Inquisidor, a quem detém o poder sobre o pão.

O pão, o pão da terra, é vida enquanto está sendo segado e cultivado. Mas depois que é colhido e armazenado, transforma-se em mercadoria, em propriedade. E depois se torna um perigo. Pois os homens pensam que, se fossem donos do tesouro, não precisariam trabalhar; o que significa dizer que não precisariam viver. E essa é a verdadeira blasfêmia. Pois enquanto vivemos, devemos viver, não definhar ou apodrecer como objetos inertes.

Por fim, os homens se curvam diante do homem, ou do grupo de homens, suficientemente capaz e ousado para se apropriar do tesouro, do estoque de pão, das riquezas e então reparti-los novamente entre todos. Os senhores, os que dão o pão. Como Dostoiévski é profundo ao dizer que as pessoas se esquecem de que isso que lhes é devolvido é o seu próprio pão. Enquanto guardam seu pão consigo, ele não vale mais que uma pedra — uma posse inerte. Mas quando o pão é devolvido pelo grande Provedor, ele se torna novamente divino, adquire a qualidade do milagre que é o melhor tempero para as bocas e barrigas.

Os homens se curvam, em primeiro lugar, ao senhor do pão. Pois, conhecendo a diferença entre o pão da terra e o pão celestial, ele é capaz de distribuir calmamente o pão da terra e lhe dar, em nome da coletividade, o sabor celestial que eles nunca poderão dar. Por essa razão, numa democracia, o pão perde o gosto, o sal perde o sabor e não há ninguém a quem se curvar.

Que o homem precise se curvar a alguém, essa não é a sua fraqueza. É a sua natureza e a sua força, pois o põe em contato com uma vida infinitamente maior do que se ficasse sozinho. Toda a vida se curva ao sol. Mas o sol está muito distante do homem comum. Ele precisa de alguém que o traga até ele. Ele precisa de um senhor: alguém a quem os cristãos se referiam como um dos eleitos, para trazer o sol até o homem comum e colocá-lo em seu coração. A visão de um verdadeiro senhor, um nobre, um herói natural, coloca o sol no coração do homem ordinário, que não é nenhum herói e que, portanto, não pode conhecer diretamente o sol.

Esse é um dos verdadeiros mistérios. Como diz o Inquisidor, o mistério dos eleitos é um dos mistérios inexplicáveis do cristianismo, do mesmo modo que o senhor, o senhor natural entre os homens, é um dos mistérios inexplicáveis da humanidade através dos tempos. Nós devemos aceitar o mistério, e isso é tudo. Mas aceitar o mistério não é algo diabólico.

Além do mais, Ivan não precisava ser tão trágico e satânico. Ele fez uma descoberta a respeito da humanidade que estava fadada a ser feita. Era a redescoberta de um fato universalmente conhecido até aproximadamente o fim do século XVIII, quando a ilusão da perfectibilidade do homem, de todos os homens, apoderou-se da imaginação das nações civilizadas. Era uma ilusão. E Ivan teve de reformular essa antiga verdade, de que a maioria dos homens não é capaz de escolher entre o bem e o mal, já que é extremamente difícil saber qual é qual, especialmente nos casos cruciais: e que a maioria dos homens não é capaz de enxergar a diferença entre os valores da vida e do dinheiro; eles enxergam apenas o valor do dinheiro; mesmo pessoas boas e simples que vivem de acordo com os valores da vida, gentil e naturalmente, só são capazes de mensurar o valor em termos de dinheiro. Deixemos, portanto, que aqueles poucos especialmente abençoados decidam entre o bem e o mal, e estabeleçam os valores da vida em oposição aos valores do dinheiro. Deixemos que a maioria aceite a decisão com gratidão e se curve àqueles poucos, na hierarquia. O que há de diabólico ou satânico nisso? Jesus beija o Inquisidor: Obrigado, você está certo, seu velho sábio! Aliócha beija Ivan: Obrigado, irmão, você está certo, você me livrou de um fardo! Então por que Dostoiévski traz à cena inquisidores e autos de fé, e Ivan conclui a história de modo tão morbidamente suicida? Deixemos que se alegrem por terem redescoberto a verdade.