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A filha, ancestral da mãe

Resenha de A água é uma máquina do tempo, de Aline Motta

A ancestralidade é clivada por um tempo curvo, recorrente, anelado: um tempo espiralar, que retorna, restabelece e também transforma, e que em tudo incide.

— Leda Maria Martins

Foto: Carine Wallauer

Uma constelação de nomes antigos nos orienta em A água é uma máquina do tempo, livro de Aline Motta, que é ao mesmo tempo poesia, ensaio e livro de artista, essa categoria radicalmente voltada para a experimentação. Leio em voz alta uma série de nomes de mulheres, reunidas pela artista e escritora em seu livro: Ambrosina, Honorina, Cassiunda, Michaela Iracema, Izaulina, Nicaldes. Dizer um nome é afirmá-lo no presente; escrevê-lo, claro, é fazer história.

Como Marguerite Duras, que começou a escrever para redimir a mãe das injustiças coloniais na Indochina francesa — para construir uma barragem simbólica capaz de deter o oceano que inundava a propriedade que a mãe adquirira com as economias de uma vida inteira —,1 o livro de Aline Motta se inscreve em seu amplo projeto artístico, que visa salvar e redimir toda uma linhagem de mulheres de nomes apagados e agora reescritos.

Talvez a operação de lembrar nomes próprios seja semelhante à de reter com as mãos porções de água, apreender algo de inapreensível — o que conseguirmos talvez seja pouco e fugidio, no entanto, vital. E leio novamente os nomes em voz alta, o que Aline faz em suas performances de leitura: Ambrosina, Honorina, Cassiunda, Michaela Iracema, Izaulina, Nicaldes.

No livro, a artista-escritora imagina o passado a partir de documentos, fotos, mapas, anúncios e lembranças. Enfrenta assim o susto da morte, o que Nicaldes não foi capaz de superar, ao ver um homem com máscara de caveira num dia de carnaval. Desde então, “começou a entoar ruídos estranhos, apontava para fantasmas arrumando gavetas imaginárias” (p. 9). O esforço de arrumar gavetas no ar percorre o livro de Aline. “Estão abarrotadas de coisas. Tiro uma de cada vez. Um passo pesado pela casa, vou ser descoberta.”

Ler e fabular a partir dos documentos, em complexas operações de leitura que envolvem diferentes mídias e materialidades, é ser capaz de decifrar os ruídos estranhos, ouvidos por Nicaldes, é desfazer um imaginário vago e ameaçador, transformando-o efetivamente em algo imaginado, ou seja, tangível, real e compartilhável, como um livro.

Aline Motta traça uma linhagem de desobediências: de Michaela Iracema, cuja barriga não segurava bebês, a seu próprio modo sutil de inscrever a dor no silêncio familiar (“o que eu segurava procurava um jeito de se espatifar”, p. 62). Como enfrentar os tabus em torno da discussão sobre o racismo em família, silêncios que condenavam seus sentimentos ao domínio da dúvida, do íntimo, do não compartilhável? “Discutir racismo na minha família era como entrar naquela parte do mar em que não dá mais pé” (p. 49). E a ameaça que não me parece distante dessa impossibilidade: “O medo de enlouquecer era uma constante em nossa família” (p. 113).

Aline acolhe a escrita de sua mãe em seu livro, o fragmento de um diário entregue a ela pelo pai perplexo em descobrir uma mulher secreta, uma escrita secreta que era também desobediência. Curiosamente, ao encontrar a escrita da mãe, Aline reencontra seus bilhetes de fuga quando criança, fugas que não iam muito longe, fugas acompanhadas da lembrança de um riso, um riso potente. “Voltava derrotada daquele jogo de forças, e o que me lembro dessas tentativas de fuga era da minha mãe rindo. Rindo muito. Rindo muito” (p. 61). Ouço o riso da mãe de Aline, misturando-o ao riso da mãe de outra artista, Chantal Akerman, que, nos últimos anos de sua vida, consignou o riso de sua mãe num livro, que é um trabalho de luto e, ao mesmo tempo, um autorretrato. Em Ma mère rit,2 o riso, ouvido raramente, da mãe da cineasta belga, presente desde o título do livro, era o significante mesmo em que se alojava a vida, a superação, a sobrevivência.

Assim, as filhas escrevem para as mães e elaboram novas ancestralidades. “Lugar de mãe. Lugar de filha”, escreve Aline Motta, afirmando uma nova comunhão a partir do gesto de banhar sua mãe, o que assinala uma filiação — mútua, enovelada —, uma filiação marcada por um novo tempo espiralar, como nos ensina Leda Maria Martins. Ou dito claramente por Aline: “A filha que vira uma ancestral da mãe” (p. 137).

No livro de Aline e em seus filmes, instalações, entre outras produções artísticas, é notável o movimento em direção à ancestralidade, a tentativa de reunir, narrar, fabular os elos que faltam, as imagens ausentes, as ancestralidades esgarçadas, rompidas, marcadas pelas diásporas e violências extremas, que nos fundam como nação. Como escreveu Leda Martins:

A ancestralidade em muitas culturas é um conceito fundador, espargido e imbuído em todas as práticas sociais, exprimindo uma apreensão do sujeito e do cosmos, em todos os seus âmbitos, desde as relações familiares mais íntimas até as práticas e expressões sociais e comunais mais amplas e diversificadas. De que modo, então, essa sofisticada vivência da ancestralidade e a presença imanente do ancestre na vida cotidiana dos sujeitos também inscrevem uma singular compreensão e experiência da temporalidade, como uma sophya? De que modo os tempos e os intervalos dos calendários também marcam e dilatam a concepção de um tempo que se curva para a frente e para trás, simultaneamente, sempre em processo de prospecção e de retrospecção, de rememoração e de devir simultâneos?3

A ligação entre mãe e filha, estabelecida quase como uma fita de Moebius, sem dentro nem fora, em fluxo constante, é enunciada claramente num poema em prosa do livro de Aline Motta: “Uma última respiração sua atravessou o cordão umbilical e saiu dos meus olhos em forma de lágrimas. Mesmo adulta, eu era ainda capaz de habitar o seu corpo. Mover os seus órgãos de lugar” (p. 121).

Mas na cena da despedida final, a mãe recupera o lugar daquela que deu a vida primeiro, que reenvia a filha para a vida vigorosamente, que libera. Com batidinhas nas mãos e palavras breves e generosas ao extremo, a mãe tem pressa de que a filha se afaste e viva a própria vida (p. 110).

A água é uma máquina do tempo é um intenso trabalho de elaboração dessa relação mãe, filha e ancestrais, em que os lugares são permutáveis, criando uma ação redentora, que envolve tantas mulheres negras, em movimentos de visibilidade liberadora, que felizmente se aceleram nas últimas décadas, no desejo-em-turbilhão de elaborar origens, e projetar futuros.

No livro de Aline Motta, a elaboração da dor pela escrita, pela edição, pela arte é um elemento vital. A dor se destaca na lembrança da mãe, de seu braço ferido pela enfermeira que não enxergava bem, ao longo de um tratamento extenuante. A revolta da filha tem lugar num poema que é quase um manifesto: “Uma mulher negra aguenta tudo, até o dia em que não consegue mais subir escadas”. (…) “Odiava quando chamavam minha mãe de guerreira. Seu corpo não era um campo de batalhas.” (p. 79)

Há delicadas melodias que se depreendem no livro de Aline, recordadas sempre numa visada reflexiva, tão afetuosa, quanto crítica. “no céu/ NO CÉU com minha mãe estarei”, escreve Aline. Escandido ao longo de duas páginas, o verso faz ecoar, no branco que o envolve, o azul cerúleo, bem clarinho, de alguma Madona de Volpi, ou a lembrança de algum outro céu, tão belo quanto injusto, do nosso modernismo.

Os espaços em branco, que envolvem os nomes de mulheres, a foto tão linda da mãe sentada, com as duas mãos espalmadas no colo (com a boca que sorri e os olhos levemente velados), fazem desse livro uma experiência de leitura emocionante e vital. Converter sepulturas em livros, escreve Aline — eis o que seu livro faz e a tarefa para a qual nos convoca.