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Chile: ensaio sobre uma derrota histórica

Me inquieta o final desta luta:
quem serão os ganhadores
e quem serão os perdedores?

— Patricio Guzmán,
Mi país imaginário (documentário)

Conversa con pescado, Patricia Osses

No dia 4 de setembro de 1970, o povo chileno foi às urnas para eleger Salvador Allende presidente da República. A vitória do socialista foi apertada, mas ainda assim referendada pelo Congresso, apesar das tentativas de golpe que já rondavam. Mil dias depois da sua posse, numa terça-feira, 11 de setembro de 1973, o presidente Allende despertou apreensivo com os rumores de traição militar, mas ainda assim determinado a um objetivo: anunciar um plebiscito popular sobre a necessidade de uma Nova Constituição, que superasse os limites da carta vigente desde 1925. Esta, por sua vez, havia sido escrita por uma cúpula de supostos “especialistas” no governo de Arturo Alessandri, latifundiário conhecido como “el León de Tarapacá”. A velha Constituição bloqueava o programa revolucionário da Unidade Popular ao assegurar os privilégios e poderes da classe proprietária. E Allende era, como se sabe, um sério respeitador das leis.

Foi para evitar que Allende convocasse o plebiscito popular para uma Nova Constituição (análogo ao que os chilenos de hoje chamaram de “plebiscito de entrada”) que os comandantes militares anteciparam o golpe de 1973, ordenando o bombardeio ao Palácio de La Moneda dois dias antes do planejado. Foram informados das intenções presidenciais por Pinochet, chefe das Forças Armadas para quem, no domingo anterior, Allende havia confidenciado o anúncio do plebiscito em uma conversa privada na chácara de El Cañaveral.1

O plebiscito da Nova Constituição nunca foi anunciado. Allende morreu, a Unidade Popular foi massacrada. E a ideia allendista de um itinerário popular constituinte foi soterrada pela repressão. A isso seguiu-se a ditadura com quase 4 mil chilenos mortos e desaparecidos, com 38 mil presos e torturados e também com a constituição de 1980, escrita por Jaime Guzmán, Sérgio de Castro e outros homens da elite ditatorial. A carta teve a habilidade de projetar o “pinochetismo sem Pinochet”, fundando o Estado subsidiário e sua blindagem neoliberal que, por sua vez, foi perpetuada pelo pacto transicional de 1989, avançando por 30 anos de democracia. As décadas de 2000 e 2010 foram de crescente luta social contra a constituição pinochetista — culminando com a revolta de 2019 e o tardio colapso total da sua legitimidade.

Retomar esse percurso é importante para que se possa dimensionar o impacto histórico e simbólico do plebiscito de saída da Nova Constituição chilena ocorrido em 4 de setembro de 2022, cuja ampla escolha pelo Rechazo ainda causa perplexidade e tristeza no movimento apruebista. Era enorme a carga de simbolismo histórico presente nesse plebiscito, a começar pela sua data: o atual itinerário constituinte estava desenhado para exorcizar Pinochet no aniversário de 52 anos do triunfo eleitoral de Allende.

Supunha-se que a Nova Constituição, escrita de junho de 2021 a junho de 2022, era a mais genuína representação dos anseios populares, a primeira a escutar verdadeiramente as profundas demandas sociais desde o bombardeio de 11 de setembro. Mas não era. Dessa vez não foi um golpe militar que derrotou o horizonte de igualdade, diversidade, solidariedade e justiça plasmadas na nova carta, mas sim o próprio voto popular, em um enredo que, por isso mesmo, ganhou ares trágicos. Afinal, foi justamente aquele povo excluído e esquecido, invisibilizado e maltratado pelo Estado/mercado, o povo que a Convenção Constitucional acreditava representar de maneira profunda e inédita, que manifestou seu desagrado e gerou uma crise de legitimidade dos mecanismos democráticos mais inovadores do nosso continente.

Como explicar a crise de representatividade do organismo supostamente mais representativo da história chilena?

Voto popular contra a Nova Constituição por classe e território

Conversa con pescado, Patricia Osses

A Nova Constituição chilena (NC) foi escrita por uma Convenção Constitucional (CC) eleita em maio de 2021, com voto facultativo de 6,1 milhões de eleitores (41% de participação). De maneira inédita, a CC foi composta por 50% de mulheres (lei 21.216)2 e 11% de povos indígenas (lei 21.298),3 e elegeu 32% de convencionales independentes,4 sendo considerada um organismo da mais alta representatividade popular. Apesar do polêmico quórum de ⅔ para aprovação das normas constitucionais e da tensão constante entre movimentos populares e instituições, a crítica avassaladora que a revolta de 2019 produziu às classes políticas tradicionais se materializou em um organismo constitucional com rostos novos, formado por dezenas de “pessoas comuns”, ativistas e lideranças populares. A CC mostrou a possibilidade de alteração rápida e radical da casta política, ao ser muito diversa do congresso nacional e dos profissionais de partidos que comandaram o “duopólio” das três décadas de democracia no Chile.

O resultado foi um texto constitucional atrelado às lutas dos movimentos sociais e aos valores da solidariedade social opostos ao neoliberalismo, um dos documentos mais avançados em direitos sociais e promoção da diversidade dos nossos tempos.

Em poucas palavras, eu diria que cinco eixos caracterizavam a Nova Constituição chilena como uma das mais progressistas do mundo:

  1. A plurinacionalidade intercultural, a representatividade política e o direito à autodeterminação dos povos indígenas, preservando-se a unidade do Estado chileno, conceito inspirado pelo novo constitucionalismo latino-americano inaugurado por Equador (2007) e Bolívia (2009);
  2. Os direitos da natureza e os freios à sua mercantilização, recuperando por exemplo o direito universal de acesso à água e suplantando o Código de Águas da ditadura, sendo a primeira constituição do mundo a reconhecer a crise climática como emergência global e nacional;
  3. Os direitos sociais de caráter universal, como a educação gratuita, a saúde pública integral, a aposentadoria solidária, pública e tripartite, a moradia e o trabalho dignos (incluindo o direito universal à greve, inexistente hoje), bem como o direito à cultura, ao esporte, a ciência e ao tempo livre;
  4. Os direitos reprodutivos, econômicos e políticos das mulheres em sentido transversal, assegurando reconhecimento da economia, do cuidado e do trabalho doméstico, o combate à violência de gênero e a paridade em todos os organismos oficiais, bem como uma perspectiva feminista no sistema de justiça e uma educação não sexista;
  5. A descentralização do Estado como forma de aprofundar a democracia, garantindo maior orçamento e atribuições às comunas, províncias e regiões, bem como criando organismos de poder popular vinculantes na formulação de políticas públicas locais e nacionais.

Apesar de a NC responder à maioria das demandas populares levantadas na revolta de 2019 e nas mobilizações das décadas anteriores, algo na Convenção Constitucional falhou para que o resultado desse grande esforço fosse tão amplamente derrotado. Se por um lado foi evidente o peso das fake news e o volumoso aporte financeiro das elites chilenas na campanha do Rechazo, que recebeu quatro vezes mais dinheiro que a campanha do Apruebo,5 também é importante reconhecer que havia pontos cegos e fraturas na comunicação entre representantes constituintes e as maiorias chilenas. Do contrário, a campanha de desinformação das direitas contra a nova carta não encontraria terreno tão fértil para se disseminar e prosperar.

Chegou-se ao seguinte paradoxo: o voto popular matou o projeto político mais democrático da história do Chile. O mesmo voto popular que desbancou as elites políticas tradicionais, rejeitou o suposto “amadorismo” dos convencionales, e com isso entregou o bastão da condução política constituinte novamente para o congresso.

Conversa con pescado, Patricia Osses

O voto obrigatório no plebiscito de saída foi certamente um dos principais fatores para essa guinada. Diferentemente do plebiscito de entrada, que aprovou a necessidade de uma Nova Constituição escrita por uma Convenção Constitucional em outubro de 2020 com voto facultativo de 7,5 milhões de chilenos (50% de participação), da eleição dos convencionales em maio de 2021, com voto facultativo de 6,1 milhões de chilenos (41%), e do segundo turno das eleições presidenciais que deram vitória à coligação “Apruebo Dignidad” com voto facultativo de 8,3 milhões de chilenos (55,7%), o plebiscito de saída teve voto obrigatório com multa de 180 mil pesos (aproximadamente mil reais) para quem não comparecesse às urnas.6 A obrigatoriedade punitiva do voto foi estabelecida pela lei 21.200, aprovada pelo congresso chileno depois do Acordo de 15 de novembro de 2019, como parte da negociação do novo itinerário constituinte.7 Na história desta lei, está registrado que Gabriel Boric, como deputado da Frente Ampla, defendeu que o voto fosse obrigatório inclusive na eleição para representantes constituintes (convencionales).8

Essa altíssima multa, em um contexto de desemprego, inflação e carestia, deu origem a uma mudança de perfil do eleitor que escapou à percepção dos apruebistas. Além de inédita, a participação de 13 milhões de chilenos (86%) no plebiscito de saída forçou a manifestação de mais de 5 milhões de absenteístas históricos, possivelmente o setor da sociedade menos interessado em política e os mais ausentes nas eleições da última década. Não é nada desprezível o fato de que o plebiscito de saída tenha contado com mais que o dobro do total de votantes das eleições para os representantes convencionales.

Este é um dos elementos explicativos mais importantes de tamanha quebra de expectativas e da guinada política entre eleições tão próximas. A NC foi rechaçada por 7,8 milhões de chilenos (61,8%) contra 4,8 milhões de apruebistas (38,1%). Sozinhos, os votos contrários de Rechazo no plebiscito somaram mais do que o total de votantes no pleito que elegeu os convencionales. Em números absolutos, o quórum de 4 de setembro de 2022 foi o maior de toda a história chilena.

Tais números absolutos devem nos conduzir a uma análise dos votos por classes sociais e territórios, como alertou o historiador Sérgio Grez.9 Ao segmentar o total de comunas em quatro estratos de renda, o quartil que reúne as comunas mais pobres do país apresentou uma média de 75% Rechazo, expressivamente maior que o resultado nacional. As comunas com renda média-baixa rechaçaram o texto em 71%; as média-altas o rechaçaram em 64%; e o quartil de maior renda o rechaçou em 60%. Quanto mais pobres as comunas, mais avassalador foi o rechaço.

Em Colchane, por exemplo, comuna de Tarapacá com mais altos índices de pobreza (24%)10 e que enfrentou a fase mais aguda da crise migratória do Norte, o rechaço obteve 94%. Ao mesmo tempo, províncias com maiores índices de população indígena também demonstraram altos níveis de rechaço, ao contrário do que se poderia imaginar. Foram as regiões de fronteira indígena — Ñuble (74%), Araucanía (73%), Maule (71%) e Biobio (69%)11 — que obtiveram os maiores níveis de rechaço em comparação à média nacional. Já as regiões com maior aceitação da NC — a Região Metropolitana de Santiago e Valparaíso —, ainda assim experimentaram a derrota do texto, com respectivamente 55% e 57% de Rechazo. Em termos nacionais, o Apruebo só obteve maioria em 8 de 346 comunas do país, sendo cinco em Valparaíso e três na Região Metropolitana.12 Entre elas, não está a comuna de Recoleta, na Região Metropolitana, governada desde 2012 pelo prefeito comunista Daniel Jadue, principal rival de Boric na coligação Apruebo Dignidad. A Recoleta foi palco de experimentos importantes do Partido Comunista de Chile como governo municipal, como a universidade popular, as livrarias populares e as farmácias populares, reunindo habitantes santiaguinos simpáticos à esquerda e entusiastas de Jadue. Seus votos do plebiscito, porém, resultaram em inexplicáveis 51,9% pelo Rechazo.

Conversa con pescado, Patricia Osses

Além disso, como alertou Igor Donoso, nas comunas que “os ambientalistas denominaram zonas de sacrifício13 por vivenciarem atividades de extrativismo e conflito socioambiental, o rechaço foi amplamente vitorioso, a despeito das diretrizes ecológicas da NC que asseguravam os direitos das populações dos territórios de mineração, pesca industrial, monoculturas florestais e outras atividades predatórias. Nestas “zonas de sacrifício”, Donoso menciona o triunfo do Rechazo em La Ligua (58%), Quintero (58%), Los Vilos (56%), Puchuncaví (56%), Petorca (56%), Villa Alemana (57%) e Freirina (55%). Nas cidades mineiras afetadas pelo extrativismo e suas contaminações, o rechaço também venceu amplamente, como em Calama (70%) e Rancagua (60%). Ainda que a média do Rechazo tenha sido menor que a nacional em algumas destas comunas, expressam uma distância significativa entre as diretrizes ecológicas da NC e as maiorias sociais dos territórios mais afetados pelo extrativismo.

Emblemática dessa contradição territorial foi a comuna de Petorca, cenário de uma aguerrida luta popular pelo acesso à água na última década. Ali, a desertificação prejudica os pequenos agricultores e a população em geral, que dependem de caminhões-pipa para obter a água necessária à sobrevivência e à produção de alimentos, enquanto grandes empresas monocultoras detêm direitos de propriedade sobre a água, inclusive das propriedades camponesas, uma vez que o Código de Águas de 1981 permitiu a bizarra desassociação dos mercados da terra e da água.14 A eleição de Rodrigo Mundaca, líder do Movimento pela Defesa do Acesso à Água, Terra e Proteção Ambiental (Modatima), e governador da região de Valparaíso em maio de 2021, indicava uma consistente orientação popular pela agenda ecológica e contra a privatização da água, princípios destacados da NC. No entanto, Petorca derrotou o novo texto com 56% de Rechazo,15 o que fez Mundaca declarar: “Sinto a incerteza de não reconhecer o lugar que habito (…). Parece bastante irracional a votação sustentada por esta comuna”.16

Ao investigar o voto Rechazo em Petorca, o jornalista Andrew Chernin encontrou uma tensão invisível entre cosmopolitismo urbano e culturas rurais, que passou desapercebida pelos apruebistas. O camponês favorável à luta pela desprivatização da água, apoiador de Mundaca, votou contra a NC por sua defesa do direito dos animais, alegando que os rodeios, uma prática ancestral da sua ruralidade, seriam proibidos.17 Ou seja, nem sempre a base popular dos movimentos por mais direitos sociais correspondeu ao Apruebo, por motivações que constituíram pontos cegos do debate da vanguarda.

Pontos cegos da política constituinte: causas do rechazo popular

Conversa con pescado, Patricia Osses

Segundo pesquisa realizada pelo Ciper18 na semana seguinte ao plebiscito, com entrevista a 120 pessoas de doze comunas com maiorias trabalhadoras, as principais razões do voto popular pelo Rechazo foram, nesta ordem:

  1. O Estado se apropriaria das casas das pessoas;
  2. Os fundos de pensão não seriam herdáveis;
  3. O país seria dividido;
  4. O governo merece críticas (voto castigo);
  5. Contrários ao aborto.

A pesquisa Cadem feita na mesma semana19 questionou 1.135 pessoas com a pergunta “qual foi a principal razão pela qual você votou Rechazo?”, e obteve como resultado o gráfico abaixo. Foram 40% de entrevistados que atribuíram seu voto a um processo constituinte “muy malo”, que despertou “desconfiança”; 35% de menções críticas à plurinacionalidade (um dos mais intensos focos de fake news); 29% de desaprovação do governo Boric; 24% de críticas à instabilidade e insegurança política e econômica; 13% contrários à suposta proibição de saúde e educação privadas (fake); 13% de referências a um “mal camino” do país associado à delinquência e ao conflito mapuche; 12% de menções contrárias a uma nova constituição e em defesa da reforma da carta da ditadura; e 8% de referências contrárias ao aborto e às mudanças do sistema político.

Gráfico 1 — Razões para votar rechazo (Cadem)

As principais fake news que abalaram o voto apruebista se relacionavam à ameaça contra a chilenidade: se disseminou que a plurinacionalidade era o fim da bandeira e do hino, que o Chile iria mudar de nome, que imigrantes venezuelanos e povos indígenas tomariam o poder e se tornariam cidadãos privilegiados, sem punibilidade pela justiça, e que os chilenos não poderiam mais circular livremente pelo seu próprio território (usando como pretexto o desastrado episódio da ex-ministra do Interior, Iskia Siches, impedida de realizar uma reunião em Temucuicui, Araucanía, bloqueada por uma barricada mapuche na primeira quinzena do governo Boric). Também os direitos reprodutivos, a constitucionalização do direito ao aborto e o direito à diversidade sexual ocuparam um lugar de destaque nas fake news, embora a pesquisa Cadem indique que este não tenha sido o ponto mais crítico impulsionador do Rechazo.

Além dos conglomerados midiáticos tradicionais da direita e extrema direita, dezenas de contas de Facebook, Youtube e Instagram não declaradas ao Servicio Electoral (Servel, equivalente ao nosso TSE) propagaram, durante meses, uma série de mentiras sobre a NC, se aproveitando do sentimento de insegurança e instabilidade dos mais pobres, em função da crise econômica, do trauma da pandemia e do flagrante aumento da criminalidade. Medo da violência, racismo e xenofobia foram dispositivos conservadores mobilizados em massa, mas que não teriam obtido sucesso se tais sentimentos não existissem no terreno da experiência social e das ideologias populares, como diagnosticou Jorge Magasich.20 Afinal, fake news não se propaga no vácuo.

A opinião de que o processo constituinte foi “mal feito”, de que a Constituição não era uma obra tecnicamente viável e que a CC foi marcada por escrachos, anarquia e confusão é particularmente importante para um país que havia acabado de “demitir” sua classe política e convocar “pessoas comuns” para o centro da elaboração constituinte. Há um paradoxo de difícil interpretação no fato de que a revolta de 2019 consolidou a crítica popular ao duopólio (da centro-esquerda com a Concertación e das direitas com o atual Chile Vamos), às instituições tradicionais e aos profissionais dos partidos, mas que somente três anos depois o plebiscito de saída tenha desmoralizado os legítimos representantes do chileno comum, do lado de fora dos acordões e diretamente do chão das ruas. Com isso, o plebiscito de saída devolveu a bola para as mesmas instituições de sempre, que o estallido social havia deslegitimado e declarado incapazes de governar.

A ideia de uma Convenção amadora e caótica, que errou mais do que acertou, terminou sendo reiterada por declarações como de Marcos Arellano, convencional independente da Coordinadora Plurinacional, que pediu desculpas em nome da CC: “É de exclusiva responsabilidade da Convenção como órgão”; declarou sobre o triunfo do Rechazo: “Vários convencionales tiveram condutas de soberba. Houve falta de solenidade em alguns casos, uma série de performances que afetaram a credibilidade do órgão”.21 Arellano também expressou uma autocrítica sobre o uso excessivo das horas de trabalho dos convencionales das portas da CC para dentro, com evidente descaso e descuido com o trabalho de comunicação política de massas e experiência de base nas periferias em defesa do novo texto. É fato inegável que os debates sobre justiça social, paridade e plurinacionalidade dos convencionales aconteceram em termos que alguns consideraram “acadêmicos” ou “pós-modernos”, distantes da realidade vivida pelo povo chileno e de suas subjetividades políticas. Essa fratura é trágica, porque a CC se legitimou como organismo mais popular, representativo e democrático da história do Chile, mas terminou sendo desmoralizada pelo povo que alegava representar.

Conversa con pescado, Patricia Osses

Talvez a vitória retumbante de 78% pelo Apruebo no plebiscito de entrada tenha distorcido a percepção política sobre o plebiscito de saída, subestimando sua dificuldade. O plebiscito de saída não era nenhum passeio. Não era uma vitória a mais na coleção de triunfos da esquerda pós-estallido, mas sim outra montanha a ser escalada, dentro de uma correlação de forças móvel que afinal ofereceu 3,75 milhões de votos à extrema direita com José Antônio Kast em dezembro de 2021. A NC não estava ganha apenas pelos significados de justiça e solidariedade mobilizados pelo seu texto em si mesmo. Ainda mais considerando o fator voto obrigatório e o ponto cego dos 5 milhões de absenteístas agora convertidos em votantes, que sequer se interessaram pelos pleitos anteriores. Era preciso escrever a NC e ao mesmo tempo lutar pela sua comunicação popular nas poblaciones.

Por outro lado, questionar a capacidade técnica e a seriedade de um organismo com independentes, mulheres, indígenas e líderes populares parece ser uma forma trágica de cair na armadilha das campanhas de deslegitimação arquitetadas pelas direitas (pinochetista e centrista), que buscaram a todo tempo desmoralizar um organismo que permaneceu fora do seu tradicional controle político. Se levarmos em conta os relatos insuspeitos de uma brasileira, a constitucionalista Ester Rizzi, que esteve dentro da Convenção em fevereiro, os trabalhos estavam eficientes, técnicos, organizados e com assessoria de inúmeros profissionais competentes emprestados pelas universidades, em um processo constitucional com parcos recursos financeiros e pouco investimento público.22 Nesse sentido, a qualidade da NC foi quase um milagre, fruto de um esforço coletivo e técnico fenomenal em condições das mais adversas, que merece aplausos aos convencionales.

Entre as possibilidades não aproveitadas pela CC estavam os plebiscitos intermediários, que inicialmente visavam contornar o bloqueio dos ⅔ de quórum pelo voto popular e superar a impossibilidade de amplos consensos entre convencionales recorrendo às maiorias simples do povo. Talvez a impressionante vitória das esquerdas na eleição da CC em maio de 2021 tenha sido, no médio prazo, uma vitória de Pirro, ao gerar um excesso de confiança no procedimento interno do órgão, enfraquecendo a comunicação necessária com as maiorias sociais e descartando os plebiscitos intermediários em função dos consensos progressistas dos ⅔ de esquerda e centro-esquerda obtidos no caminho. Assim, a CC se fechou em si mesma e se distanciou do processo mobilizador que a tornou possível.

Terceiro turno, derrota de Boric e o novo gabinete

Conversa con pescado, Patricia Osses

A coligação de Boric, Apruebo Dignidad, carregava no seu nome a opção governista pela NC. Embora tenha se engajado na campanha tardia e timidamente, constrangido pelas imposições da Fiscalía (equivalente ao Ministério Público), que proibia a campanha oficialista para qualquer um dos lados, Boric utilizou a ideia de que a máxima participação no plebiscito seria em si mesmo um triunfo da democracia. Será mesmo?

Entre as causas mais relevantes do Rechazo está a evidência de que o plebiscito representou o terceiro turno das eleições presidenciais. A má avaliação do governo, por sua incapacidade de apresentar soluções compreensíveis aos problemas do país e melhorias rápidas da vida popular, somada às contradições entre o comportamento de Boric antes e depois de se tornar presidente. O exemplo mais escancarado dessa contradição foi sua posição contrária ao “quinto retiro” dos fundos de pensão, ou seja, o quinto saque antecipado das contas individuais de aposentadoria como fonte emergencial de alívio social, que foi autorizado em quatro ocasiões pelo governo Piñeira durante a pandemia, à revelia as empresas da previdência privada e por pressão direta dos partidos da coligação Apruebo Dignidad (Frente Ampla e Partido Comunista). Isso também fez a popularidade do presidente cair numa velocidade preocupante. Entre março e setembro de 2022, a aprovação do governo Boric caiu de 50% para 33%, enquanto a reprovação subiu de 20% para 60%. Não por acaso, a reprovação corresponde à votação no Rechazo, como mostra o gráfico abaixo.

Gráfico 2 — Aprovação do presidente Gabriel Boric, mar-set/2022 (Cadem)

Em termos numéricos, o voto Apruebo correspondeu de maneira quase exata ao voto em Boric no segundo turno (ganhando apenas 200 mil novos apoiadores, de 4,6 milhões nas eleições a 4,8 milhões no plebiscito).23Territorialmente, a votação do Apruebo foi quase idêntica à de Boric. Na Região Metropolitana, por exemplo, Boric teve 2,1 milhões e o Apruebo 2,2 milhões. Nas regiões de Valparaíso e O’Higgins, as diferenças não passaram de 45 mil e 8 mil votos, respectivamente. Se conclui, portanto, que os quase 5 milhões de novos votantes no plebiscito de saída se direcionaram quase integralmente para o Rechazo.

A incapacidade do Apruebo de ganhar votos entre o segundo turno presidencial (dezembro de 2021) e o plebiscito (setembro de 2022) diz muito sobre as dificuldades de dois setores das esquerdas em transferir suas agendas de mudança do plano da utopia e da imaginação política para a vida concreta das maiorias mais desinteressadas do país. Tanto a esquerda centrista do governo com seu modus operandi continuista e até repressor de movimentos sociais, como as esquerdas de horizontes mais rupturistas que atuaram na CC (chamadas por Boric de maximalistas), por motivos diferentes, não conseguiram atingir o objetivo mais crucial de toda a sua luta: superar o a Constituição pinochetista/neoliberal e abrir caminho constitucional para um Estado de bem-estar social, com justiça distributiva e direitos assegurados.

De tudo isso, se apreendeu que a relação entre as multidões mobilizadas no estallido (que encheram avenidas com milhões e demonstraram uma convicção impressionante) e as multidões silenciosas, absenteístas e invisibilizadas (que estiveram em casa nos últimos dez anos de eleições) é profundamente contraditória e muito mais complexa e tensa do que os apruebistas supunham. As classes trabalhadoras são heterogêneas e nem sempre se entendem.

A mudança de gabinete de Boric mostrou que das duas coligações que compõem o governo — Apruebo Dignidad e Socialismo Democrático — a segunda saiu ganhando. A nova ministra do interior, Carolina Tohá (filha do ministro do interior de Allende, José Tohá) foi Secretária Geral da Presidência (Segpres) de Bachelet, entrou no lugar da polêmica Iskia Siches, que teve sua reputação derretida em cinco meses de governo após erros vergonhosos e excessivos pedidos de desculpas. A nova Segpres, que substituiu Giorgio Jackson (o engenheiro da Frente Ampla), é Ana Lya Uriarte, que foi chefa de gabinete de Bachelet. Enquanto Siches foi demitida, Jackson, que não poderia ficar fora do governo por sua enorme relevância na trajetória de Boric da Federação dos Estudantes da Universidade do Chile (FECh) à presidência, foi deslocado para o Ministério do Desenvolvimento Social.

O governo Boric, dessa forma, aumentou o número de mulheres em seu comitê político tanto quanto de bacheletistas, se transformando em uma espécie de governo Bachelet 3.

Buscando atenuar e naturalizar sua derrota, Boric discursou no 4 de setembro: “No Chile as instituições funcionam (…), a democracia chilena sai mais robusta”.24 Também apontou para mais um passo em direção à moderação, dizendo que “o maximalismo, a violência e a intolerância com quem pensa diferente devem ficar definitivamente de lado”, como se algum tipo de radicalismo tivesse dado o tom da CC, o que não é verdade. Afirmou ainda que “é preciso escutar a voz do povo, não só este dia, mas sim de tudo o que aconteceu nestes últimos anos intensos”. E arrematou: “Não esqueçamos porque chegamos até aqui. Este mal-estar segue latente e não podemos ignorá-lo”.

No mesmo tom de relativização da derrota, a ministra vocera Camila Vallejo, cujo cargo é o equilíbrio tênue que segura o Partido Comunista em uma coligação cada vez mais inconveniente, afirmou: “O compromisso do governo de impulsionar seu programa está intacto (…). Não esqueçamos porque estamos aqui. O que nos levou a ser governo foram anos e décadas demandando maior justiça social, aposentadoria digna, saúde digna, o direito à educação. Temos um mandato a cumprir. (…) Estes desafios estão em pleno trâmite”.25 Resta saber, ainda, como seria possível cumprir o programa de Boric sem a NC. A verdade inconveniente é a adequação deste programa à velha ordem (Bachelet 3).

Limbo constitucional e novo itinerário

Conversa con pescado, Patricia Osses

Até mesmo os políticos da direita tradicional, comemorando o resultado na sede do comando do Rechazo, afirmaram que a constituição de 1980 está morta. Sua campanha esteve baseada em escrever uma “NC melhor”, “uma que nos una”, mais nacional e unitária, que não “dívida o país”, apelando à falsa compreensão do plurinacional como antagônico ao nacional.

É certo que haverá um novo itinerário constituinte, mas não se sabe ainda quanto da Constituição de 1980 será contrabandeada para dentro do novo processo. Fez parte dos acordos pós-estallido a ideia de uma NC a partir de uma folha em branco, contrária a reformar mais uma vez o texto de Pinochet. Agora, como disse Boric e sua nova ministra Uriarte, o protagonismo será do congresso, o que contraria todo esforço da revolta de 2019 até aqui.

Ainda havia a possibilidade de diferentes modalidades de golpe contra o resultado do plebiscito de entrada, que apontou inequivocamente para uma nova constituição e para uma convenção eleita para este fim, rejeitando que o congresso redigisse o novo texto para envernizar o velho. No dia 12 de setembro, uma reunião entre lideranças dos partidos no Parlamento definiu que haverá, sim, um “organismo eleito”, possivelmente formado nos próximos meses, e acompanhado de um “comitê de expertos”,26 o que significa o triunfo do neoliberalismo pela tecnocracia.

Ganha a interpretação de que a NC foi rechaçada por ser amadora, enquanto a nova carta deverá ser controlada por saberes tecnocráticos obviamente vinculados ao mercado e suas normativas típicas. A questão é que se já era difícil combater o neoliberalismo com uma nova constituição (cuja aplicação seria desafiadora e dependeria da luta constante dos movimentos sociais), se tornou frustrante e falsificador combatê-lo submetido a uma tutela tecnocrática que emanará da racionalidade neoliberal.

Mas a luta não terminou. Segundo a declaração dos movimentos sociais após a derrota

o aprendizado que construímos será fundamental, porque os movimentos sociais já não somos o que éramos antes de escrever esta Constituição. Neste processo o povo aprendeu a auto representar-se, isso não é algo dado, depois de décadas de exclusão dos setores populares da vida política, poder representar a nós mesmas é um trabalho do qual não iremos renunciar.27

O Rechazo foi um bombardeio às avessas, quase tão inimaginável quanto o do dia 11. O Palácio de La Moneda não foi avariado física, mas politicamente. Dessa vez não de cima pela Força Aérea, mas “desde abajo” pela vontade popular, em um estranho paradoxo democrático.

Para atravessar tempos de derrota histórica, os mapuche usam a palavra “marichiweu”, que significa “nunca vão nos vencer”, explica Elisa Loncón, a linguista indígena que presidiu a primeira metade da CC.28

Nos triênios de 1970–1973 e de 2019–2022, o Chile mostrou sua capacidade de entusiasmar a América Latina com criatividade política e projetos utópicos, que inspiram e iluminam povos vizinhos como miragens magnetizantes. Suas derrotas doem, porque também costumam ser nossas.