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Como uma papoula na brisa

resenha de Autobiografia do vermelho, de Anne Carson

Etna I, Julia de Souza

“Havia muitas maneiras diferentes de contar uma história como essa”, diz Anne Carson na introdução de Autobiografia do vermelho. Ela se refere à história de Gerião, personagem perimetral da mitologia grega — um monstro vermelho cuja forma física monstruosa foi descrita de forma variável: poderia ter um ou três corpos, uma ou três cabeças, um ou dois pares de asas. O certo é que vivia em Eriteia, “o lugar vermelho”, onde cuidava de um rebanho de gado vermelho acompanhado de seu cão, também vermelho. Gerião e seu cão são, por fim, assassinados por Héracles, o herói e semideus cujo décimo trabalho consistia em tomar de assalto o rebanho do monstro vermelho.

A história de Gerião foi contada com interesse singular por Estesícoro, poeta nascido por volta de 650 a.C. em Hímera, na costa norte da Sicília. Em sua Gerioneida, Estesícoro narra a trajetória de Gerião em um extenso poema lírico, do qual sobreviveram apenas 84 fragmentos e algumas citações. “Havia muitas maneiras diferentes de contar uma história como essa”, diz Carson, enfatizando o surpreendente pacto de Estesícoro com aquilo que se opõe ao arrojo hercúleo: o centro de seu poema é o próprio Gerião, sua vida junto ao gado e ao cão vermelhos até ser atingido pela flecha venenosa de Héracles.

Anne Carson também quis contar essa história, à sua maneira, ou a uma maneira mista, seguindo os passos de Estesícoro, ao manter Gerião no centro da narrativa, mas também os de Gertrude Stein, assinando a autobiografia de outro personagem e transtornando, como veremos, a noção de identidade e as substâncias do mundo.

Nesta nova encarnação, Gerião vive no século XX em uma ilha no Atlântico; já não tem três cabeças e tampouco cuida de bois vermelhos, mas mantém um par de asas que carrega reticente, investigando o teor do tempo, da distância — e sondando parâmetros.

Há muitos meninos que pensam que são
Monstros? Mas no meu caso estou certo disse Gerião ao
Cão eles estavam sentados nas falésias O cão o observava
Com alegria

ESTE PROBLEMA

Haveria muitas maneiras de escrever sobre a Autobiografia do vermelho, e todas elas me parecem difíceis. Tão difíceis e até mesmo impossíveis quanto a forma como soava, para Gerião, a palavra “cada”:

A palavra cada soprou em sua direção e desfez-se no vento.
Gerião sempre tivera
este problema: uma palavra como cada,
quando ele a fitava, desagregava-se em letras separadas e ia
embora.

“Cada”: pronome indefinido que destaca um indivíduo ou uma coisa na coletividade.

Talvez seja mais fácil, para Gerião, imaginar a palavra “cada” colada antes a uma pedra, se é que as pedras também não escorrem.

A BOLA OLHO-DE-GATO

Se os olhos de Gerião eram terríveis buracos, é de se esperar que se submetesse a brincadeiras sexuais com seu irmão em troca de bolas de gude e que o perturbasse, desde os primeiros anos escolares, a possível diferença entre o dentro e o fora.

Em sua autobiografia, Gerião registrava as coisas de dentro. Tentava conservar do lado de fora os eventos do fora. Mas algumas distinções eram difíceis para Gerião.

ARMA

O irmão de Gerião, menino violento e de cor indistinta, perguntou-lhe certa vez qual a sua arma preferida. Gerião, para quem a inação podia ser tão atroz quanto o movimento, respondeu, para a revolta de seu irmão: a jaula.

JAULA

Em seus Cadernos do cárcere, compostos durante os mais de quinze anos que passou encarcerado pelo governo fascista de Mussolini, Antonio Gramsci afirmou: “O velho mundo está morrendo, o novo tarda a nascer. Nesse claro-escuro, surgem os monstros”. Recentemente, o artista chileno Alfredo Jaar reproduziu tal passagem de Gramsci em milhares de cartazes verde-amarelos que foram distribuídos na última Bienal de São Paulo. Alfredo Jaar também mandou imprimir em cartazes os seguintes dizeres, atribuídos ao fotógrafo Ansel Adams: “Você não tira uma fotografia. Você faz uma fotografia”.

Para o irmão de Gerião, a jaula não destrói o inimigo.

FRUTA

Etna II, Julia de Souza

Antes que ele aprendesse a escrever, a autobiografia de Gerião era uma escultura. É uma escultura linda, disse sua mãe. Gerião tentava traduzir-se em peso, densidade, volume; Gerião queria traduzir-se em forma, ter a consistência inequívoca de uma fruta: polpa, mas sobretudo pele.

MÃOS

Gerião aprendeu a escrever. Em seu caderno japonês de capa fluorescente, Gerião contava a história de Gerião. Ali ele descreveu sua mãe como um rio, o rio Alegria Vermelha. Ali ele também começou a registrar o alvoroço estranho das substâncias — as brisas (por que não?), sopram de mãos dadas pelo mundo inteiro.

TÚNEL

Na adolescência, Gerião conheceu Héracles.

Héracles foi e não foi o seu algoz.

O momento em que se viram pela primeira vez foi “um daqueles momentos que são o oposto da cegueira”:

O mundo entornou dos olhos de um para os olhos do
outro uma ou duas vezes

No ímpeto de continuidade da paixão, o dentro de um penetra o dentro do outro com a violência de um fora — o abismo dos olhos de Gerião se aprofunda, como um túnel. A paixão [o equívoco] reside nessa indistinção [neste equívoco] entre o dentro e o fora.

Na tradução exemplar de Ismar Tirelli Neto, o “wrong love” que acomete Gerião é agora um amor “equívoco” — desdobrando a limitação adjetival de “wrong” na ambivalência de uma palavra que é adjetivo e substantivo.

ASSOMBRO

Apelo agora ao sublime porque estamos tratando (e voltaremos a tratar, se chegarmos ao fim) da infinitude, de um fundo sem fundo, e também porque a união de Gerião e Héracles se dá no “assombro como dois cortes paralelos/ na mesma carne.”

Em Uma investigação filosófica acerca da origem das nossas ideias do sublime e do belo, publicado originalmente em 1769, Edmund Burke escreveu:

(…) o assombro é aquele estado da alma no qual todos os seus movimentos estão suspensos, com algum grau de horror. (…) O assombro, como disse, é o efeito do sublime no seu maior grau.

(p. 77)

E ainda:

a paixão do amor é capaz de produzir efeitos muito extraordinários e não que as suas emoções extraordinárias tenham alguma coisa a ver com a dor positiva.

(p. 59)

(a palavra “sublime” não aparece sequer uma vez na Autobiografia do vermelho.)

QUE ALGUMA COISA LHE ACONTEÇA

Pode-se definir o momento em que Gerião encontra Héracles como um evento, tomando de empréstimo as proposições de Alain Badiou, filósofo que pensou o ser como fruto de uma incisão:

Para que o animal se torne um sujeito imortal, é preciso que alguma coisa lhe aconteça. Alguma coisa diferente de “aquilo” que há. Esse suplemento, vamos chamá-lo de evento. […] Ser fiel a um evento é mover-se na situação que esse evento suplementou, pensando e praticando a situação a partir do evento. […] A fidelidade ao evento é ruptura real (pensada e praticada) na ordem em que o evento teve lugar (política, amorosa, artística, científica…) […] O “alguém” é assim tomado no processo de uma verdade.

(p. 109–110)

A ética de uma verdade diz-se então facilmente: “Faze tudo o que podes fazer para fazer perseverar o que excedeu tua perseverança. Persevera na interrupção. Captura em teu ser o que te tomou e arrebatou”.

(p. 113)

Gerião persevera, ladeando Héracles até o Hades e perguntando-se sempre, a partir desse evento: “qual o aspecto da distância?”. Gerião segue rumo à verdade de sua deformação.

Na casa de avó de Héracles, ele pergunta a Gerião: Posso te mostrar nosso vulcão?

QUINZE MINUTOS

Etna III, Julia de Souza

Agora a autobiografia de Gerião é feita de fotos — fotos que ele mesmo faz, para seu próprio espanto. Mas há também a foto tomada pela avó de Héracles, a dona do vulcão: “Paciência vermelha”, se chamava a fotografia que a mulher havia feito com uma exposição de quinze minutos, registrando tanto a forma geral do cone vulcânico quanto a explosão de suas bombas, o derramar das cinzas, os pinheiros a seus pés prestes a sucumbirem. Há que se ter paciência para registrar a duração dos humores de um vulcão. Quando comprimida em uma só imagem, essa duração se intumesce ou perde a força?


Certa vez, depois que fui a um vulcão, escrevi: “O vulcão não distingue velhos de moços, a não ser pelo tempo que cada um levaria para correr dos rios de lava numa eventual erupção. Pode-se dizer que uma erupção é algo eventual?”.

DEFEITO

Gerião “está confundindo sujeito e objeto”, diz a avó de Héracles. Me parece uma observação justa, que vai ao encontro da dificuldade que nosso monstro sofria para divisar o dentro e o fora.

A confusão também se dá na cadência estranha com que evoluem as múltiplas vozes do romance em versos, a forma como cada voz desponta em Autobiografia do vermelho. Há, aqui, um defeito do “cada”:

Não é a foto que te perturba é você que não entende o que
é a fotografia.
A fotografia é perturbadora, disse Gerião.
A fotografia é uma forma de jogar com relações
perceptivas.
Bom exatamente.

Na escrita de Anne Carson, essa alternância inadvertida de pontos de vista é, também, uma forma de jogar com as relações perceptivas do leitor — e, assim como para Gerião, também nos parece difícil saber qual o “o aspecto da distância” (e se ela de fato existe).

FRUTEIRA

É preciso voltar um pouco no tempo, voltar à infância do monstro vermelho, pois certa vez seu irmão, sempre carente de guerra, coloca uma fruteira vazia sobre a cabeça de Gerião. Sempre vazia era a fruteira da mãe de Gerião. A voz de Gerião, mediada pela concavidade da fruteira, sai abafada. E de repente, numa torção de linguagem tão simples quanto a substituição, não há mais Gerião ou voz de Gerião: agora é a fruteira — o objeto — quem existe e fala.

A MELANCOLIA DE GERIÃO

Héracles, espelho irrefletido de Gerião, prefere a alegria: “vamos fazer algo animado”.

Mas Gerião, pressentindo a disparidade de seu laço com Héracles (“este par ímpar”), pressentindo estar a mais, mergulha em uma tristeza infantil — a tristeza da inadequação, esse mal dos monstros. Aqui, já identificado como ESCRAVO DO AMOR — frase que picha no muro, nosso monstro se aproxima, enfim, do “aspecto da distância”.

Em Luto e melancolia, Freud — personagem que também tem lugar no livro de Anne Carson — descreve o estado melancólico com uma imagem emblemática de fantasmagoria: “a sombra do objeto caiu sobre o ego” (p. 61).

Os fantasmas, que antes Gerião deixara para trás “farfalhando como mapas velhos”, se atualizam ante a perda iminente.

A AUSÊNCIA É UM ESTAR EM MIM

Toda fotografia é a atualização de uma assombração: a presença de uma ausência, a ausência de uma presença. “Você faz uma fotografia” — você cria um fantasma. Algo se desloca, nesse intervalo entre presença-ausência-presença? Há uma intensidade possível nesses fantasmas? Uma fotografia de longa exposição carrega mais fantasmas que os instantâneos?


Para Walter Benjamin, o fotógrafo Eugène Atget, que retratou a Paris dos fins do século XIX e início do século XX, fotografava a cidade “como quem fotografava o local de um crime” (p. 174)

No verso de suas fotografias, Atget escrevia: “va disparaître” (vai desaparecer).

Uma fotografia de longa exposição demora mais a desaparecer?

HOW TO DISAPPEAR COMPLETELY

Também Gerião quis, por vezes, desaparecer: “Um puro e ousado desejo de sumir o preencheu”. E, se desaparecer completamente num piscar de olhos não está ao alcance nem mesmo dos monstros, Gerião, diante da dissonância de seu encontro com Héracles, cogitou o recurso do sono: “teve um súbito e forte desejo de ir dormir”.

E era na antessala do sono que Gerião gostava de pensar sua autobiografia: “naquele estado turvo/ entre desperto e dormindo quando há abertas na alma/ válvulas de entrada em demasia”.

A autobiografia, agora vertida em ensaio fotográfico, chega-lhe pelas brechas da alma, de sua “alma dividida”.

Acaso Gerião, monstro poroso, apela à câmera fotográfica em busca de uma mediação, de uma membrana que, apesar de translúcida, seja uma fronteira entre o dentro e o fora?

DEFORMAÇÃO

Etna IV, Julia de Souza

Gosto de pensar que Autobiografia do vermelho é um romance de mão dupla: um romance de formação e de deformação.

Acompanhamos Gerião avançar da infância à juventude, testemunhamos sua alfabetização e o despertar de seu corpo erótico, e sabemos ainda que sua vida excederá inclusive as páginas do livro. Mas Gerião, como certas palavras que não se firmam em sua mente, está sempre sob o risco de dissolver-se, desintegrar-se: “Os gritos tiravam-lhe pequenas lascas”; ou: “Ele se postou contra o vento/ e deixou-se descamar/ por completo”.

Para o monstro Gerião, os fenômenos atmosféricos têm corpo e violência, como “um denso punho de névoa” ou uma “Manhã de pressão quente”. As substâncias, os fluidos e influxos do mundo também se comovem, como se refletissem ou animassem os afetos mistos de Gerião:

À noite o Pacífico é/ vermelho/ e exala uma fuligem de desejo

Em Que emoção! Que emoção? (p. 26), o filósofo Georges Didi-Huberman observa que, para Merleau-Ponty, o “evento afetivo da emoção é uma abertura efetiva” — e a abertura parece justamente ser um dos traços centrais do monstro Gerião e seus olhos esburacados. Sobre o ser Gerião, a inscrição do mundo.

Já na perspectiva de Freud, pontua Didi-Huberman, a emoção “age sobre mim mas, ao mesmo tempo, está além de mim. Ela está em mim, mas fora de mim”. Quando Didi-Huberman descreve o pensamento de Freud aplicando-o a si [mim], ele está falando de Freud, de si, ou da linguagem?


Assim, mesmo naquilo que Gerião reconhece como seu, como o que está dentro, a revolta dos fenômenos não é menos intrusiva: “atravessou os incêndios em sua mente”; “fogos retorciam-se através dele”. Através: talvez seja esta uma das palavras que constituem a formação deformativa de Gerião. Ao que parece, sua superfície não é coberta por pele, e sim por uma membrana — “a pele da alma é um milagre de pressões mútuas”. Há uma batalha instalada no ser Gerião, uma disputa entre a independência das substâncias ou seu equívoco.

VER E NÃO VER O VULCÃO

Gerião, Héracles e sua avó veem o vulcão primeiro através do vidro do carro. Quando põem os pés no chão, perto da lava sonora que emite “um guinchado vítreo”, sobram palavras na boca de Héracles e de sua avó e as palavras — a cultura, a descrição — ofuscam o próprio vulcão.

Gerião se sentiu “imenso e descabido” e adormeceu. Acordou quando o carro já tomava distância das rochas negras do vulcão. Seriam então amigos, diz Héracles a Gerião.

HIATO

Muito em breve, um Gerião choroso estaria de volta à sua casa, prestes a encarar “um período morto, preso entre/ a língua e o gosto”. Não via mais nada mais que um fenômeno físico na fotografia.

A CÂNTAROS

Choro por Gerião e chove. Choro com Gerião e chove e meu coração aperta quando, sentindo pena de Gerião, sentido pena de mim por sentir pena de Gerião, descubro novos e estranhos modos de entristecer. “Não quero ser livre quero estar com você”. Chove ainda.

Gerião faz as malas, rumo ao Sul do Sul da América, que “brilhava como um abacate”, deixando sua vida para trás “como se fosse uma temporada escassa”.

HOMENS NÃO

Dentro do avião, a caminho da Argentina, Gerião lê um guia de viagens. Fica sabendo então que, na Terra do Fogo, existiu o povo Yamana — “que enquanto substantivo significa/ ‘pessoas não animais’ ou como verbo ‘viver, respirar, ser feliz, recuperar-se de uma doença, tornar-se são’.” Essa passagem chama a atenção de Gerião. Afinal, há ou houve pessoas “não animais”, mas esse não era precisamente o seu caso, o de homem-monstro-alado. Darwin, no entanto, que conheceu os Yamana, considerou-os “homens-macacos indignos de estudo”. Haverá algum homem que não é um homem-macaco?, talvez tenha pensado Gerião.

O nome do barco que levou Darwin ao Sul do Sul da América era o nome de um cão.

CAFÉ COM MUNDO

Em Buenos Aires, Gerião elege um café preferido, onde se senta para escrever cartões postais. O café se chama Mitwelt, palavra alemã que significa “com mundo”.

Aqui Anne Carson e Gerião jogam pingue-pongue com Heidegger e sua teoria do “animal pobre de mundo” — a pedra representaria um estado ainda anterior, “sem mundo”, e o homem existiria como “formador de mundo”.

“Não existe pessoa sem mundo”, diz Anne Carson, ou disse Gerião, que, na “deserção vazia de sua própria mente”, cogitava ser louco. A loucura, essa criatura exclusivamente humana. Gerião cogitava, portanto, ser humano.

AS ROSAS NÃO FALAM

Uma das perturbações experimentadas por Gerião em seus anos escolares foi a especulação sobre “o som que fazem as cores”.

Se eu parar para pensar, não se trata de operação tão estranha. Lembro de um jogo da minha infância que consistia em associar os dias da semana às cores. A quarta-feira, por exemplo, me parecia amarela. E a quinta-feira nunca deixou de ser vermelha.

BARBAMARELA

No café Mitwelt, Gerião conheceu barbamarela, pesquisador de filosofia que estava na cidade para uma conferência. Barbamarela disse a Gerião que deseja estudar “o erotismo da dúvida” como “precondição (…) da real busca pela verdade”. Mas a verdade só poderia ser alcançada, pondera barbamarela, caso “se consiga renunciar (…) a esse traço humano fundamental (…) — o desejo de saber”.

Talvez a filosofia seja mesmo uma ciência da dúvida. Ou um pacto com a dúvida, um pacto lascivo com a dúvida, ou ainda uma relação com o saber pautada por ciclos descontínuos de erosão e sedimentação e erosão e.

Em “Che cos’è la poesia”, Jacques Derrida afirma que, para responder a tal pergunta (o que é a poesia?), é preciso “renunciar ao saber”. Penso agora que, para Gerião, a impregnação incomunicável da cor, a impregnação do vermelho sobre as todas as vistas do mundo se irmana da forma como certos poemas nos obrigam a renunciar à sedimentação do saber: “Negar a existência do vermelho/ é como negar a existência do mistério”, lê Gerião em seu volume de Problemas filosóficos, enquanto sente “toneladas/ de magma negro fervendo/ nas mais profundas regiões de si”.

SUBSTÂNCIA

“De que é feito o tempo?”, Gerião seguiu perguntando, dando lenha à dúvida.

Para Gerião, o tempo tem “encostas”, é montanhoso e encorpado. No anoitecer precoce do inverno, há “asperezas nas bordas da luz”; algo parece sempre emparedando Gerião, sem nunca lhe entregar qualquer ordenação. Na palestra de barbamarela, o monstro Gerião percebe que o ceticismo pode ser um jogo de substituições e equivalências, mas não aprende nada novo sobre o vermelho.

EXTRAVIOS

Lazarus (em hebraico, “Deus ajudou”) reencarna aqui como Lazer, um cético que Gerião conhece no Bar Guerra Civil e que confia na dúvida de Deus: “o que é a mortalidade senão a dúvida divina/ lampejando sobre nós”?

Não fica claro, na conversa entre Gerião e Lazer, qual dos dois afirma que desaparece “com frequência”, em “momentos de morte”. A dúvida que Deus despeja sobre nós tem um componente erótico?

De volta ao quarto de hotel, Gerião faz um autorretrato em preto e branco, um nu em posição fetal — “Nada de caudas”, chama-se a fotografia, que expõe, em um momento raro, suas asas, que têm a forma do mapa da América do Sul. Na América do Sul, falta uma mãe a Gerião.

ACORDEÃO

Etna V, Julia de Souza

Gerião sai à rua, atravessando as sarjetas da Avenida Bolívar — Bolívar, El libertador.

Tudo é um pouco sujo nas ruas da América do Sul, e Gerião acaba por se refugiar em um bar de tango autêntico. A cantora de garganta cortante abordou Gerião, que estava ereto, excitado, tinha novamente três braços. It “takes two to tango” me lembro agora da canção, que não é um tango. Na verdade, não: “Tango não é para todo mundo”. E o contrário de “todo mundo” nunca é dois.

“O desesperado drama de ser um eu numa canção”, é o que sentia Gerião, temendo o eco edificante dos divãs da culpa e da palavra (a cantora de tango era também psicanalista).

PÁSSARO SOM/ PÁSSARO ÍMPAR

É mesmo impossível evitar a tal esquina da verdade. Gerião esbarra em Héracles em pleno sábado à noite de Buenos Aires. O ex-amante de Gerião estava viajando pela América do Sul com seu novo amante — Ancash — para gravar o som dos vulcões. Seria um documentário sobre Emily Dickinson, já que a poeta havia escrito poemas em que despontam vulcões (como aquele citado na epígrafe da Autobiografia do vermelho, e voltarei a ele quando conseguir chegar a algum fim).

Héracles e Ancash falam a Gerião sobre a rapidez da queda da lava, placas continentais, cinzas vulcânicas e fogo que se fundem à chuva em pleno ar e queimam as asas dos pássaros. Falam, enfim, sobre a desforra, a baderna das substâncias. Isso muito interessa a Gerião, que segue em viagem com o casal em direção a Lima.

“Tudo depende da sensibilidade do sismógrafo”, reza a escala Richter. Mas o desejo não se relativiza, “o desejo não é coisa leve”.

A MORTE É ESTÚPIDA,

é o que Ancash disse que dissera sua mãe.

ALGUMAS PASSAGENS DO LIVRO QUE EXPRESSAM A INSENSATEZ DAS SUBSTÂNCIAS QUANDO PERCEBIDAS POR GERIÃO

Arrastando-se até a borda da cama fixou a opaca
amplitude da chuva
Algo negro e
pesado caiu
entre eles como um cheiro de veludo.
Subitamente a noite era uma tigela de silêncio
fechou os olhos e ouviu os motores vibrando
profundamente nos canais
borrifados de lua de seu cérebro
O tempo
estava espremendo Gerião como os foles de um acordeão.

À ESPERA

Uma vez, em um poema, me perguntei se os cães sabem o que é a espera. Em Lima, aparentemente, eles sabem — ou são a própria espera. “Lima é terrível”, pensou Gerião. “Por que estou aqui.” O céu também esperava. Gerião, por sua vez, ansiava. Pelo quê? Se cérebro está branco; seria isso uma abertura?

BIZARRE LOVE TRIANGLE

Em Lima, os três se reúnem à mãe de Ancash. Há uma nuvem sólida entre Gerião e Héracles, que parece cada vez mais infantil — como costumam ser infantis os algozes. Ancash, por sua vez, protege Gerião do frio do inverno andino.

SUBIR ATÉ SUMIR

Na viagem até Huaraz, onde veriam o vulcão, Héracles fala abobrinhas. Quando chegam àquele lugar alto, a precariedade da América subdesenvolvida — os dentes quebrados desta América — agride os olhos de Gerião, que realiza enfim sua dissolução: “Estou desaparecendo”.

QUE LOGO SOU

Gerião fotografa uma porquinha-da-índia com quem divide um prato de comida. A porquinha encara Gerião. A fotografia chama-se “Eu sou um bicho”. Os olhos da porquinha refletem todos eles, toda a quadrilha. Quando os olhos da porquinha-da-índia esvaziam, aquele retalho de mundo se esvazia. Logo, Gerião estará “nu demais”.

“O homem é uma doença mortal do animal”, dizem ter escrito Alexandre Kojève.

SEMPRE QUE ENTRAR NAS PROFUNDEZAS, PENSE NAS ALTURAS

Ancash conta a Gerião que em Jucu, região vulcânica, venerava-se o vulcão como a um Deus. O vulcão era um dispositivo de teste: procurava-se dentro dele quem ali tivesse entrado e depois saído. “Pessoas que viram o interior de um vulcão” e “retornam como gente vermelha com asas” — retornam como Gerião, que Anne Carson fez retornar. Essas pessoas seriam, depois de superarem o vulcão, imortais.

Ancash pede a Gerião: “Quero ver você usando essas asas”.

SEGREDO

Gerião trafega o coração do vulcão, pesando-se sobre o vermelho de suas asas, e grava — registra — fotografa — memoriza o mergulho dedicado a Ancash. “Isto é uma memória da nossa beleza”.

PÃO

Etna VI, Julia de Souza

Depois do início, foi o trigo, foi o forno. Mas havia ainda o fogo, que olhava para os homens (zelava por eles?). E quem são os homens? São três, em sua aventura.

O segredo está dado desde o início, no poema de Emily Dickinson: “Is immortallity”.

FUI ATÉ O CENTRO DA TERRA

Em um de seus aforismos, Franz Kafka é fatal: “A partir de certo ponto não há mais retorno. E é este o ponto que deve ser alcançado.”

ONDE ANDARÁS

Onde está o cão de Gerião? Estesícoro, em entrevista póstuma incluída no apêndice de Autobiografia do vermelho, responde: “That’s three”. Na tradução oportuna de Ismar Tirelli Neto: “São três”.

GLOSSÁRIO PROVISÓRIO DE PALAVRAS CRUCIAIS QUE RIMAM COM GERIÃO (e suas correspondências no texto original):

Gerião..............Geryon
Cão..............Dog
Irmão..............Brother
Vulcão..............Volcano
Paixão..............Passion
Erupção..............Eruption
Servidão..............Captivity
Coração..............Heart
Pichação..............Painting
Exposição..............Exposure
Deformação..............Strain
Emoção..............Disturbance
Transição..............Transition
Avião..............Plane