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Uma única pergunta não é suficiente

Resenha de Crítica da razão pós-colonial: por uma história do presente fugidio, de Gayatri Chakravorty Spivak

Pedra (vermelha), Mauricio Ianês

Quando A Critique of Post-Colonial Reason: Toward a History of the Vanishing Present foi lançado nos Estados Unidos, em 1999, Terry Eagleton escreveu uma resenha publicada no London Review of Books que gerou uma série de respostas exaltadas.1 A resenha de Eagleton, ainda que bastante elogiosa ao intelecto de Spivak e sintonizado a muitas de suas ideias, tecia críticas demolidoras à sua escrita “obscura” e ao seu ecletismo, que prefere, “pós-modernamente”, “a justaposição à síntese” e a “resistência à transformação”. Entre as respostas mais famosas está a de Judith Butler que evoca, provocativamente, o Adorno de Minima Moralia contra Eagleton e afirma que a escrita hermética de Spivak não a impediu de influenciar milhares de intelectuais e ativistas por meio de suas complexas reflexões. No entanto, em minha opinião, a crítica mais severa — e bem-humorada — à resenha de Eagleton foi escrita por Andrew Rubin: “Um artigo notavelmente similar à resenha de A Critique of Post-Colonial Reason, de Gayatri Spivak, foi publicado sob o nome de Terry Eagleton na edição inaugural da revista Interventions (Outono, 1998), pelo menos seis meses antes de que as provas do livro de Spivak estivessem disponíveis. Terry Eagleton virou pós-moderno?” Numa primeira camada, Rubin está rebatendo a crítica de Eagleton à prática spivakiana de “reciclar” partes de seus próprios textos, mas, sobretudo, Rubin identifica aquele que é o fenômeno mais preocupante entre muitos dos detratores de Spivak: a recusa à leitura de seus textos. Este fenômeno — exibido recentemente entre nós por Paulo Arantes, que em um dos lançamentos de seu livro Formação e desconstrução: uma visita ao Museu da Ideologia Francesa referiu-se ironicamente à teórica indiana como a “musa dos estudos pós-coloniais” e a acusou de utilizar sua tradução de Gramatologia, de Jacques Derrida, para alavancar sua carreira — se opõe diametralmente àquilo que constitui a ética de leitura de Spivak, para quem o fundamental é adentrar nos protocolos do texto, sem acusar e sem tampouco relevar, para verificar aquilo que pode ser útil e buscar tornar o texto mais fiel a si mesmo. É este procedimento, inclusive, que fará Derrida, ao ver seu Espectros de Marx ser tomado como objeto de tal procedimento crítico, comentar sobre “a inabilidade de leitura” de Spivak.2

É difícil imaginar que a tradução brasileira — um trabalho hercúleo levado a cabo pela equipe da Editora Politeia e pelo tradutor Lucas Carpinelli —, lançada com mais de vinte anos de atraso, possa suscitar o mesmo tipo de debate acalorado e, no entanto, seria injusto afirmar que se trata de um feito extemporâneo. Em primeiro lugar, porque Crítica da razão pós-colonial: por uma história do presente fugidio permite complexificar a leitura, muitas vezes rasa, de Pode o subalterno falar? Como único texto traduzido até agora de Spivak no Brasil, fora um ou outro artigo em revistas acadêmicas ou antologias, a pergunta do título se canonizou como uma pergunta cuja ironia se perdeu. Em muitos sentidos, seria possível dizer que o/a subalterno/a é o próprio efeito dessa pergunta e que, portanto, não se trata de respondê-la afirmativamente ou negativamente. O terceiro capítulo de Crítica da razão pós-colonial é uma reescrita, por assim dizer, do ensaio mais conhecido de Spivak, em que o ponto de partida é, desta vez, uma reflexão acerca das políticas econômicas de empoderamento de mulheres na periferia do capitalismo e o seu lugar central — em detrimento do lugar precário das mulheres beneficiadas por tais programas — dentro do capital transnacional. Assim como na proibição do ritual sati, em que a preocupação pelo direito feminino se torna subterfúgio para a consolidação do império britânico, as políticas de desenvolvimento no “Sul global” tornam-se subterfúgios para o capitalismo sem fronteiras.

Em segundo lugar, a publicação do livro no Brasil pode contribuir muito para uma matização do afã “descolonizador”3 que tem impulsionado os algoritmos das redes sociais e alavancado os negócios milionários do mercado das artes. Embora seja preciso mencionar que os efeitos da colonização britânica da Índia no século XIX sejam muito diferente dos efeitos da colonização ibérica das Américas a partir do século XVI — penso, sobretudo, no genocídio indígena e no tráfico transatlântico de escravizados — aquilo que leva Spivak, neste livro, a questionar a pertinência de certo pensamento pós-colonial, sobretudo sob a sua forma institucionalizada na universidade estadunidense, diante do mundo globalizado do capital financeirizado, permanece atual e urgente para nós. No começo do primeiro capítulo já é possível ler que

Os estudos pós-coloniais e sua celebração inadvertida de um objeto perdido correm o risco de se converterem em um álibi caso não sejam posicionados no interior de um quadro geral. Os estudos do discurso colonial, quando se concentram exclusivamente na representação do colonizado ou na questão das colônias, por vezes podem mesmo servir à produção de conhecimento neocolonial contemporâneo, ao relegar o colonialismo/imperialismo firmemente ao passado e/ou ao sugerir a existência de uma linha contínua a ligar aquele passado ao nosso presente.

Não é que passado e presente não estejam interligados, mas a pressuposição de um continuum ininterrupto impede a avaliação das especificidades catastróficas do nosso presente.

É neste sentido também que Spivak pode produzir um estranhamento produtivo aos/às leitores/as brasileiros/as. Se o McCarthismo nos Estados Unidos promoveu uma diluição violenta das linhagens marxistas dentro das universidades norte-americanas, a ditadura no Brasil tornou as nossas universidades uma espécie de refúgio para as suas teorias — não obstante o exílio, a tortura e a desaparição forçada. Assim, a paranoia instaurada pela ditadura transbordou para os anos pós-redemocratização de modo a interditar aquilo que poderia questionar ou expandir os pressupostos de tais teorias — sob a acusação de serem “capitalistas”, “reformistas”, “neoliberais”, instaurando um verdadeiro quiasma. O mandamento é: marxismo e pós-estruturalismo não devem se misturar. O resultado é nefasto, sobretudo para o corpo discente: quem lê Derrida aprende a criticar Marx sem ler Marx, quem lê Marx aprende a criticar Derrida sem ler Derrida. Já a teórica indiana lê o texto marxista como um texto em desconstrução, não propriamente juntando Derrida e Marx, mas sem, principalmente, torná-los mutuamente excludentes como ferramentas analíticas, sujeitando ambos à ética de leitura à qual me referi no início deste texto. Deste modo, Marx é mobilizado com o intuito de manter aberto o que permanece em aberto nos seus textos — a despeito de décadas de enrijecimento operado pela tradição marxista — e Derrida é mobilizado sem renunciar a fatores econômicos e sócio-históricos.

O livro de Spivak se organiza em torno da noção da foraclusão do “informante nativo” em textos canônicos para as áreas de humanidades. Aqui parece haver dois movimentos em jogo: por um lado, a ideia de que aquilo que é expulso do campo Simbólico reaparece no Real; por outro, a ideia da criação do Homem — o sujeito ético, político e histórico do Iluminismo e suas linhagens posteriores — como aquilo que carrega a marca de expulsão do “informante nativo”. A desconfiança de Spivak para com a antropologia é notável e, no entanto, esse sentimento permanece como um ponto cego em sua obra, já que ela nunca explica à qual antropologia ela está se referindo e tampouco se debruça detidamente sobre a própria reflexão elaborada dentro do campo da antropologia contra a ideia do “informante nativo” e do “nativismo cultural”. Devemos, então, compreender o “informante nativo” como aquele cuja fala é decodificada e recodificada sempre por outro. Se estes pressupostos podem, a esta altura, parecer bastante consolidados, pelo menos dentro das humanidades, a riqueza da textualidade de Spivak está em suas demonstrações que, se não são exatamente didáticas e explicativas, impelem em nós o desejo de realizar uma leitura detida e cuidadosa. Enfrentar a sua escrita é trabalhoso e frequentemente nos vemos forçadas ao limite de nossa incompreensão: mas por toda parte há pistas, sinais de trânsito, notas que vão criando um texto paralelo. A promessa é sempre a do encontro com um caminho não óbvio: a promessa de que o pensamento contraintuitivo é a possibilidade de realizar um trabalho que não se dedica à reprodução do pensamento institucionalizado.

No primeiro capítulo sua leitura se volta a Kant, Hegel e Marx. Com relação a Kant, a questão é demonstrar como a sua teoria do Sublime ao mesmo tempo expulsa e precisa de sujeitos não europeus — “a humanidade crua”, compreendida como a dos “ainda-não-sujeitos”, para quem o “abismo do infinito é aterrador em vez de sublime” — para se consolidar como uma teoria que deve ser universalizada pela humanização corretiva. Com relação a Hegel, a leitura me parece mais ousada: discutindo os trechos da Estética em que ele lê o texto hindu Gītā, Spivak quer demonstrar como é eurocêntrico o pressuposto de que o imperialismo começou com os europeus. Se, para Hegel, o texto hindu é a antítese de sua definição para estética — a incongruência entre forma/conteúdo e sentido — para Spivak parece importante considerar sua importância para a supremacia brâmane e o nacionalismo hindu que, como Hegel, propagam os ensinamentos do texto sagrado com suprahistóricos. Diz Spivak:

Se uma estudante da cultura desejar levar tais considerações adiante, a diferença meticulosa que existe entre o texto de Kant e o de Hegel quanto à figuração do informante nativo deveria mobilizá-la a investigar as diferenças entre a opressão a que foram submetidos os aborígenes australianos e grupos como os habitantes da Terra do Fogo e a produção do sujeito colonial dominante hindu, em lugar de postular um ‘terceiro mundo’ unificado, perdido, ou, argumento ainda mais dúbio, alojado exclusivamente entre as minorias étnicas do primeiro mundo.

Com relação a Marx, o intuito é questionar seus escritos com Engels sobre o modo asiático de produção, uma taxonomia, segundo Spivak, criada para responder à pergunta: “por que a lógica normativa do capital não determinou a si mesma de forma idêntica por toda parte?” O que essa taxonomia revela é uma pergunta pela diferença. É esta segunda pergunta, a da diferença nos textos de Marx, que Spivak perseguirá no decorrer do capítulo chegando a uma série de considerações sobre a forma-valor e différance entre capitalismo e socialismo, ideia que será retomada brevemente em seu capítulo seguinte e que está presente em muitos de seus outros textos.

No decorrer do primeiro capítulo, acena-se múltiplas vezes para a questão da mulher subalterna como a “informante nativa” foracluída, abrindo caminho para aquilo que será a questão principal do restante dos seus capítulos. Na parte que antecede a leitura de Marx, Spivak inclusive menciona uma reescrita que ela teria gostado de fazer:

Pego-me reiteradamente querendo escrever esta seção de forma diferente. Uma forma de fazê-lo seria começar com esta citação do Manifesto comunista: “Quanto menos habilidade e força o trabalho manual exige, isto é, quanto mais a indústria moderna progride, tanto mais o trabalho dos homens é suplantado pelo de mulheres […]”.

Palco, Mauricio Ianês

No segundo capítulo, então, o feminismo emancipatório individualista europeu de Jane Eyre, de Charlotte Brontë, é confrontando com a sua releitura caribenha em Wide Sargasso Sea, de Jean Rhys. Frankenstein, de Mary Shelley, e a monstruosidade nele contida, surge como uma anomalia bem-vinda dentro das estruturas europeias do século XIX, seguida por uma leitura de “Pterodactyl, Pirtha and Puran Sahay”, da escritora indiana Mahasweta Devi; na seção seguinte aparecem Baudelaire, Kipling e um documento apresentado em uma reunião secreta dos diretores da Companhia das Índias Ocidentais de modo a compreender a presença inquietante de algumas figuras femininas racializadas; por fim, Foe, de Coetzee, é lido com um livro em que o personagem Sexta-feira se torna o “limite retido”, recusando-se a atuar como um “informante nativo” para a narradora inglesa branca, Susan Barton.

O terceiro capítulo, como já mencionei, é uma reescrita de Pode o subalterno falar?, ou, mais apropriadamente, uma tentativa de controlar a sua recepção.4 Nele, é possível vislumbrar uma tentativa de delimitar, com maior precisão, a noção de subalternidade, buscando removê-la tanto do multiculturalismo liberal quanto do feminismo branco, problematizando, também, a reivindicação de “subalternidade” por parte de mulheres imigrantes e/ou racializadas como não brancas nos Estados Unidos e na Europa que, no entanto, participam ou acederam aos circuitos econômicos ou institucionais legitimados pelas estruturas de poder. Isso, evidentemente, não visa apagar as diferenças entre mulheres brancas e mulheres não brancas que ocupam os mesmos cargos em universidades, órgãos governamentais ou empresas, mas alerta contra a subsunção da divisão internacional do trabalho operada pelo capitalismo transnacional em categorias raciais, sobretudo as categorias mais genéricas como “women of color”, que tornam possível uma suposta equivalência sócio-histórica entre japonesas e árabes, por exemplo, ou mulheres negras e mulheres latinas não negras nos Estados Unidos. Não à toa, o último capítulo, que se dedica a uma leitura de Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, de Jameson, termina com uma reflexão acerca das trabalhadoras da indústria têxtil em Bangladesh. Se há gente do mundo todo nos Estados Unidos, se a história deste país, em muitos sentidos pós-colonial, é complexa, Spivak não cansa de afirmar que é importante lembrar que os Estados Unidos não são o mundo todo.

Ler a autora no Brasil exige, certamente, alguma cautela, pois muitas de suas críticas se voltam a um modo de multiculturalismo liberal que nos é estranho — embora cada vez menos, com tudo que isso tem de prejudicial, mas também benéfico face ao monoculturalismo conservador —, ao mesmo tempo em que não nos são estranhos, ou pelo menos não deveriam ser, os efeitos da divisão internacional do trabalho ou do desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo. Se é cada vez mais disponível para nós aqui, seja por meio de traduções, seja por meio de sites russos, livros escritos nos Estados Unidos sobre estudos de gênero, teoria queer, teorias críticas da raça e teorias pós-coloniais/decoloniais, evidência em si das dinâmicas centro/periferia no que diz respeito à diferença de investimentos em editoras, sobretudo as universitárias, ou de investimento em pesquisa, o que parece mais relevante na obra de Spivak — mesmo quando discordamos dela — é sua posição crítica incansável, sua recusa às platitudes e ao trabalho intelectual reprodutivo. Ela nos lembra constantemente disso: quanto daquilo que criticamos está implicado nas estruturas de nossa própria produção acadêmica e onde estão os nossos pontos cegos? Não à toa, ela reescreve obsessivamente os seus próprios textos; não à toa, tanto de sua escrita surge de seu trabalho em sala de aula como professora de teoria literária e literatura comparada — a sala de aula como lugar por excelência do pensamento em movimento. Espero que a publicação brasileira de Crítica da razão pós-colonial abra caminho para a tradução e a publicação de outros livros fundamentais da autora, tais como Outside in the Teaching Machine e o An Aesthetic Education in the Era of Globalization. Talvez assim ela possa finalmente deixar de ser uma autora pouco lida cujo nome — e cuja pergunta — todo mundo conhece.