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“Agradeço demais por estar na última documenta”

Dan Perjovschi

Na saída da Kassel Hauptbahnhof, a estação central de trem por onde chegam boa parte dos visitantes da documenta, o artista romeno Dan Perjovschi faz cartuns em retângulos brancos pintados no chão. Esse é seu trabalho: o Jornal horizontal. Quando estive na cidade, entre 20 e 25 de junho, os cartuns tratavam de temas como o colapso do clima, a pandemia — e o seu fim precoce —, a guerra. Eram temas em alta nos jornais naqueles dias.

Quase um mês depois, Perjovschi fez uma nova leva de cartuns e os postou em seu perfil no Instagram. Entre eles, um sem desenhos, só com texto, que dizia: “I am so grateful to be in the last documenta” (em português: “Agradeço demais por estar na última documenta”). Na legenda, o artista fez um adendo: “Just kidding. Not.” (em português: “kkk #sqn”).


A documenta é uma exposição realizada a cada cinco anos em Kassel, uma cidade meio sem graça que fica bem no miolo da Alemanha. Não é de se estranhar: a cidade ficou em ruínas depois de ser vigorosamente bombardeada na Segunda Guerra e foi reconstruída com certa rigidez moderna, incluindo avenidas largas que privilegiam carros e escondem o rio Fulda, que corta sua parte mais baixa.

Kassel ainda estava sendo refeita quando foi escolhida para ser a sede de uma exposição que seria o contraponto da perseguição nazista à tal “arte degenerada”. A primeira foi inaugurada em 1955, com direção do arquiteto e artista local Arnold Bode. (A consagração veio com a quinta edição, curada pelo lendário Harald Szeemann, então recém consagrado pela curadoria de Quando as atitudes se tornam forma, exibida dois anos antes na Kunsthalle Bern.)

Por mais pitoresco que pareça, a ideia de se criar uma grande exposição de arte praticamente em meio a escombros de guerra, quase na agora extinta fronteira entre as Alemanhas Oriental e Ocidental, em plena Guerra Fria, deu certo.

Hoje, a documenta é possivelmente o evento mais influente do mundo da arte, quase lado a lado com a Bienal de Veneza. Quase. Porque muita gente ainda vai cravar um desempate ao lembrar que a documenta faz o milagre de levar mais gente à cidadezinha sem graça em seus cem dias de duração do que a Bienal leva à deslumbrante Veneza nos seis meses em que fica montada. Não é pouca coisa: comparando as duas edições anteriores, a partir de ingressos vendidos, dá quase 900 mil em Kassel versus 600 mil em Veneza.

Além da audiência, outro fator de desempate é a ousadia. A documenta correria mais riscos e seria mais afiada, mais provocadora, mais política que a sereníssima Biennale.


Neste exato momento, agorinha mesmo, enquanto eu escrevo, enquanto você lê, enquanto ambos respiramos, estamos passando pela mais profunda transformação da História da Arte que já aconteceu.

É uma transformação muito diferente da promovida por Picasso e Matisse, por Duchamp, até mesmo por Da Vinci e Michelangelo.

Até agora, de modo geral, quando alguém mudava a História da Arte, estava fazendo uma mudança que ia daquele ponto da História adiante. Duchamp não fez com que os livros sobre Renascimento fossem reescritos.

(Claro que estou sendo um pouco simplista, claro que Picasso mudou a percepção sobre Cézanne, claro que a figura de Caravaggio sumiu da História da Arte por um tempo, mas essas retificações, ao mesmo tempo em que são centrais para o que se chamava de História da Arte, são marginais para o que estou defendendo, e talvez até mesmo sublinhem meu ponto, na medida em que só olham para dentro do velho sistema.)

Uma série de olhares — decoloniais, antirrascistas, antimachistas, queers etc. — está colocando em xeque a História da Arte que se conhecia. Pela primeira vez, ela precisa ser revista e reescrita retroativamente para dar conta não só de outros países, mas também de outros gêneros e sexualidades, outros povos, outras etnias, outras tradições, outras formas de pensar e outros espectros que até então eram, com sorte, contemplados marginalmente. Centenas de livros, documentários, cursos e manuais que tinham a ambição de serem universais se tornaram, com muito boa vontade, paroquiais. Hoje, está claro que um Gombrich da vida não dá conta da História da Arte. Por mais que muitos desses livros digam explicitamente que não dão conta de toda História da Arte, hoje fica no ar a impressão de que os autores nem desconfiavam do quão distantes estavam da ambição de seus títulos, porque ficava implícita a ideia de que, apesar de ser um recorte, os autores ao menos foram capazes de escolher o que havia de mais importante — portanto, para eles: o eurocêntrico, o branco, o homem cis.

Estamos em meio a um processo tumultuado, e é difícil definir as coisas agora. Por um lado, museus estão se mexendo — da reformulação do Moma ao Masp, com erros e acertos. A Bienal de Veneza deste ano, curada por Cecilia Alemani, tem quase 90% de mulheres entre os artistas — e reivindica uma fatia gorda do surrealismo para elas. Novos cursos surgem enquanto outros desaparecem. Mas, por enquanto, até onde sei, não há nada que enquadre a História da Arte que vai emergir desse processo — e suspeito que isso nunca mais vai ser possível.


A documenta 14, realizada em 2017, já arranhou essas transformações. Não só pela seleção de artistas (incluindo negros, indígenas, mulheres, queer…), mas também pela divisão da exposição em duas partes, uma delas em Atenas — na época, a Grécia emergia de uma profunda crise e era uma grande porta de entrada de pessoas em busca de refúgio na União Europeia. Ecos da exposição reverberaram no mundo da arte ao longo dos últimos cinco anos. Um reflexo evidente: os principais museus do mundo incorporaram em seus acervos obras de artistas (de novo: negros, indígenas, mulheres, queer…) que colaboraram com a rachadura e a reescrita da História da Arte.

Neste ano, a documenta foi além. A curadoria ficou a cargo do coletivo indonésio ruangrupa — pela primeira vez, artistas na curadoria; pela primeira vez, um coletivo; também pela primeira vez, asiáticos.

O ruangrupa chamou outros 14 coletivos, que por sua vez chamaram outros coletivos e artistas, que seguiram chamando mais artistas e mais coletivos. A documenta virou um ambiente coletivo, colaborativo, festivo, rizomático, aberto. (Por exemplo: o artista e diretor tailandês Apichatpong Weerasethakul não deve aparecer em nenhuma lista de artistas convidados, mas seu filme mais recente, Memória, foi exibido no espaço do coletivo colombiano Más Arte Más Action. O longa foi filmado no Choco, na Colômbia, onde os artistas atuam, em parceria com outros coletivos.)

A curadoria partiu do conceito de Lumbung — palavra indonésia para um silo de arroz comunitário, em que todos os agricultores depositam arroz que pode ser pego por qualquer um deles em caso de necessidade. Em português, “mutirão” — na tradução adotada pela Dublinense, que lançou por aqui um volume de contos gestado em Kassel e editado coletivamente por oito editoras de vários cantos do mundo.


Suharto foi ditador da Indonésia. Entre 500 mil e um milhão de pessoas foram mortas em sua ascensão ao poder, nos anos 1960. Caiu em 1998 — depois de uma série de protestos que levaram à morte mais 500 estudantes. Ao deixar o poder, disse: “Peço desculpas pelos meus erros”. Até hoje, fala-se pouco da tragédia do governo de Suharto.

O Taring Padi é, como o curador ruangrupa, um coletivo da Indonésia. Surgiu como resposta à queda de Suharto. Em um país que ainda silencia sobre a dor, é um grupo que usa a arte como meio de informação e de conscientização da sociedade. Pinturas em painéis, fanzines, cartazes, música, teatro, rituais e paradas de rua são algumas das manifestações do Taring Padi. São obras que tratam de temas que vão de consumo a agricultura familiar.

Quando escrevi que Kassel era meio sem graça, estava me referindo especialmente ao centrinho, onde fica o coração da documenta. Neste ano, a região de Bettenhausen foi incorporada à mostra. É uma área com grandes galpões, fábricas abandonadas, avenidas largas e movimentadas, lojas de autopeças. Se o centrinho é sem graça, Bettenhausen é uma distopia de subúrbio hipermotorizado. Um dos raros prédios que chamam a atenção em Bettenhausen (e um dos poucos que restaram no estilo Bauhaus em Kassel) é uma antiga piscina pública, a Hallenbad Ost. Hoje, a piscina em si está coberta por um metro de cimento. Nesse prédio, há uma retrospectiva emocionante do Taring Padi, com centenas de trabalhos históricos, desde os primeiros anos.

O trabalho do grupo também foi instalado em outros pontos da cidade. São trabalhos de clara denúncia social.

Um deles, na fachada de uma loja de roupas C&A, no centrinho, tem Marx cercado de anjinhos, um grupo de revolucionários e um letreiro que diz “Rakyat demokratik” — em indonésio, “Povo democrático”. Também clama por “Pabrik Untuk Buruh” (“fábrica para trabalhadores”), “Sejahtera Sosial” (“Bem-estar social”) e “Pupuk organik” (“fertilizante orgânico”). No canto inferior do painel, um porco antropomorfizado está amarrado por uma bandeira americana.

Nos primeiros dias da documenta, havia outro mural do Taring Padi no centrinho — na praça diante do Fridericianum, o grande museu de Kassel. Foi desmontado logo depois da abertura, acusado de antissemitismo. Nele, se via um soldado com nariz de porco, com um capacete em que se lia a palavra “Mossad” e uma estrela de Davi estampada em um lenço vermelho no pescoço. O uniforme do soldado evocava o dos nazistas. A mixórdia semiótica da imagem reacendeu o pavio do suposto antissemitismo da documenta. A pressão sobre a mostra foi forte, e o próprio Taring Padi acabou concordando que havia elementos que não ficavam claros o suficiente no contexto alemão.


A acusação de antissemitismo do Taring Padi foi a terceira controvérsia do gênero. O ruangrupa foi atacado por apoiar uma iniciativa contra Israel que, na Alemanha, é tida como antissemita. A denúncia foi feita por um blog anônimo e se alastrou a despeito da fonte duvidosa. Semanas antes da abertura, um espaço que abrigaria o coletivo palestino The Question of Funding foi pichado com referências à extrema direita. No fim de julho, desenhos feitos em um panfleto dos anos 1980 que estava em um dos espaços expositivos foram acusados, mais uma vez, de antissemitismo.

A diretora geral da documenta, Sabine Schormann, pediu demissão. O novo primeiro ministro da Alemanha, Olaf Scholz, se recusou a visitar a exposição.

Escrevo tudo isso de forma estabanada e com certa preguiça por ter que tentar, mais uma vez, explicar o inexplicável: que o Estado de Israel não deveria ser confundido com o povo judeu, que o antissemitismo é um assunto especialmente sensível na Alemanha, que o Taring Padi, me parece, foi mesmo infeliz ao misturar judaísmo e Israel.

Mas, se o Taring Padi e o ruangrupa não entenderam o contexto da Alemanha, tampouco a Alemanha entendeu o deles: para coletivos engajados socialmente no tal do Sul Global, obviamente é mais fácil se identificar com a Palestina do que com Israel, e isso é uma questão de Estado, e não de povo, cultura, ancestralidade ou religião.

(Em tempo: a própria expressão Sul Global é complicada. Quase metade da Indonésia fica acima da linha do Equador. Assim como México, Nicarágua, Guatemala, Porto Rico, todo o Oriente Médio, a Índia… Tenho para mim que a própria expressão Sul Global é um indício muito claro de que os países do Norte Global nunca viram um globo terrestre.)


O dia 18 de junho foi quando a documenta abriu ao público.

No pôr do sol do dia 20, diante de uma multidão que não entendia bem o que estava acontecendo, o painel foi coberto por um pano preto.

Na manhã do dia 21, tinha sido desmontado.

Além do painel, sumiram dezenas de wayang kardus, uns cartazes-espantalhos com personagens desenhados a mão que o Taring Padi leva em manifestações e finca na terra. (Há muitos wayang kardus na frente do Hallenbad Ost também.)

Nos dias seguintes, o mistério dos wayang kardus foi se resolvendo: alguns estavam no espaço do grupo argentino Serigrafistas Queer, na Sanderhaus. Outros apareceram nos arredores da Hübner Areal, uma fábrica que virou um segundo centro da documenta. Mais alguns deram as caras no jardim da balada WH22.

Os artistas tinham levado os wayang kardus para seus espaços, como forma de demonstrar apoio ao Taring Padi. Cada wayang kardu que se encontrava pelos espaços expositivos tinha virado um sinal de que os artistas estavam presentes, que a exposição estava viva, que o Taring Padi tinha aliados e de que a arte era uma forma de resistência.

Em protesto contra a forma como a organização lidou com o caso, a artista Hito Steyerl tirou o filme que produziu com o coletivo INLAND da exposição. Era um dos meus trabalhos favoritos, com ao menos uma frase antológica: “O queijo é a forma de o leite buscar a imortalidade”.

Os wayang kardus tinham virado a forma de a documenta 15 demonstrar publicamente a resistência.


Talvez nenhum sintoma da transformação da arte revele uma fratura mais exposta do que as primeiras reações à documenta. Por todo lado, havia jornalistas e críticos dizendo que havia pouco ou nada para se ver.

Passei cinco dias intensos na documenta vendo coisas. Vi, caminhei, assisti a vídeos, interagi com iPads, ouvi música e ruídos. Só consegui visitar todos os espaços expositivos porque, dado a um surto de covid-19 que atingiu a equipe, a excelente programação de encontros, palestras, mostras de filmes e workshops foi cancelada. Digamos que dos meus cinco dias, um foi dedicado a conversas, palestras e refeições da programação, e mais quatro a ver aquilo que estavam me dizendo que simplesmente não estava lá para ser visto. (Vi muito e, enquanto escrevo, conto caracteres e me dou conta e lamento que não vou falar de muitas obras: o filme de Nabwana IGG e sua Wakaliwood, a creche da brasileira Graziela Kunsch, o teatro lúdico de Agus Num Amal PMTOH, o livro da La Intermundial Holobiente, a cozinha do Britto Arts Trust — onde quis me candidatar a preparar uma feijoada vegetariana com tempê… Eu teria adorado viver na graciosa Kassel pelos cem dias da documenta.)

Daqui, fica até embaraçoso explicar como vi tanta coisa no mesmíssimo lugar em que tanta gente tão experiente — gente que leio, acompanho e, no mínimo, respeito — encontrou tão pouco.

Claro que vi salas vazias e espaços aguardando para serem ocupados — até porque o tal surto repentino de covid-19 forçou a organização a esvaziar deliberadamente esses espaços nos dias em que passei por eles. Mas estamos falando de pessoas inseridas no sistema de arte em 2022, gente que tenho certeza de que já entrou em algum momento em uma Cosmococa vazia e conseguiu encontrar potência no espaço criado por Hélio Oiticica e Neville d’Almeida. Espaços potentes não eram mais para ser um problema — mas, por algum motivo, foram.

Só posso sugerir uma hipótese à dissonância da minha experiência com a desses críticos e jornalistas. Quero sugerir que até mesmo a forma tradicional de se avaliar uma exposição de fôlego — uma visita de dois dias aos principais espaços entremeados por coquetéis e badalações — colapsou. Sem os encontros, sem ver o efeito de centenas de artistas atuando juntos e vivamente na cidade, sem levar em conta as trocas, as conversas, os afetos, quando se limitou a uma experiência tradicional e institucional, a documenta foi, de fato, apenas um espaço vazio.


No extremo, há duas documentas.

Uma é a instituição alemã — que tem uma tradição, um corpo diretor, um orçamento e, claro, relações institucionais. É, além de tudo, uma instituição acossada: uma devassa recente em seus arquivos revelou que, em seus anos iniciais, havia nazistas em seu plantel. Werner Haftmann, por exemplo, foi considerado criminoso de guerra. Camuflado no comitê da documenta, teve seu passado deixado de lado e seguiu a vida. Esse passado recente veio à tona na exposição Documenta: política e arte, apresentada no Deutsches Historisches Museum, em Berlim, no ano passado.

Foi essa instituição acossada que, diante dos discursos identitários, cheia de boas intenções, achou que era hora de dar voz a um coletivo do que chamam de Sul Global.

A outra documenta é a exposição que é resultado desse convite.

O que se coloca em debate a partir do encontro dessas duas documentas é a capacidade de as instituições de arte — que passaram os últimos anos exaltando artistas periféricos e queer — darem efetivamente conta das contradições e complexidades do mundo.

Há décadas, as documentas vêm oferecendo (ou ditando) um norte (e não um sul!) para as instituições de arte ao redor do mundo. Mas o que acontece quando as próprias instituições percebem que a tensão quebrou a bússola? Será que as bienais e as galerias vão abraçar as práticas libertárias que o ruangrupa apresentou? Ou será que vão adotar o discurso das primeiras reações e dizer que não havia nada lá?

E, daqui cinco anos, como será a 16ª documenta? Será que, na busca pelo próximo curador, a instituição vai buscar ativamente um projeto que consiga desviar do problema instaurado por esta documenta? Vai ser uma documenta que retrocede? E, se retroceder, a documenta ainda será uma documenta, ou será apenas uma exposição curada por uma instituição que não deu conta da exposição que criou?

Na saída da Kassel Hauptbahnhof, o artista romeno Dan Perjovschi escreveu “I am so grateful to be in the last documenta” (em português: “Agradeço demais por estar na última documenta”).