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O Brasil-abismo e suas dobras reais e utópicas

Resenha de O soldado antropofágico, escravidão e não pensamento no Brasil, de Tales Ab’Sáber1

Introdução

Golpe 64, série Deus salve o materialismo histórico, Denise Alves Guimarães, 2018

Existe o Brasil real, vamos dizer assim. A sociedade cindida, fraturada, fendida, profundamente desigual. Com ampla divisão de classe e uma situação de atraso e deslocamento irremediável diante das revoluções industriais, tecnológicas e científicas. Junte a isso a violência difusa que nos atravessa, de ponta a ponta, com agentes e alvos não poucas vezes indiscerníveis, embora em relação profunda com o legado da escravidão, portanto, vinculada ao racismo em muitos aspectos. Pronto, temos um país, em meio a um sistema social, econômico e político global. Com uma história social atribulada, recheada de conflitos internos, guerras civis camufladas e com um dos maiores índices de homicídios em todo o mundo. Um país que une, de forma tão enigmática quanto óbvia, nas suas classes dirigentes, o sujeito colonial escravocrata com o sujeito nacional pós-independência e pós-abolição formal da escravatura.

Mas existe também o Brasil utópico, que habita um imaginário que não é só das nossas elites econômicas, culturais ou políticas e, por extensão, das nossas classes dirigentes. É também do nosso povo, das classes populares e trabalhadoras. Trata-se da realização, no âmbito simbólico, de formas sociais, políticas e culturais de grande envergadura, com força para se expressar através de gestos corporais, cantos, danças, textos, formas artísticas e tipos de sociabilidade. É um imaginário profundamente popular em sua essência e o avesso da nossa degradação incivil e violência estruturante.

O país da profunda desigualdade, do destino fatal de monstruosidade, pode se encontrar com o país como espaço cultural e social de pura invenção, gerando uma série de tensões, ao lado de formas artísticas extremamente complexas, cheias de enigmas, variações e ambivalências. É quando o simbólico e o imaginário se chocam com o real e, deste atrito poderoso, fazem aparecer formações estéticas, intelectuais e culturais de enorme interesse.

Os romances da maturidade de Machado de Assis. O modernismo da semana de 22. O tropicalismo, pensado para além da canção popular. O marxismo heterodoxo uspiano. O rap do Racionais MCs. São algumas das expressões desse encontro. Muitos outros exemplos podem ser incluídos, é claro. O pensamento de Gilberto Freyre é um deles, daí muito do tumulto e até mesmo desconfiança que gera em visões mais restritas exclusivamente à dimensão real da nossa formação. Lido no que realmente escreveu, dá para ver ali, como que transfigurado em bela forma de escrita, o horror, o monstruoso da nossa formação, mas também uma espécie de astúcia brasileira capaz de gerar formas culturais e de sociabilidade vigorosas e, em tudo, originais. O mesmo valendo para Darcy Ribeiro, o Cinema Novo e a forma obscura e densa com que o neosebastianismo de um intelectual como o português Agostinho da Silva veio aportar em nossas terras.

Eu penso este livro de Tales Ab’Sáber como situado aí, nesse limiar delicado e difícil, no qual circulam ambivalências e modos de ser do Brasil que envolvem tanto a violência congênita à nossa formação quanto a construção de belezas como modo de, a um só tempo, revelar essa mesma violência e ser o esboço da sua superação.

O primeiro polo, aquele do Brasil-tragédia e abismo social, se levado ao extremo, tende a explicitar a violência da nossa formação e relegar a segundo plano, reduzida a mera derivação ou epifenômeno, as formas simbólicas e culturais. O segundo, também se levado ao extremo, tende a suavizar demais a violência, recalcando e pensando as formas culturais quase como se fossem literalmente compensações simbólicas para o horror colonial, pós-colonial, escravocrata ou proletário.

Em algumas casos, esse segundo modo conduz a ideias delirantes, desvios imaginários que se aproximam de psicoses sociais. Caso expressivo é a linha que atravessa o conservadorismo estético e social da nossa sociedade. Seguindo o que diz o autor, tal conservadorismo teria uma espécie de “gênese formal”, vamos dizer assim, em um poema como “Niterói”, da primeira metade do século XIX, de Cunha Barbosa. Com desvios que beiram a alucinação, no seu apagamento do Brasil real, colonial e escravocrata, através de sobreposições de imagens greco-romanas que, assim apresentadas, se aproximam de um “kitsch real, o seu mau gosto antimoderno morto vivo, no compromisso subjetivo com o que não existia mais, a falsa cultura clássica, a irresponsabilidade das ideias vazias e a impotência garantida em sociedade de escravos”. Com algo de parecença em relação “aos nossos tão radicais quanto violentos supermodernos alt-rights intervencionistas bolsonaristas de manifestações de domingo à tarde na Avenida Paulista, capazes de sustentar tranquilamente o arcaísmo resoluto, mas esperto, de um governo Temer, e uma regressão antimoderna astuta como o virtual neofascismo de um governo de extrema direita plenamente assumido no Brasil, sempre beirando o ridículo, super kitsch”.

Mas o primeiro polo também, se levado ao extremo, pode cair no mesmo desvio delirante e ver todas as relações sociais, políticas, culturais, estéticas, afetivas sobre o prisma único da violência e da dominação. A partir daí, criar formas artísticas, de pensamento que reafirmem a lógica da dominação como instância-mestra da nossa formação. É o que temos visto, aliás, em muitas das teses mais contemporâneas, presentes inclusive no livro, como se pode notar em algumas das teorias críticas de raça, de gênero ou de etnia. Não é incomum, aliás, o estímulo à produção e à reprodução de estados paranóicos, que envolvam perseguições, linchamentos, silenciamentos e reducionismos superficiais de situações sociais, culturais ou estéticas extremamente complexas.

A reflexão de Tales Ab’Sáber, novamente, não cai nos riscos de ambos extremos, sabendo reconhecer quando seu argumento pode levar a esses desvios imaginários. E o faz como bom conhecedor e continuador de uma das mais importantes e bem realizadas tradições de pensamento crítico no Brasil. Aquela que se vincula às obras de Roberto Schwarz, Antonio Candido e Paulo Arantes, para ficar apenas em três nomes mais conhecidos.

Esses pensadores servem como regulação crítica, teórico-conceitual e também de análise estética. Por vezes, o autor pode se deixar levar por devaneios, muitas vezes notáveis, sobre a canção que confere o sentido a toda a sua trama narrativa e que teria sido feita por uma mulher negra escravizada, relatada por um soldado alemão mercenário e ex-presidiário. Como se ele mesmo entrasse no paraíso das utópicas areias cariocas, o limiar com o real, que se diz na canção. Mas logo volta à terra, e sabe reconhecer a trama de dominação e relações assimétricas entre o mesmo soldado alemão e a mulher escravizada.

Um dos principais temas, aliás, do livro, é o estranho silêncio diante da vida real da sociedade brasileira da primeira metade do XIX que se nota nas formas artísticas, especialmente na literatura, mas não só. Cria-se um desvio imaginário, com diferentes níveis de intensidade, que ora oculta a escravização de pessoas negras ora tenta amenizá-la. Quando oculta, gera formas artísticas curiosas, que se entretém em mitologias clássicas, greco-romanas ou mesmo baseadas num passado “fora da história”, da “luta de classes” ou da “luta de raças”, num jogo feito entre ricos para ricos, ou mesmo entre remediados para remediados, desconsiderando questões sociais que poderiam conduzir a soluções e explicitações das muitas tensões estético-formais próprias da nossa sociedade.

Quando ameniza, procura mediar conflitos latentes através de visões paternalistas da escravização e, por extensão, também da questão de classe. Serve como conciliação de classes, ou mesmo jogo de equilíbrio de antagonismos.

Contra o ocultamento e a amenização, é necessário, podemos pensar, a explicitação do conflito. No limite, como algo inconciliável. É o que tem acontecido no debate contemporâneo brasileiro. Ou se nega e se ameniza a violência da nossa formação, ou se explicita a realidade dessa violência, apontando o dedo para os seus supostos agentes, até mesmo criando uma série de bodes expiatórios, muitas vezes caricaturados. Temos vivido bambeando entre essas duas formas, cuja tradução política e estética não tem sido das melhores, muito menos, a meu ver, capaz de criar formas artísticas arrojadas, ou revelar e superar os nossos males reais.

O caminho reflexivo apresentado por Tales, mais uma vez, é bem outro. Nem a explicitação do conflito, pura e simples, nem a negação da violência. Mas a procura de uma forma difícil, que seja capaz de fazer aparecer sutilezas da nossa formação que ficam deslocadas, ou mesmo reduzidas a nada, se tomamos a posição da conciliação ou da explicitação do conflito.

O Brasil-utopia como suspensão provisória do tempo social

O livro O soldado antropofágico: escravidão e não pensamento no Brasil, editado pela n-1/Hedra, é um longo ensaio, repartido por uma série de tópicos ou subtópicos, se preferirmos. Por ele passam, em forma condensada, muito do que se fez no pensamento brasileiro, e também nas formas artísticas em geral. O ponto-chave, claro, são as relações, sempre difíceis, cheias de ambivalências, paradoxos e sutilezas, entre processo social e formas artísticas, num país que em meio a tragédias contínuas tem conseguido criar arte e pensamento vigorosos.

Tales Ab’Sáber passa por uma longa e extensa literatura, em muitas áreas do pensamento, movimentando suas ideias com a presença implícita ou explícita de trechos de canções, poemas, ideias em geral, sobrepondo suas análises com notas de rodapé, algumas longas, que vão montando o quadro reflexivo de ponta a ponta. O ensaio vem permeado de furos, aberturas, rasgos, clarões, afirmações, negações, encontros, desencontros, nunca se dando de modo fácil, contínuo, direto. Como se o autor quisesse mostrar na própria forma do texto o quiprocó temático que o enovela.

Assim como as relações entre processos sociais e formas artísticas, concreção do real e formas simbólicas, vida social e imaginário cultural são sempre cambiantes, nunca se apresentam como totalidade homogênea, o mesmo se dá no seu texto que quer ser, e é, a sua maneira, uma forma de realização desse conjunto de tensões, atritos e antagonismos.

Por esse lugar passeiam textos críticos, sociológicos, historiográficos, filosóficos, mas também romances, poemas, ensaios culturais e canções populares. É a partir deles que vai se engendrando a reflexão do autor que também faz encontrar, sem negar as diferenças e possíveis atritos, a tradição de pensamento crítico do marxismo heterodoxo uspiano, e uma nova teoria crítica pós-moderna e dita “pós-colonial”.

Mas o ponto central de fato é mesmo o relato de um soldado alemão, que passou pelo país alguns anos após a sua independência e escreveu, em clave literária notável, as suas impressões. O Rio de Janeiro como é, do viajante alemão Carl Schlichthorst. Nele, se antecipa, de forma original e surpreendente, um certo olhar sobre a cultura popular que só viria a ser comum especialmente a partir do modernismo de 22 e, posteriormente, da canção popular da época de ouro, especialmente o samba, se desdobrando em momentos altos da nossa criação artística e do pensamento, como a bossa nova, o tropicalismo e o marxismo heterodoxo dos intelectuais de São Paulo.

Nesse texto, há momentos em que a vida popular é colocada em primeiro plano, não como idealização, mas como um dado real da vida do Brasil e que não se reduz, nem se nega, a violência de raça, classe ou gênero que nos permeia. Ela tem como gênese o tempo de vivência do prazer solto, sem dia seguinte, de pessoas escravizadas descrita pelo mesmo soldado alemão. Vivência que se realiza através de dança e canção, com versos rimados e bebida barata, no caso, a cachaça. A descrição é da primeira metade do século XIX, mas parece remeter a um samba de roda contemporâneo, a encontros festivos com bebida, sensualidade à flor da pele, danças lascivas e versos rimados de improviso.

Mas o mais significativo mesmo é uma curiosa cena descrita pelo narrador. O soldado alemão está à beira do mar. Observa morosamente a movimentação das águas e o céu aberto, com um sol ameno e uma brisa leve. Está como que entre a vigília e o sonho. Em um dado momento sente como se estivesse de volta à Europa e ao seu país de origem. Em meio a esse sonho, a esse clima de miragem, há o aparecimento de duas pessoas escravizadas, duas mulheres negras, oferecendo suas prendas, os doces que vendiam como escravizadas de ganho. Ele compra um deles. Fica embevecido pela beleza das duas mulheres, especialmente a de uma delas, que será decisiva para toda a descrição daqui pra frente.

Após a transação, ele faz um pedido de bailado e cantoria para as duas mulheres. E após descrever, com muita sensibilidade e afeto, a beleza do “corpo soberbamente formado, negra como a noite, o leve vestido de musselina branca caindo negligentemente de um ombro, a carapinha oculta num turbante vermelho, olhos brilhantes como estrelas, a boca fresca como um botão de rosa desabrochando e dentes que ultrapassam as pérolas em brilho e alvura”, com um quê de erotismo delicado e doce, apresenta-nos o surpreendente poema-canção cantado por uma das moças:

Na terra não existe céu,
Mas se nas areias piso
Desta praia carioca
Penso estar no paraíso
Na terra não existe céu
Mas se numa loja piso
E compro metros de fita
Penso estar no paraíso

Alguma coisa de muito profundo se revela aí, na escrita do soldado alemão desterrado, sonhando com a sua terra; no poema-canção da mulher negra escravizada, também desterrada, instaurando um corte no tempo social e fazendo aparecer um desejo de celebração da existência através do “paraíso” das areias da praia carioca e dos adornos que servem como enfeites para que possa vivenciar sua beleza no espaço público. O soldado alemão profundamente deslumbrado com a cena, a relatando com valor literário notável, e a disucussão de tudo que implica, é um dos pontos mais altos desse livro de Tales Ab’Sáber. A cena como que instaura um campo aberto, com possibilidade de encontro, real e imaginário, mediado pela forma estética e pela performance da jovem poeta, em meio a uma sociedade hierárquica, escravocrata, profundamente desigual e racista.

Ao poema-canção da mulher negra escravizada, que parece ser uma antecipação do que viria a ser o fundamento da cultura brasileira em muitas das suas dimensões, Tales sobrepõe um texto descritivo de Debret que narra uma cena bastante parecida, mas cujo desfecho se dá através de linguagem violenta por parte de um comerciante branco e, uma outra cena, ocorrida cinquenta anos depois da primeira, cujo desfecho também se dá através de linguagem violenta, dessa vez por parte de uma mulata forra. As difíceis negociações das interações no espaço público brasileiro, com as suas assimetrias de tom racialistas bem presentes, podem, por vezes, gerar sugestões de encontros que colocam em suspenso, ainda que provisoriamente, a ordem mais dura e profundamente hierárquica das coisas.

O Brasil-real e a dobra do Brasil-utopia

A canção, por si só, na sua forma textual, descreve esse lugar impreciso, entre a realidade concreta e as formas simbólicas. O lugar impreciso entre as relações sociais urbanas e as utópicas areias das praias cariocas é o espaço próprio de formação, a um só tempo, real e simbólico, concreto e imaginário, da sociedade brasileira e do Brasil. E também as dobras, com todos os paradoxos, ambivalências e complexidades, que envolvem o Brasil-real, trágico, brutal, incurável, e o Brasil-utopia, belo, possível, como promessa de uma civilização tropical, morena, farta e feliz.

A canção se revela num lugar possível de conciliação ou conflito, que pode ser pensado também como uma travessia em potência, não realizada, mas que se desdobra em outros exemplos, como os já mencionados por aqui. Trata-se de um curioso curto-circuito, que se revela nessa canção e no decorrer do livro do soldado alemão. Com ela, se revela um país deixado de lado pelas elites intelectuais locais. É, ainda mais, um estrangeiro que nos revela algo de muito profundo da nossa identidade. Feita e por fazer. Do mesmo modo, é através do relato do mesmo estrangeiro que podemos ver aproximações entre a sociedade moderna industrial e a sociedade escravocrata brasileira, incluída de forma perversa na primeira. O texto do soldado alemão é cheio de revelações surpreendentes sobre o país e que, involuntariamente, falam sobre nossa sociedade contemporânea.

Mas falam de que maneira? Pois bem, o livro de Tales é em grande medida um esforço para tentar compreender a sociedade brasileira contemporânea em dois grandes eixos, no meu modo de ver. O primeiro passa por uma espécie de desencanto crítico com o desencontro sem fim entre o Brasil real e o Brasil utópico, vamos chamar assim. Aquela promessa de se poder viver aqui uma vida melhor socialmente e maior como realização existencial e, mesmo, estético-formal, que se nota tão presente em alguma das nossas maiores criações artísticas, com a canção popular ocupando um papel central nisso, chegou ao ponto de se tornar mau-agouro, algo de muitas maneiras tétrico e, até mesmo, risível. O segundo, conversa diretamente com a ascensão conservadora da nova direita, com suas claras derivas autoritárias e neofascistas de agora.

No caso do primeiro, muito do conjunto de novas teorias que tem tomado conta do país, seguindo à risca as novas modas intelectuais do multiculturalismo identitário, se expressam através de uma leitura profundamente pessismista a respeito dessa nossa possibilidade real de nos afirmarmos no mundo. Consideram grande parte dessas criações como ideologias rasteiras que teriam funcionado como forma de compensação simbólica, e bem interessada, para a nossa realidade social concreta. Teríamos um tipo de racismo mais perverso que o dos EUA, por estar ocultado pela valoração da “miscigenação”. As formas artísticas que fizeram tal valoração seriam como epifenômenos dessa mesma ocultação e, por conta disso, expressariam, no fundo, valores das nossas classes dominantes que embranqueceram o negro através do mito da mestiçagem como cultura popular e como expressão da nossa singularidade. E tomamos o termo “mestiçagem” aqui como uma metáfora para a criação de espaços de encontro entre diferentes na sociedade brasielira, inclusive como o que se revela na cena da jovem poeta e do soldado alemão. Para grande parte dessas teorias, não há encontro possível.

Se incluirmos aqui questãos de gênero, ao lado de raça, a coisa vai ficando ainda mais complicada. Agora, a mestiçagem não seria apenas, segundo essas teses, uma ação de “genocídio” do negro, mas também de machismo formativo e “estrutural” na sociedade brasileira. O processo teria se dado através de violência sexual deliberada, estupro mesmo. Veja o quiprocó. Se levada às últimas consequências, tais teses nos conduzem a considerar as formas artísticas que valoraram a mestiçagem como, a um só tempo, racistas e radicalmente machistas.

A mestiçagem seria não só uma amenização ou tentativa de conciliar conflitos entre classes, raças e gêneros, mas também uma violência explícita, intencional para alguns, quase como se fosse um projeto. Se lido dessa maneira, como fica o encontro entre a mulher escravizada e o soldado alemão, no contexto em que gera a canção que vai orientar todo o processo de análise do livro de Tales? Considerar tal encontro como revelador de minudências da formação social brasileira e, a seu modo, como expressão em potência de um utopia civilizatória, não poderia ser considerado, pelo prisma das teses mencionadas, como uma maneira de amenizar simbolicamente a assimetria radical entre dois tipos sociais que viviam situações radicalmente opostas? E, o que é pior, suavizar as duas formas de violência mencionadas?

Dependendo da forma de descrição, talvez sim. Se o encontro fosse apresentado de maneira idílica, folclorizada, despida das dimensões sociais do contexto real, poderíamos afirmar que se trata de uma suavização. Mas não é o caso. Muito ao contrário. Em circunstância alguma a análise de Tales Ab’Sáber é meramente idílica ou encantada e acrítica. Ele faz movimentar móveis simbólicos e concretos, imaginários e reais na sua descrição. Em nossos termos, ele mostra os atritos, tensões, sem negar inclusive antagonismos, entre o Brasil-real e o Brasil-utopia.

Se se concentrasse apenas no Brasil-real certamente veria a cena quase como anedótica, ou até mesmo como mais uma maneira com que os donos do poder tentaram estetizar as suas formas de dominação. Com isso, certamente cairia em desvios imaginários, a despeito da suposta objetividade crítica. No fundo, as relações sociais, culturais, eróticas, afetivas seriam derivações de formas de dominação e, por conta disso, não seriam dignas de atenção em sua relativa, veja bem relativa, autonomia.

A suposta objetividade crítica de tais teses, com o seu louvável teor normativo, tendo em vista o horror da nossa situação social, recai em desvios imaginários que ofuscam, no final das contas, a visão dialética do todo. E isso a tal ponto que deixam escapar uma situação em que temos a autora de uma canção, mulher negra escravizada, e que parece concentrar no seu tema muito dos temas que vão ser decisivos para poéticas centrais da nossa canção, como pode se ver em Dorival Caymmi, Vinícius de Moraes, Chico Buarque de Hollanda e uma penca de gente.

Uma reviravolta significativa que, no entanto, não é encarada como compensação simbólica para a condição real de assimetria nas relações entre pessoas escravizadas no Brasil, mas como expressão inusitada de uma confluência de tensões e promessas de felicidade que vão nos arrastar por um longo tempo e que continuarão a ser o nosso trauma, a um só tempo incurável e aberto para possíveis travessias. Travessias que dependem, no entanto, de um encontro com o real, com o Brasil-real.

Em suma, Tales não adota a tese da miscigenação como encontro ameno, idílico, feliz entre as raças, mas também não adota a tese da criminalização da miscigenação, como se fosse uma astúcia das classes dominantes pura e simplesmente. Nem o Brasil-utópico, nem o Brasil-real. Muito menos soluções de compromisso que podem ou exagerar ambos os polos, ou criar mediações amenas. Uma outra dialética se apresenta ali, como espaço possível de encontro. Tão possível quanto improvável. Tão real quanto imaginária.

Mas como fica o segundo polo, aquele do conservadorismo moral, das ideias da nova direita, das derivas neofascistas? Neste caso, a tendência é negar o conflito, a presença real de hierarquias, assimetrias, violência estruturante, racismo e a ação fanstamagórica ou institucional dos muitos males da escravidão na vida brasileira contemporânea. Mas tudo isso sem Brasil-utopia, sem sequer precisar fingir algum desejo real de emancipação social, racial, de gênero, étnica, política. Existe algo como um vazio que se instaura nas formas estético-formais em que se realizam o atual conservadorismo brasileiro.

É sintomático o fato de que, mesmo com uma real contrarevolução conservadora, não tenha aparecido obras culturais de vigor e relevância, em nenhuma das áreas que possamos imaginar. Muito por conta disso, ideólogos da nova direita brasileira precisam sempre se reportar para grandes intelectuais conservadores do passado. É como se fossem, e isso o diz bem o próprio Tales Ab’Sáber em diferentes momentos do livro, uma representação bruta e agourenta do desejo de retorno e afirmação da ordem estabelecida, a ferro e fogo, pelo modo de estruturação da sociedade brasileira, escravocrata, autoritária, profundamente violenta e repressiva.

O que quero dizer é que mesmo os aspectos mais amenos do Brasil-utopia sequer aparecem nesse novo torpor ideológico reacionário. Que o diga o criticismo objetivo do Brasil-real. Os seus muitos desvios imaginários, derivas reacionárias e conspiracionismos kitsch se enovelam em si mesmos e, com raras exceções, estão mais próximos de um ideal de estado suicidário do que da tentativa de construção de um tipo de projeto nacional desvinculado da teoria crítica e dos impulsos emancipatórios das teorias mais utópicas, digamos assim.

Conclusão: “Abre a cortina do passado”

Se estamos certos até aqui, podemos retomar algo do fio da nossa discussão. Teríamos duas formas de realização da sociedade brasileira. O Brasil-real e o Brasil-utopia. Ao mesmo tempo, uma série de dobras entre elas, que vão sugerindo e realizando formas difíceis, que ora evidenciam a nossa violência estruturante, com a presença do racismo e da escravidão, ora fazendo aparecer uma certa astúcia do nosso povo, expressa em criações culturais, estéticas e, mesmo, de vida social notáveis e legítimas.

O livro de Tales Ab’Sáber faz aparecer a dialética tão possível quanto improvável, tão real quanto imaginária, entre essas duas formas, sem negar os atributos reais de ambas, em suas relações ambivalentes, paradoxais, enigmáticas e tensas, com momentos de encontros e também de antagonismos inconciliáveis. E o faz especialmente através de um relato, em forma literária e de crônica, de um soldado alemão desterrado em pleno Brasil da primeira metade do século XIX.

Esse relato nos apresenta cenas da vida popular, com interesse literário e sociológico notável, até mesmo como se fosse uma prefiguração do que só veríamos com mais nitidez a partir do modernismo de 22. Nele, há um poema-canção surpreendente, cantado e dançado por uma mulher negra escravizada e que, a seu modo e tal qual descrito, gera um curto-circuito bastante significativo nos lugares de encontro e desencontro da nossa vida social, sempre bom dizer, profundamente assimétrica e fortemente hierarquizada.

Como se o tempo social fosse, provisoriamente, interrompido e como se essa interrupção pudesse revelar, a um só tempo e com sugestiva concisão e beleza, tanto a violência que nos estrutura quanto as linhas de fuga que nos permitiram e ainda nos permitem superá-las. É o Brasil do veneno-remédio, é o Brasil da astúcia de suas classes populares, já ali em estado de realização em potencial. É o Brasil que não fomos, mas podemos ser e que tem como protagonista uma mulher negra escravizada, um dos principais alvos, junto aos escravizados e à massa proletária, da mesma violência que nos atormenta e nos atordoa diariamente. É o Brasil, por fim, do encontro possível entre o real e o simbólico, se desdobrando nas fitas, na inteligência, na capacidade de poesia, mesmo em meio ao abismo e à tragédia social, nos movimentos do corpo, na produção de uma subjetividade pulsante, vigorosa e que sabe criar em si e para si o paraíso cá na Terra, como celebração de uma existência farta e bela.