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“Chegamos primeiro!” — o patrimonialismo empresarial brasileiro e a crise do transporte coletivo

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Comunicações & Concorrências, Néstor Gutiérrez

Tarifa zero: um sistema de transporte gratuito para todos. Uma prestação de serviço com financiamento garantido pelo Estado, independentemente do fluxo de passageiros transportados. A ideia parece ótima tanto para os passageiros quanto para os empresários do setor, mas a história não é bem assim. Quando debatida em fóruns públicos, a Tarifa Zero é muitas vezes tratada com descaso e, no máximo, condescendência pelas empresas de ônibus. Cabe então perguntar: por que elas não abraçam a proposta? Parte da resposta passa pelas origens do empresariado de ônibus no país, pela forma proprietária e patrimonialista com que encaram passageiros, poder público e trabalhadores rodoviários. Nos parágrafos a seguir, vou puxar esse fio sobre a gênese do empresariado de ônibus para explorar a dependência mutualista parasitária dos donos das frotas com a caótica urbanização do século XX, a fim de iluminar como isso se reflete no debate sobre a regulação do setor, que se encontra em sua mais profunda crise em mais de um século de existência.


A história da urbanização no Brasil é um amplo campo de pesquisa. Como a maior parte do debate tem focado nos fatores de sua expansão, com destaque para o problema da habitação, relativamente pouca atenção tem sido dada à morfologia interna das cidades e sua relação com os sistemas de mobilidade urbana.

A urbanização brasileira é provavelmente o fenômeno mais vivo no imaginário social do radical processo de modernização pelo qual passou o país no século XX. A inversão da proporção da população rural-urbano no território nacional não teve escala nem velocidade comparáveis em qualquer outro lugar do mundo até então: entre 1940 e 1980 a população urbana passa de 13 milhões para cerca de 82 milhões de pessoas, atingindo 70% da população total — em comparação com os cerca de 30% de 1940. Setenta milhões de novos habitantes citadinos em apenas quarenta anos. Processos semelhantes em escala demoraram mais de um século para acontecer nos Estados Unidos e na Europa Ocidental. Por sua vez, inversões rural-urbanas tão rápidas no século XX só ocorreram em países com populações bem menores, como na antiga Iugoslávia.1

O senso comum costuma associar urbanização a adensamento populacional, como se vê nas clássicas imagens de grandes prédios no centro da cidade ou das favelas apinhadas. Mas na verdade o crescimento urbano se deu, contraintuitivamente, a partir da diminuição da densidade populacional. Em seu livro A Cidade e a lei (1997), Raquel Rolnik constatou que a densidade populacional de São Paulo passou de 110 habitantes por hectare em 1914 para 53 habitantes por hectare em 1963, período em que a população da capital saltou de 450 mil para 4,5 milhões de pessoas. O contingente de migrantes — de outras regiões do país ou de cidades do interior do estado — foi de fato morar nas periferias das metrópoles, onde não havia infraestrutura e o preço da terra era o mais baixo possível. A dinâmica urbana só pôde continuar o seu implacável curso dessa maneira devido principalmente a um ator muitas vezes negligenciado na historiografia urbana: a enorme oferta de ônibus urbanos e seus operadores.

Esse preâmbulo é necessário para entender o comportamento dos donos dos ônibus urbanos no Brasil, pois foi sempre valendo-se do padrão periférico e da baixa infraestrutura das cidades que eles fizeram dinheiro grosso. Pegue o exemplo da Viação Cometa. Em 1937, um grupo de especuladores abriu um loteamento no então longínquo bairro do Jabaquara, na capital paulista.2 Na época, não existia transporte até o lugar, o que dificultava a venda dos terrenos e tornava o investimento pouco atrativo. Os especuladores conseguiram então licenças de operação com a prefeitura e montaram uma linha de ônibus Jabaquara-Centro. A linha logo se tornou mais rentável que o empreendimento, e a viação cresceu até migrar para o setor de ônibus rodoviário.

Belo Horizonte conhece histórias semelhantes. Oscar Andrade — pai do ex-senador e ex-presidente da Confederação Nacional dos Transportes, Clésio Andrade — era um carroceiro analfabeto em Juatuba que juntou dinheiro suficiente para comprar um caminhão, e do caminhão comprou um ônibus na linha Santa Efigênia, no começo da década de 1950.3 Desse ponto, Oscar foi aumentando a frota na linha até que passou a investir em linhas periféricas na região de Venda Nova, norte de Belo Horizonte. De início, as linhas eram deficitárias, mas, depois de alguns anos, passaram a ser imensamente lucrativas. A lógica se dava na seguinte forma: a linha para o bairro distante poderia não dar lucro ou mesmo dar prejuízo nos primeiros anos, mas o caminho até o bairro distante era invariavelmente formado por vários vazios territoriais que eram rapidamente preenchidos também graças à existência da própria linha. A omissão do poder público em pensar um sistema integrado de transporte coletivo permitia que o ofertante da linha mais distante adquirisse um “monopólio geográfico” mais ou menos tácito sobre a região, tendo preferência para ofertar novas linhas nos bairros nascentes assim que fossem solicitadas.4 Dessa maneira, a linha inicial se tornava superavitária, compensando o primeiro investimento, e as linhas seguintes já começavam lucrativas. Esse papel da expansão de linhas não era dissimulado nem pelas próprias empresas de ônibus, como se vê numa propaganda veiculada em 1963 em Belo Horizonte. Nela, o transporte, embora uma pauta de interesse geral, é explicitamente apropriado pelo interesse privado:

Chegamos primeiro… e trouxemos conosco o progresso!

Quem chega primeiro às vilas e aos bairros nascentes são os ônibus dos Concessionários.

Chegam trazendo conforto, antes da água, da luz, do calçamento, mesmo em locais distantes onde jamais irão os ônibus elétricos.

E mesmo no começo, quando o serviço ainda é deficitário, muita gente já está ganhando.

Ganham os proprietários, que já podem construir, para morar ou alugar. Ganham os moradores, que podem ir e voltar do serviço. Ganham as esposas e seus filhos, que podem ir confortavelmente às compras ou às aulas.

Ganham os comerciantes, que encontram condições para iniciar seus negócios.

Ganham ainda os proprietários, com a imensa valorização dos lotes e das casas.

E ganha principalmente o povo, porque assim a cidade vai crescendo, sem pesar aos cofres públicos, sem custar mais impostos.

Esta é mais uma maneira pela qual servimos à cidade.

É mais um motivo pelo qual nos orgulhamos de ser concessionários.

(Fundação João Pinheiro, 1996, p. 199).

Outro fator na gênese do transporte coletivo por ônibus é que a tarifa paga pelo usuário é, desde o início, a base do seu financiamento. Isso pode parecer trivial, mas não é. Os bondes elétricos, por exemplo, que predominavam na paisagem urbana até 1945, funcionavam por outra lógica. Como precisavam de infraestrutura fixa para sua operação, o valor das tarifas era decidido levando-se em conta questões estratégicas mais amplas, em especial a oferta de energia elétrica em determinadas áreas. Regina Pacheco (1992) conta que, em troca do monopólio do fornecimento de energia elétrica para a cidade, a concessão para a Light do sistema de bondes da cidade de São Paulo teve, em 1909, sua tarifa recuada para o nível de 1900, patamar no qual permaneceu congelado até 1947.5

Os ônibus, pelo contrário, se espalharam no tecido urbano justamente por sua baixa necessidade de infraestrutura — bastava uma rua, de preferência asfaltada. Sendo assim, podiam surgir de um capital inicial pequeno, desvinculando-se de grandes fornecedores. Isso permitiu que se adequassem à “livre iniciativa” e que a tarifa refletisse o custo do serviço mais o lucro do empresário. Com o tempo, as tarifas passaram a ser reajustadas com frequência (o que estigmatizou o bonde como um transporte de pobres6). Individual, a oferta de ônibus se deu de forma esparsa, linha a linha, e não como sistema, como era o caso dos bondes. De início, cada linha tinha sua própria tarifa, o que tornava aquelas dos bairros mais distantes — portanto, os de população mais pobre — justamente as mais caras. Operava-se aqui mais uma volta do mecanismo de espoliação urbana debatido por Lúcio Kowarick em 1979: a classe trabalhadora, que tinha de se reproduzir abandonada à própria sorte, ainda precisava pagar mais pelo transporte urbano. A tarifa única que hoje em dia tomamos como absolutamente natural só começou valer de fato na década de 1980, em decorrência de um processo de modernização do sistema que teve como principal instrumento a Câmara de Compensação Tarifária (CCT). Cabe mencionar que contribuíram para essa mudança tanto o contexto de pressão inflacionária crescente da época quanto o surgimento de novas organizações de base, em especial os movimentos por mais infraestrutura e serviços nos bairros de periferia.

Assim, o transporte coletivo por ônibus na cidade brasileira tem, em seu berço, uma série de características que dita o comportamento do setor até os dias de hoje. Surge como esteio de uma urbanização caótica e desigual que assegurou uma demanda cativa ao setor. A baixa necessidade de capitalização, combinada com o uso intensivo de trabalho (inicialmente, muitos empresários eram seus próprios motoristas e dirigiam por doze a dezesseis horas diárias), permitiu a criação do arquétipo capitalista do self-made man. A ausência de regulação do setor por parte do Estado completa o cenário. Esses traços “genéticos” fizeram com que as empresas de ônibus, as viações, essa forma empresarial tipicamente brasileira7 (BRASILEIRO, HENRY, 1999), atravessassem os momentos de crise e modernização do setor com atitudes paternalistas para a população usuária e patrimonialistas em relação ao poder público. Noutros termos: os empresários tratam o serviço do transporte coletivo como benevolência para a população e como propriedade privada conquistada de forma meritocrática pelo sacrifício pioneiro de sua família, criando-se uma esfera na qual o Estado não deve se meter. Em sua visão de mundo, o fato de que o transporte coletivo é prerrogativa do poder público garantida pela Constituição, e que pode ser operado diretamente ou concedido a terceiros, é um mero detalhe.

Um último elemento ajuda a entender as ações do empresariado de ônibus em relação à Tarifa Zero: sua capacidade de articulação coletiva, algo que remonta ao começo dos anos 1980. Quando a inflação acelerada queimava o bolso dos brasileiros, reajustes tarifários foram estopins para várias revoltas, a mais famosa delas a de Salvador em 1981.8 Nesse caldeirão, os donos das frotas passaram a ventilar a proposta de vale-transporte: isto é, o trabalhador não pagaria mais sozinho pela passagem, passando a dividir seu custo com seu patrão. A medida foi efusivamente encampada pela nova geração de empresários — os filhos dos “pioneiros” das décadas de 1950 — e se tornou lei em 1985, passando a ser obrigatória em 1987.

O episódio mostra como o setor foi ganhando capacidade de mobilização coletiva à medida que crescia seu poder econômico. Não por acaso, os filhos dos pioneiros, Clésio Andrade entre eles, foram os fundadores da Associação Nacional das Empresas de Transporte Urbano (NTU) e os renovadores da Confederação Nacional do Transporte (CNT). Sob a gestão de Clésio Andrade a partir de 1993, a CNT redirecionou para si a contribuição sindical da folha de pagamentos, que antes ia para a Confederação Nacional da Indústria (CNI). Com o recurso, montou um sistema de assistência social e formação técnica, o Serviço Social do Transporte (Sest) e o Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte (Senat), equivalentes ao Sesi/Senai e ao Sesc/Senac. Esse sistema criou uma rede de benefícios e clientelismo que manteve Clésio Andrade na presidência até 2019. O ponto central aqui é que no processo de modernização do setor, o paternalismo se manteve intacto. Pelo contrário, parecem ter se reforçado com a cooptação de vários sindicatos de trabalhadores rodoviários pelos benefícios do SEST/SENAT e a atuação organizada em licitações e concessões.

Ao longo de toda essa história, a tarifa cobrada pelo direito ao uso do transporte — e as eventuais exceções advindas das gratuidades — permaneceu sendo um instrumento fundamental de controle dentro da lógica proprietária do empresariado. A barganha está tanto na possibilidade de acesso direto e cotidiano a um significativo volume de recursos com grande liquidez que permite evadir as regulações públicas quanto no poder sobre os segmentos sociais que são mais ou menos legítimos para transitar no espaço urbano. Não surpreende, portanto, que exista uma resistência mais ou menos tácita dos empresários à proposta de gratuidade universal representada na tarifa zero. De fato, o setor tem atuado com cada vez mais força para, ao contrário, “precificar” as gratuidades atuais já consolidadas, como a estabelecida na Constituição Federal aos idosos. O PL 4.392/2021 em tramitação na Câmara dos Deputados solicita do governo federal uma contrapartida de 5 bilhões de reais como forma de “financiar as gratuidades existentes”. O PL se vale de uma falácia, uma vez que gratuidades não implicam em aumento de custos para o setor, e, sim, em um argumento, ainda assim questionável, de renúncia de receita potencial. Como escreveu Daniel Caribé, o setor luta para o financiamento do empresariado e não para o financiamento do sistema de transporte, reforçando o capitalismo de compadrio que caracterizou sua gênese e manutenção do poder. Enquanto existir a catraca dentro dos ônibus, o poder de seleção de acesso e de concessão de benesses permanecerá manifestado pelos empresários.

No país da modernização conservadora, os últimos a mudar suas práticas são os que detêm o poder. O crescimento dos sistemas de Tarifa Zero no país nos últimos anos, conjugado a enfretamentos pontuais do poder econômico dos grandes empresários de ônibus, mostra que há uma brecha nessa batalha. Mas, para isso, é necessário que ou se mudem radicalmente os atores econômicos, ou que estes mudem radicalmente de comportamento. A história da burguesia brasileira mostra que a última hipótese é altamente improvável. Cabe, então, à população mobilizada e ao poder público consciente a tomada de posição nos processos licitatórios que atraiam novos atores que possam estabelecer o transporte como um direito social que é. Garagens públicas, partição das concessões, diminuição de seu prazo, controle público do sistema de bilhetagem eletrônica e da arrecadação para remuneração do sistema. Tudo isso são pré-requisitos para um novo caminho. Afinal, mesmo os sucessores da segunda geração de empresários, os netos e bisnetos dos pioneiros, já não estão mais assumindo as novas empresas. É tempo de o transporte coletivo deixar de ser mercadoria.