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As três portas de Chantal Akerman

(…) ficar diante da porta condenada andando infinitamente no labirinto que o atravessar a porta supõe.

(DERRIDA, 2005, p. 49)

A lâmpada acesa faz com que se veja a própria lâmpada.

(HELDER, 2013, p. 136)

Il y a une porte dans Vienne par où tout le monde peut passer sauf moi.

(CIXOUS, 1976b, p. 14)

Desabridamente

Eu gostaria de falar de três portas. A primeira porta se coloca diante do espectador de modo estático, não se abre nem se fecha, mas a vemos passar, conforme o movimento da câmera. É uma porta que permanece. A primeira porta é uma porta que permanece, que permanece enquanto passa. Se repete em variações mínimas desenhadas pela velocidade da câmera. É uma porta para a delicadeza do olhar. O que essa porta enquadra é um círculo que a câmera faz (e por vezes desfaz ou refaz, veremos). A geometria é híbrida: não sabemos nunca se estamos diante de um retângulo ou de um círculo. Uma outra coisa, além da câmera, também se movimenta nessa porta estática. Um movimento se movimenta. O amor de Eva, como eu gostaria de chamar. Um movimento lascivo (quando poderíamos imaginar que a porta se abre, o que nunca acontece de fato), mas também a sua aquietação (quando poderíamos imaginar que a porta se fecha, o que tampouco acontece). Trata-se de uma porta breve, interminável. Chantal Akerman a chamou de La Chambre (1972), dura 11'. A segunda porta, ao contrário, está em movimento constante. Ninguém pode precisar quando foi que abriu (por vezes se escancarou), ou por qual motivo provoca tanto ruído ao se fechar (é brusca), quais mãos a conduzem no seu vai e vem incessante, e motivadas por que espécie de pulsão, confusão ou força desgovernada.

Nem mesmo as próprias mãos que a conduzem poderiam qualquer coisa, as próprias mãos que a levam, que a atravessam ou que a fazem chegar (é quando uma porta aporta): ninguém pode saber. É uma porta imprecisa. Uma porta noturna. O nome dessa porta é Toute une Nuite (1982), sua duração é mais extensa: 90 minutos. A terceira porta é silenciosa. É um filme mudo como a primeira porta, sem qualquer anteparo das palavras. Não é exatamente assim. Há uma palavra, uma única palavra, que nos é dada ao olhar (mas que não nos é dada à escuta). Dessa vez, a porta é um documentário (não que a primeira ou a segunda portas não fossem um documentário).1 A sua duração não se pode medir pelo tempo que a contém, muito embora haja um perímetro de 63 minutos, que ela felizmente ultrapassa. Eu diria que essa porta permanece, que ela tem permanecido na dissimetria de tudo o que nela é geométrico. Por noites inteiras, dias a fio. Essa porta não se abre nem se fecha, exatamente como a primeira — embora não se trate de uma comparação. De modo algum é uma porta estática, diferentemente da primeira — embora também aqui não se trate de uma comparação. Essa porta contém frestas, digo de outra maneira: ela impede que as frestas avancem. Por isso não está nem aberta nem fechada e também por isso ela não é estática, mas exerce contra as frestas a força exigida para frear seu ímpeto. Essa porta contém fendas ou frestas, e com isso digo também que ela tem a capacidade de abrigar, receber ou hospedar as fendas ou frestas. De modo algum se trata de uma porta estática. Chantal Akerman chamou essa porta de Hôtel Monterey (1973).

As três portas contêm janelas (as três portas impedem que as janelas avancem, ao mesmo tempo que as três portas abrigam, recebem, hospedam janelas). São janelas que servem para a contemplação ou para o suicídio — simultaneamente ou alternadamente — e, no entanto, ninguém se mata diante ou através dessas três portas (que são filmes, e que contêm janelas).2 Entre uma e outra porta, entre as mãos que as levam e são por elas levadas, no seu movimento de aportar, as portas contêm corredores, elevadores, camas, ruas. São corredores, elevadores, camas e ruas que contêm portas, por sua vez. São portas (corredores, elevadores, camas e ruas) que contêm janelas, portanto.

Primeira porta (o amor de Eva)

A primeira porta se coloca diante do espectador de modo estático, não se abre nem se fecha, mas a vemos passar, conforme o movimento da câmera. A própria câmera é uma porta que se movimenta, uma câmera/porta cujo movimento dá a ver a própria porta estática. O filme se chama La Chambre e a câmera/porta dá duas voltas completas (360°) em torno do próprio filme (em torno do próprio quarto). Na primeira volta, vemos uma cadeira de madeira com estofado vermelho e estamos na cozinha: uma mesa posta com uma janela aberta ao fundo (cuja luminosidade só deixa ver uma mancha branca retangular), o fogão, a geladeira; uma cômoda e já estamos no quarto, La Chambre: uma cama com uma mulher semideitada, semicoberta (seu dorso se eleva parcialmente). Uma mulher parcialmente deitada — interpretada por Chantal Akerman —, uma mulher parcialmente deitada olha para o espectador, pisca os olhos, balança a cabeça para os lados, continua a olhar para o espectador e ainda estamos no quarto: duas janelas abertas (cuja luminosidade só deixa ver uma mancha branca retangular de cada lado), uma cadeira vermelha de ferro entre as duas janelas diante da cama, uma cadeira de madeira diante da escrivaninha e já não estamos no quarto: uma parede com roupas íntimas femininas penduradas, um calendário, uma pia, uma porta estática (aberta? fechada?), uma cortina fechada. Na segunda volta vemos uma cadeira de madeira com estofado vermelho e estamos na cozinha, trata-se do mesmo cenário: a mesa posta diante da janela aberta ao fundo (cuja luminosidade só deixa ver uma mancha branca retangular), o fogão, a geladeira; uma cômoda e já estamos no quarto, La Chambre: uma cama com uma mulher já completamente deitada (a mesma mulher, interpretada por Chantal Akerman). A mulher completamente deitada inclina sua cabeça. Tem uma das mãos a encobrir parcialmente o rosto, cujos olhos podemos olhar: são olhos que nos olham, são olhos que se dirigem para a câmera/porta. Há uma espécie de simetria entre o que está dentro desta porta (dentro deste filme: uma mulher deitada, a quem proponho chamar de Eva) e o que está fora desta porta (fora deste filme: o espectador, a quem proponho chamar de hóspede). O que essa simetria faz corresponder, assemelhar, harmonizar em proporção equivalente é a constatação de uma diferença intransponível. É uma simetria que contém a dissimetria, é uma simetria que impede a dissimetria de avançar, ao mesmo tempo que é uma simetria que abriga, recebe, hospeda a dissimetria. A mulher completamente deitada inclina sua cabeça. Tem uma das mãos a encobrir parcialmente o rosto, cujos olhos podemos olhar: são olhos que nos olham, são olhos que se dirigem para o hóspede. A outra mão está debaixo das cobertas, o corpo dela, deitado, se movimenta repetidamente num vai e vem: em direção ao hóspede (espectador) e a se afastar dele. Com um dos olhos ela olha fixamente para a câmera (para o hóspede), como se houvesse uma abertura, que entretanto não podemos ver. Uma abertura para o amor (supondo que o amor esteja ao abrigo de uma abertura). O que supomos que se abre, como um segredo, não é dado a ver. Continuamos com a câmera: duas janelas abertas (cuja luminosidade só deixa ver uma mancha branca retangular de cada lado), uma cadeira vermelha de ferro entre as duas janelas diante da cama, uma cadeira de madeira diante da escrivaninha e já não estamos no quarto: uma parede com roupas íntimas femininas penduradas, um calendário, uma pia, uma porta estática (aberta? fechada? visível…? invisível…?), uma cortina fechada. Por pouco não a vemos, essa porta estática. Uma porta estática como se fosse a própria câmera, que não vemos de fato, mas sabemos — de um saber que o filme não nos oferta (ao menos não este filme em particular) — que é através da câmera que podemos entrar e sair de La Chambre.

Na terceira volta tudo se altera: vemos uma cadeira de madeira com estofado vermelho e estamos na cozinha: uma mesa posta diante da janela aberta (cuja luminosidade só deixa ver uma mancha branca retangular), o fogão, a geladeira; uma cômoda e já estamos no quarto, La Chambre: uma cama com uma mulher semideitada, semicoberta (seu dorso se eleva parcialmente). Uma mulher parcialmente deitada segura uma maçã, seus olhos agora se dirigem para o infinito e a (dis)simetria se refaz a partir de outro princípio: hóspedes, não somos mais interpelados pelo seu olhar, mas somos levados a perder o nosso olhar com ela/Eva em direção ao infinito. Um ponto vazio, de direcionamento impreciso, um ponto estático fixado pelo olhar. A câmera continua seu movimento obstinado: duas janelas abertas (cuja luminosidade só deixa ver uma mancha branca retangular de cada lado), uma cadeira vermelha de ferro entre as duas janelas diante da cama, uma cadeira de madeira diante da escrivaninha e retornamos ao quarto antes mesmo de sair dele. Estamos novamente no filme, estamos novamente em La Chambre.

Trata-se de um filme que excede a si mesmo naquilo que ele contém (naquilo que ele impede de avançar, naquilo que ele abriga, recebe ou hospeda). Um filme que contém um quarto, um filme que é um quarto (La Chambre), embora seja também uma cozinha, uma porta, janelas através das quais nada vemos (portanto, janelas que contém o suicídio e a contemplação, janelas que impedem o avanço do suicídio e da contemplação, janelas que abrigam, recebem, hospedam o suicídio e a contemplação). Só estamos de fato no filme, no quarto (La Chambre), quando Eva também estiver. Ela sempre está lá, sempre esteve, Eva permanece. Portanto, nós também sempre estaremos lá. Me parece ajustado dizer que nunca sairemos do quarto. Não há portas. Ou as portas que há estão condenadas, e deveremos ficar andando infinitamente com o nosso olhar por um labirinto que o atravessar da porta supõe.

Se até então a câmera percorria em sentido anti-horário, ela agora interrompe pela primeira vez o seu destino: sai, por assim dizer, por uma porta que se encontra sempre aberta, para entrar, por assim dizer, na mesma porta que se encontra sempre fechada. A câmera/porta, ao passar pela escrivaninha, inverte seu percurso: se movimenta, agora, em sentido horário. Uma cadeira de madeira diante da escrivaninha, duas janelas abertas (cuja luminosidade só deixa ver uma mancha branca retangular de cada lado), uma cadeira vermelha de ferro entre as duas janelas — e estamos novamente diante da cama, onde ela/Eva olha para o hóspede (olha para o espectador) e movimenta uma maçã entre os lábios. Quando estamos diante da cômoda, há outra inversão de percurso e a câmera retorna ao sentido anti-horário, momento em que vemos novamente a mesma mulher que morde quatro vezes a maçã, enquanto mantém fixo o olhar para o hóspede (olha fixamente para o espectador). Duas janelas abertas, uma cadeira vermelha de ferro, uma cadeira de madeira, e, ao passar pela escrivaninha, a câmera inverte novamente seu percurso: com ela seguimos no sentido horário novamente: uma cadeira de madeira, uma cadeira vermelha de ferro entre duas janelas abertas e Eva, ela, a mulher interpretada por Chantal Akerman, ainda sobre o leito, morde três vezes a maçã. Agora ela morde a maçã com voracidade (antes não tinha sido assim). Uma última inversão da câmera, que completa cinco voltas parciais (é quando estamos em La Chambre) depois de ter completado duas voltas totais (360º: é quando nos damos conta de que o filme não tem portas): mesmo percurso da câmera, que segue agora no mesmo sentido do começo do filme (anti-horário). Ela, Eva, já não tem a maçã nas mãos (agora são apenas duas maçãs sobre a pequena cômoda ao lado da cama, quando eram três maçãs no princípio do filme). Ela, Eva, a mulher interpretada por Chantal Akerman, está sentada sobre a cama. Passa as mãos pela face, depois se deita e olha para o hóspede (olha para o espectador). Duas janelas abertas (cuja luminosidade só deixa ver uma mancha branca retangular de cada lado), uma cadeira vermelha de ferro entre as duas janelas diante da cama, uma cadeira de madeira diante da escrivaninha. Depois de passar pela escrivaninha, o filme chega ao fim.

Mas o que significa dizer que um filme que dá a ver o infinito pelo olhar de Eva (6'21"–6'38") chega ao fim? Esse filme refaz seu percurso na circularidade de uma voz sem voz, de um silêncio solitário como um convite, um acolhimento. Se nunca chega a haver interrupção de fato na duração do círculo que lhe dá contorno, há dinamização em sentido oposto, e oposto do oposto, e oposto do oposto, e oposto do oposto… (a câmera se movimenta em sentido anti-horário, depois em sentido horário, depois em sentido anti-horário… como uma porta — caso houvesse portas — como uma porta que pudesse ser aberta e fechada infinitamente). Até que o ir e vir do corpo de mulher coincida por fim com seu sentido originário (o filme começa e termina em sentido anti-horário), até que a própria ideia de oposição se desfaça. É um movimento erótico, insuportável na continuidade que se impõe, na abertura para o infinito que o fecha. Um filme que refaz o que desfaz, isto é, um filme que funda nesse gesto de refacção a sua própria origem como filme, a origem de Eva — mulher vinda da ausência de outra mulher, vinda do corpo de uma não mulher. Eva é agora uma mulher que nunca chegou a vir, pois é a mulher que sempre esteve lá. Uma coreografia erótica que rasura a história linear que parte do princípio adâmico. Um filme fundador que se abre como uma porta, sem que jamais tenha se aberto de fato.

É um filme circular que circula em ambos os sentidos cronológicos (anti-horário, horário), um filme cuja câmera circula sem corte algum, ininterrupto. Ao menos é essa a impressão do espectador: é como se não houvesse cortes, é como se não houvesse portas, é como se não houvesse saída. Ficamos com a impressão de que a câmera gira ininterruptamente, entre a repetição e a variação — o que de fato ocorre. E, no entanto, há cortes. Não no sentindo técnico, da linguagem cinematográfica. Nada vemos para além das janelas, não somos levados a olhar através as janelas, não há contemplação, não há suicídio, e, no entanto, buscamos ver aquilo que a janela nos poderia dar a ver: tudo ali permanece calado, nada se pronuncia, nada se ouve. As janelas são a interrupção da visão pelo silêncio, são cortes, são a interrupção da continuidade do silêncio audível por um silêncio visível. É como se houvesse cortes, é como se houvesse janelas para a contemplação ou para o suicídio, é como se houvesse portas que se fecham, é como se não houvesse uma saída. A percepção de que nada ali se move para além do movimento constante é interrompida pelo amor de Eva, ele mesmo uma espécie de porta. A percepção de que nada ali se move é cortada por assim dizer, como quem fatia uma maçã com os próprios dentes, como se uma porta tivesse enfim se aberto, como se pudéssemos espiar por dentro dela, e, no entanto, tudo o que vemos é o silêncio audível.

Eu disse Eva, e com isso eu digo movimento que se movimenta, abertura para o infinito. Eva pisca os olhos, balança a cabeça para os lados, e olha para o hóspede (olha para o espectador); Eva se masturba e olha para o hóspede (olha para o espectador); Eva segura uma maçã e olha para o infinito (olha com o espectador); Eva passa delicadamente a maçã entre os lábios e olha para o hóspede (olha para o espectador); Eva morde a maçã com voracidade e olha para o hóspede (olha para o espectador); Eva passa a mão no seu rosto e olha para o hóspede (olha para o espectador). Em quase todos os momentos o olhar de Eva se dirige para o hóspede (para o espectador). Há um único momento em que o olhar de Eva se dirige para o infinito. A direção do olhar em todos esses casos, no entanto, me parece a mesma, e poderia ser traçada numa diagonal silenciosa e solitária, que se não chega a surpreender a circularidade pela qual o filme se faz, certamente acrescenta um traçado assimétrico nessa geometria erótica. Eva está sozinha em um filme mudo — por acaso ou distração (pouco importa)3 —, um filme (o quarto) em que o discurso, no caso dessa abordagem, é silencioso.

Se a figura da porta, no limiar que abre o em-si, fosse uma “maneira de falar”, ela diria também a palavra como maneira de dizer, maneira de fazer com a mão estendida dirigindo-se ao outro para dar-lhe primeiramente de comer, beber, respirar (…). A porta aberta, maneira de falar, designa a abertura de uma exterioridade ou de uma transcendência da ideia de infinito.

(Derrida, 2015, p. 44).

Silenciosa e solitária, a hospitalidade que se dirige, pelo olhar, ao hóspede (e com o hóspede, se dirige ao infinito) — a hospitalidade, que é outra maneira de dizer o acolhimento — supõe o recolhimento. O acolhimento supõe o recolhimento. Trata-se, portanto, de uma porta que abre sempre o recolhimento a partir do acolhimento, a intimidade daquilo que subsiste, que existe em si mesmo, a figura da mulher que Eva representa na tradição. Trata-se de uma porta, uma porta como todas as outras: silenciosa e solitária. Trata-se de prolongar no tempo extensivo a atividade como silêncio essencial, corporal.

A primeira porta, portanto, é uma maçã, uma câmera ou um quarto. “Havia portas ao redor do salão inteiro, mas estavam todas trancadas (…). [Alice] caminhou desolada até o meio, pensando como haveria de sair dali.” (Carroll, 2002, p. 14). Alice encontrou uma pequeníssima chave de ouro e, no entanto… “que pena! ou as fechaduras eram grandes demais; ou a chave era pequena demais” (p. 14), até que viu uma cortina baixa que escondia uma minúscula porta: “experimentou a chavezinha de ouro, que, para sua grande alegria, serviu! Abriu a porta e descobriu que dava para uma pequena passagem, não muito maior que um buraco de rato: ajoelhou-se e avistou, do outro lado do buraco, o jardim mais encantador que já se viu.” (p. 15). Alice desejou sair de onde estava e ir ao jardim, e porque desejou, encontrou uma garrafa com as palavras: “BEBA-ME”. Tomou o líquido encontrado que a fez encolher. Alice acredita que, ao atravessar a porta, ela poderá ser parte daquela paisagem, ela acredita que poderá estar no jardim mais encantador que já se viu. Alice acredita poder imergir na visão do encantamento com todo seu corpo — Alice acredita naquilo que seus olhos viram —, Alice deseja o movimento, Alice busca uma saída, Alice é levada pelo desejo de sair de onde está. Alice deseja ver. À Alice é dado a ver aquilo que ninguém mais vê: Alice tem a chave de ouro nas mãos. Talvez porque Alice seja uma criança e nada saiba sobre maçãs ou proibições…? Me parece, embora, que não se trata de inocência. Alice não conhece. Alice, como Chantal, não deseja o conhecimento. Alice, como Chantal, deseja a visão, deseja o movimento. Apenas a ela foi dado abrir a porta. Não tem o conhecimento e não o teria mesmo que comesse a maçã. Entende apenas que para atravessar essa porta, para cumprir o desejo de visão e de movimento, é necessário encolher até o limite do indizível, sob a ameaça de acabar sumindo completamente. Sumir completamente: ofício fêmeo, solitário e silencioso. Poderia se dizer que Alice coincide com Eva. Alice ou Eva, a visão e o movimento. É certo que não se trata de inocência:

L’innocence avant toute chose n’existe pas. C’est un état de grâce, ou un don. C’est l’état gracieux d’une inexistence, avant l’opposition entre la vie et la mort, la génération et la destruction, l’apparition et la disparition. « Avant », c’est-à-dire avant le temps, avant l’histoire, avant le temps de l’histoire, la dialectique et ses contradictions (…). L’innocence n’est pas la chute dans le temps, mais c’est la chute du temps lui-même, qui sort de lui-même, qui s’excède ou se révèle, outrepassant ses limites et détournant ses propres dimensions, le passé, le présent, le futur. Sans dimension, sans qualité, sans durée ni éternité, le temps de l’innocence constitue l’état d’inexistence du temps dans le temps.

(Margel, 2022, s/p)

[A inocência antes de qualquer coisa não existe. É um estado de graça, ou um dom. É o estado gracioso de uma inexistência, antes da oposição entre a vida e a morte, a geração e a destruição, a aparição e a desaparição. “Antes”, quer dizer antes do tempo, antes da história, antes do tempo da história, da dialética e de suas contradições (…). A inocência não é a queda no tempo, mas é a queda do tempo ele mesmo, que sai de si mesmo, que se excede ou se revela, ultrapassando seus limites e desviando suas próprias dimensões, o passado, o presente, o futuro. Sem dimensão, sem qualidade, sem duração nem eternidade, o tempo da inocência constitui o estado de inexistência do tempo no tempo.]

A queda do tempo ele mesmo, sua perda (seria o caso de dizer sua perdição…?), a ultrapassagem de seus limites (passado, presente e futuro) como única possibilidade de inocência. O estado de inocência não é algo que esteja ao alcance de Eva ou de Alice, conforme a narrativa adâmica. A duração cíclica da qual o filme se faz, a simulação de sua permanente duração ou de sua eternidade, a presentificação que ele requisita do olhar, tudo isso poderia ser pensado em consonância ou dissonância com a ideia de inexistência do tempo no tempo. Também no caso da Alice de Carroll a questão temporal reivindicaria longa discussão. O que me parece estar em causa, no entanto, é de outra ordem. Trata-se de rasurar a narrativa adâmica, em que os termos subsidiados pela ideia de conhecimento e de inocência estão associados a uma narrativa corrente e linear que pressupõe a precedência determinista da causa sobre o efeito (“se antes existe Adão, existirá em seguida Eva”, “se há a tentação de Eva, haverá o pecado de Adão”…).

A primeira porta, portanto, é uma maçã. “Das Paradies ist gleichsam über die ganze Erde verstreut — und daher so unkenntlich etc. geworden” (Novalis, 1992, p. 102) [“O paraíso [diz Novalis] está como que espalhado sobre toda a Terra — daí que se tenha tornado tão irreconhecível”] (Tradução de Rui Chafes, 1992, p. 103). O paraíso é uma porta. Há uma chave (clāvis), há clitóris? Nesse caso (nesta porta), o paraíso coincide com a maçã, não é anterior a ela, não a exclui como condição de existência. Por isso pouco importa que a masturbação de Eva anteceda o momento em que Eva come a maçã. O que a inversão da ordem dos acontecimentos na cronologia inverte de fato é uma lógica temporal, em que passa a valer a simultaneidade ao invés da sucessão.

Si tu écris femme, tu le sais comme moi : tu écris pour donner au corps ses Livres d’Avenir parce que l’Amour te dicte tes nouvelles genèses. Pas pour combler l’abîme, mais pour t’aimer jusqu’au fond de tes abîmes. Pour connaître, pas pour éviter. Pas pour surmonter ; pour explorer, plonger, visiter. Là où tu écris, ça grandit, ton corps se déplie, ta peau raconte ses légendes jusqu’ici muettes.

(Cixous, 1976a, p. 53)

[Se você escreve mulher, sabe como eu: escreve para dar ao corpo os Livros do Porvir porque o Amor te dita tuas novas gêneses. Não para preencher o abismo, mas para te amar até o fundo do teu abismo. Para conhecer, não para evitar. Não para superar; para explorar, mergulhar, visitar. Lá onde você escreve, isso cresce, teu corpo se desdobra, tua pele conta suas lendas até então mudas.]

A maçã fala, a maçã escreve, a maçã se escreve. E o que ela diz, em silêncio, é o amor de Eva. O amor de Eva não fala. Poderia se tratar de palavras, é verdade, seria então um amor cheio de ruídos, como é ruidoso o conhecimento do bem e do mal. Um amor de Eva que falasse estaria apenas acrescentando uma prótese ao corpo solitário por si só excessivo, um corpo solitário que excede em vazio o seu próprio vazio.

Como eu disse, em outro momento, um corpo de mulher nascido da ausência de outra mulher, um corpo de mulher nascido de uma não mulher, nascido da costela de Adão. Eva, ao contrário de Adão, é silenciosa e solitária, não faz escolhas,4 não deseja o conhecimento.5 Eva, que sempre esteve lá, nada deseja da maçã, a não ser a própria maçã, o presente que se impõe como forma de percepção de sua eternidade, de seu sempre ter lá estado. Antes mesmo de haver Adão, antes mesmo de ter ela nascido de sua costela. Antes — ou fora — de seu próprio nascimento. Fora de seu nascimento, fora, portanto, de sua morte. Eva, não Adão, é o outro nome de Chantal Akerman. Eva é o outro nome de toda aquela ou aquele que busca passagem através da violência do hóspede que deseja persistentemente conhecer o segredo do rito.

Segunda Porta (todo amor começa)

A segunda porta está em movimento constante. É também um filme sobre o amor. Ninguém pode precisar quando foi que abriu (por vezes se escancarou), ou por qual motivo provoca tanto ruído ao se fechar (é brusca).

Anoitece, o filme começa do lado de fora. Rua, carros, ônibus, escada. Lugares de passagem que parecem exigir de todos os que por eles passam, que sejam também uma passagem, que sejam também um lugar de passagem para os lugares que passam. Um homem desce uma escada. Um homem corre, atravessa a rua, entra no ônibus. Já é noite, o filme começa do lado de fora: um homem conduz o movimento que se aproxima. Um movimento em direção à proximidade (2'15"), um movimento que pede passagem. Um carro se aproxima, avança em direção à câmera, há uma mulher com a cabeça apoiada sobre o ombro do homem que conduz. Um homem conduz.

O filme começa diante de uma janela, com um telefonema, um vestido vermelho. Uma mulher de vestido vermelho está inquieta, anda de um lado para o outro, anda entre duas janelas no interior de um apartamento. O ruído dos seus passos (salto alto sobre o assoalho de madeira) se sobrepõe à música de fundo. A mulher de vestido vermelho faz uma ligação, escutamos uma voz masculina do outro lado da linha. A mulher de vermelho desliga o telefone subitamente (3'54"). A primeira porta se abre, o mesmo filme começa (3'55"): a mulher de vestido vermelho sai de casa, caminha pelas ruas, entra num táxi, chega ao seu destino, desce do táxi. A mulher de vestido vermelho olha para o interior de um apartamento por duas janelas abertas e vê um homem que anda de um lado para o outro. O homem que está do lado de dentro está inquieto. A mulher de vestido vermelho que está do lado de fora está inquieta (5'45").

O filme começa ainda algumas vezes antes de voltar a começar diante da porta de uma casa de número 17, em que uma mulher espera. O filme começa do lado de fora com uma mulher que espera encostada, com uma mulher que anda de um lado para o outro e se encosta diante da porta. A mulher caminha não se sabe para onde, deixa de esperar. Seus passos são ruidosos (salto alto sobre o asfalto). Ou talvez ela tenha decidido esperar em movimento, esperar na distância. Um homem corre impaciente em direção à porta de número 17 e toca a campainha. Mas a mulher inquieta que esperava já partiu (é outro homem quem o diz). O homem sai em busca da mulher que já partiu, ele encontra a mulher que já partiu. A mulher que já partiu (a mulher que estava diante da porta à espera) corre em direção ao homem que a veio buscar. Eles se abraçam com desespero, eles caminham juntos (14'36").

O filme começa, um homem caminha em direção a uma porta, coloca um bilhete debaixo da porta e parte. A porta se abre, vemos uma mulher com o bilhete na mão, seu olhar está à procura. A mulher com o bilhete na mão, que está à procura, agora corre. Seus passos causam ruído (salto alto sobre o asfalto). A mulher alcança o homem que colocou o bilhete debaixo da porta. Eles caminham juntos agora, eles entram pela porta (16'17").

O filme começa, um casal atravessa uma porta para o lado de fora, a mulher está bêbada, se desequilibra. Caminham juntos. Em seguida, retornam, ela está bêbada, ele a conduz bruscamente e eles atravessam a porta para o lado de dentro (18'6").

O filme começa, um casal caminha lado a lado, se dirigem a uma porta, o homem abre a porta e acende a luz do lado de dentro, dá um passo para o lado de fora, ele tenta conduzi-la pelo braço, mas ela se desvia. Em seguida ela entra. Ruído de salto sobre o assoalho. Ele entra atrás dela. Ele fecha a porta (18'44").

O filme começa, uma saia se movimenta, através das pernas, pelas escadas: uma mulher desce silenciosamente as escadas, calça seus sapatos, se dirige até a porta. A mulher está de costas para a câmera, abre a porta, sai, fecha a porta. Logo está do lado de fora e caminha. Está de frente para a câmera. Um homem aparece, apanha seu braço, um homem a conduz pelo caminho. Eles não estão num carro, eles estão a pé. Um homem a conduz. Eles caminham rapidamente, conforme o ritmo do passo ditado pelo homem. Ruído dos passos firmes e apressados do homem sobre a calçada. Sapato (19'48").

O filme começa mais quatros vezes antes de começar novamente quando um homem dorme sobre a cama e uma mulher faz as malas sobre a mesma cama, passa batom, desce as escadas, e atravessa a porta sorrindo (25'44"). O filme começa mais algumas vezes.

O filme começa: há um casal sentado num bar diante de dois copos de cerveja. O olhar de ambos se dirige para o infinito. O homem se levanta bruscamente e arrasta consigo a mulher (o homem conduz o movimento que derruba os copos de cerveja). Ambos correm, o homem conduz o movimento acelerado, atravessam uma porta de vidro, se beijam desesperadamente (31'13").

O filme começa, começa ainda uma vez, e começa novamente: olhamos através de uma porta de vidro uma menina que desce as escadas, abre uma porta e passa para o lado de fora (ela estava do lado de dentro, ela atravessa a porta de vidro). Ela corre em direção a um casal que se beija, o casal caminha em outra direção (36'50").

O filme começa ainda algumas vezes antes de começar dessa maneira (40'5"): um homem sobe as escadas de um edifício e bate à porta de um apartamento, sem obter resposta. Ele insiste, bate cada vez mais forte contra a porta. Impaciente, ele se senta no último degrau da escada. Ele escuta o barulho de alguém que sobe as escadas e se levanta. Volta a se sentar (barulho de chave no andar debaixo).

O filme começa ainda quatro vezes e, a seguir, começa com um casal deitado sobre a cama. A mulher dorme, há uma janela com uma pequena fresta, o homem se levanta inquieto. Abre a janela, senta-se sobre a janela, olha para baixo. A mulher continua dormindo. O homem caminha, passa por duas portas, entra na cozinha, abre a geladeira, pega algo para beber. Senta-se ao lado da janela (50'17").

O filme começa novamente para depois começar com um homem que está sentado na cama e olha para a janela enquanto fuma. Ele joga o cigarro pela janela. Há um outro homem deitado na mesma cama, ele o acaricia, eles se olham (53'03").

Nesse momento, os começos do filme passam por recomeços: a mulher que havia “fugido” de casa enquanto um homem dormia, agora atravessa a porta de vidro de um hotel, entra num quarto e se deita sobre a cama (54'3"). O filme começa ainda algumas vezes e a seguir continua seu recomeço no momento mesmo do amanhecer: a câmera está diante de uma rua com edifícios baixos que a ladeiam, a mulher que havia dormido num hotel depois de “fugir” de casa cruza essa rua e a vemos passar. Barulho de salto sobre o asfalto. Faz uma curva. Barulho de salto sobre o asfalto. Se encaminha para a porta de n. 18, abre a porta, entra, vai até o quarto onde ainda dorme o homem, e se deita na cama ao seu lado. O despertador toca, ela se levanta. O homem permanece deitado (66'37").

Tu écris à l’indécidable.

L’indécidable me lit.

Comment écris-tu l’indécidable ?

Avec une majuscule : l’Indécidable.

[ — Você escreve ao indecidível.

— O indecidível me lê.

— Como você escreve o indecidível?

— Com maiúscula: o Indecidível.]

(Cixous, 2006, p. 15)

Entre começos e recomeços que se intercalam, o filme começa ainda uma última vez (78'17"): uma mulher recebe o abraço forte de um homem que parece ter chegado por uma porta que, entretanto, não vemos (que talvez sequer exista). Ela sorri sutilmente. Ele a pergunta: “Por que você o ama?”. É ele ainda quem pronuncia a palavra: “Dance comigo”. Eles dançam abraçados. Estão no interior de um apartamento, toca uma canção romântica italiana. Eles dançam abraçados em círculos num corredor estreito, enquanto toca a música italiana, enquanto escutamos o ruído do salto da mulher sobre o assoalho, enquanto escutamos o barulho de carros e buzinas ao fundo, enquanto ela diz, entre silêncios:

“Eu não sei.”

“Não sei se o amo.”

“Está tão quente.”

“Estou cansada.”

“Nunca amei ninguém assim.”

“Às vezes eu o esqueço.”

“Talvez seja a boca dele.”

“Não, não é a boca dele.”

“Talvez seja a maneira como ele anda… ou os seus olhos…”

“Está terrivelmente quente.”

“Está tão quente.”

“Eu devia ter saído de férias.”

“Essa música é tão linda.”

“Está tão quente aqui.”

“Está calor.”

“O queixo dele…”

“É demais para mim…”

“Não, não é a boca dele.”

“Eu devia ter saído de férias.”

“Ele continua me telefonando.”

“Nunca amei ninguém assim.”

Ela nada sabe sobre este amor. Como Eva ou Alice, a mulher que dança não conhece. A música para, o telefone toca, escutamos o ruído do salto alto da mulher sobre o assoalho, escutamos o barulho de carros e buzinas que se intensifica. Ela atravessa o corredor e entra numa porta à esquerda, ele segue atrás dela. Ela se senta na cama e atende o telefone, ele se deita atrás dela. Ao telefone, ela diz:

“Sim.”

“Sim.”

“Sim.”

“Sim.”

“Sim.”

“Se é tão somente o Outro que pode dizer sim, o “primeiro” sim, o acolhimento é sempre o acolhimento do outro.” (Derrida, 2015, p. 42). A geometria se esboça: estamos agora diante da hóspede (quando, na primeira porta, La Chambre, éramos nós mesmos os hóspedes), estamos diante de quem hospeda ou acolhe o seu próprio sim para hospedar ou acolher aquele que, deste sim, será também o hóspede. Daquele de quem nada sabemos, daquele a quem não nos é dado ver ou ouvir, daquele a quem não se sabe por que ama. Ela (a hóspede) desliga o telefone, ela se deita com o homem que nos é dado a ver (o outro homem, também hóspede de um outro sim que, entretanto, não se pronuncia. Hóspede de um sim silencioso). Ela, simultaneamente hóspede e hospedeira, se deita de costas para a câmera. Eles se abraçam. Escutamos o barulho de carros e buzinas (83'41"). O filme acaba. E, no entanto, é como se as portas continuassem se abrindo e se fechando bruscamente, um barulho estrondoso ressoa.

Todo o filme, com seus inúmeros começos, personagens, situações, dá a ver as contingências. As contingências são intercambiáveis. Músicas, tempestade, ruídos de carros, de buzinas, ruas, corredores, escadas, camas, portas, portas, portas, janelas. Passos de homens que amam (correm afoitos), passos de mulheres que amam (correm afoitas).

Os amantes pedem passagem. Os amantes passam. Uma porta aporta, “a porta tu/ a porta eu” (Jorge, 2001, p. 44): uma porta traz ou leva, conduz, chega ou encaminha, uma porta traz, uma porta leva. Ruas, escadas, corredores, camas. Sem que o movimento possa ser interrompido por um minuto sequer, sem que haja silêncio. E, no entanto, silêncio é tudo que há: nenhuma palavra pode jamais aquietar os corpos que pedem passagem, não há palavra que acolha, absoluta, o amor. Não sedeve permitir que o amor seja ameaçado por qualquer significação. “Eu o amo… eu o amo…” (3'54"); “Tenho medo” (18'); “Não voltarei mais” (23'55"); “Sim… sim… eu penso em você todo o tempo” (27'); “Isabelle… Isabelle… Isabelle…” (28'2"); “Por que você está partindo…?” (28'58"); “Quando eu te verei de novo?” (30'); “Eu quero dançar” (32'20"); “Eu estava esperando por você/ — Eu não sabia disso” (34'30"); “Cristine?” (35'); “Oh você está aqui…! Você está aqui!” (42'20"); “Venha!/ — Não essa noite” (46'21"); “Eu acho que nós não nos amamos mais…/ — Faz muito tempo que você pensa isso?” (51'34"); “É você? Entra!/ — Eu não podia mais resistir…” (54'53"); “Qual o seu nome?/ — Daniel, e o seu?/ — Me chamo Clara” (68'2"); “Querido Vincent…” (57'35"); “Não vamos ficar aqui. Vamos partir…!” (77').

São muitos os que se amam (Isabelle, Cristine, Vincent, Daniel, Clara…), são muitos mais do que os nomes todos que existem, muitos mais do que as palavras e suas infinitas combinações. A vida da palavra coincide com a destruição total daquilo que o objeto nomeado carrega consigo de mundo. Nesse sentido é que a expressão se situa no limiar entre ruído e silêncio, entre o cálculo geométrico e a deformação absoluta de qualquer traçado. Limiar. A geometria dessa porta, uma geometria plural, poderia ser figurada por meio de uma espiral que gira simultaneamente para cima e para baixo. “De qual extensão se trata? O que vai ‘mais longe’ do que a linguagem, quer dizer, o amor, vai também ‘menos longe’ do que ela.” (Derrida, 2015, p. 57). A geometria desta porta, comporta, estou tentada a dizer, uma extensão potencialmente infinita: a linguagem não a compreende, não a conforma, e tampouco a linguagem pode ser compreendida ou conformada por ela: “(…) your eyes have their silence:/ in your most frail gesture are things which enclose me” (Cummings, 2011, p. 87). [“(…) teus olhos têm o seu silêncio:/ no teu gesto mais frágil há coisas que me encerram”] (Tradução de Augusto de Campos, 2011, p. 86.) A geometria dessa porta contém o silêncio, o mesmo seria dizer que a geometria desta porta impede o avanço do silêncio, ao mesmo tempo que abriga, recebe, acolhe, hospeda o silêncio. As palavras não virão acolher o que as ultrapassa, o que é por elas ultrapassado. As palavras recolhem. É preciso cuidar para que os acontecimentos não se fechem nas palavras. É preciso cuidar para que as palavras não se tornem legíveis a partir dos acontecimentos.

Uma geometria erótica: os que amam — porque amam — estão sempre a começar o movimento e, porque tudo é começo (limiar) — mesmo quando há partida, mesmo quando há recusa: “or if your wish be to close me, I and/ my life will shut very beautifully, suddenly” (Cummings, 2011, p. 87) [“ou se quiseres me ver fechado, eu e/ minha vida nos fecharemos belamente, de repente”] (Tradução de Augusto de Campos, 2011, p. 86) — o filme não termina, mas mantém seu gesto inaugural, o seu começo contínuo de aberturas e de fechamentos: tudo começa por abrir-se, tudo começa por fechar-se: “your slightest look easily will unclose me/ though I have closed myself as fingers,/ you open always petal by petal myself” (Cummings, 2011, p. 87) [“teu mais ligeiro olhar facilmente me descerra/ embora eu tenha me fechado como dedos, nalgum lugar/ me abres sempre pétala por pétala”] (Tradução de Augusto de Campos, 2011, p. 86). Trata-se de uma coreografia erótica6 performada pelos corpos, mesmo que a cópula não seja nunca encenada enquanto tal, na sua literalidade. Do contrário, estaríamos diante da impossível tarefa de testemunhar aquilo que, por condição, se esconde aos olhos de qualquer testemunha. Os corpos dançam entre ruídos (palavras, melodias, tempestade, buzinas, carros, portas que se abrem, portas que se fecham), dançam conforme a coreografia erótica do movimento incessante. Para a manutenção do movimento pouco importa se é de abertura ou de fechamento que se trata. A essa altura, já se sabe que não se deve permitir que o amor seja ameaçado por qualquer significação. Que não se deve permitir que o nome do amor — em nome do amor — se submeta à necessidade de um começo ou de um fim. A fórmula (quero dizer: a solidão) ou era antes uma mentira, sendo a história dessa ficção a verdade absoluta; ou então a solidão (uma fórmula) era a única verdade possível, e toda a história dessa ficção é que mentia. Sobretudo não se deve descansar o entendimento em nenhuma dessas alternativas. O filme não termina.

O filme termina. E, no entanto, é como se as portas continuassem se abrindo e se fechando. E, no entanto, é como se ninguém nunca pudesse ter entrado em qualquer lugar que fosse, é como se ninguém nunca pudesse ter saído de lugar algum. Não há chave (clāvis ou clitoris) que possa abrir para o sentido, para o segredo, afinal. Há o limite (līmes,ĭtis: atalho, caminho, estrada, sulco, rastro, divisão, fronteira, muralha…), há o limiar(limen,ĭnis: soleira da porta, entrada; limināris,e: liminar inicial, primeiro, ‘do princípio’, aquilo que começa).

Os movimentos, portanto. Os corpos se movimentam por ruas, escadas, corredores e, no entanto, é como se permanecessem. Estamos diante de um movimento imperioso que pede passagem, um movimento que fixa, paradoxalmente, os corpos na inquietude, e as portas que esta porta inaugura vêm sinalizá-lo. Me parece ajustado dizer que nunca sairemos daqui, desse movimento. Não há portas. Ou as portas que há estão condenadas, e deveremos ficar andando infinitamente com o nosso olhar por um labirinto que o atravessar da porta supõe.

O vai e vem desempenhado pela câmera na primeira porta (La Chambre) — uma porta estática — é aqui desempenhado pelo movimento de infinitas portas, todas elas, entretanto, uma única porta tu: “(i do not know what it is about you that closes/ and opens (…)” (Cummings, 2011, p. 87) [“(não sei dizer o que há em ti que fecha/ e abre (…)]” (Tradução de Augusto de Campos, 2011, p. 86). O amor solitário de Eva, é, nesta segunda porta, um amor solitário ainda. De resto, solitário como todo amor: “Man ist allein mit allem, was man liebt.” (Novalis, 1992, p. 134). [“Estamos sós com tudo aquilo que amamos.]” (Tradução de Rui Chafes, 1992, p. 135). Um amor solitário e sem testemunha, cerrado, portanto. Aberto. Um amor do hóspede, para o hóspede. Ele que está de passagem, que pede passagem. Um amor que se dirige para o infinito ao interpelar o outro pelo silêncio que encerra qualquer discurso amoroso. “A partir do fundo sem fundo de sua solidão, um apelo só pode se escutar a si mesmo, e escutar-se chamar, a partir da promessa de uma resposta.” (Derrida, 2015, p. 42)

Terceira porta (o tempo do amor entre a espera e as pernas)

“On est toujours un peu peur ou très peur avant commencer” (3'29"). [Dá sempre um pouco de medo ou muito medo antes de começar.]. “C’est la tension qui m’empêche, il faut que cette tension cesse. Après tout, c’est ne qu’une mission… Et depuis, je sais très bien qui c’est comme ça au début. Donc… Si j’arrivais a prendre cette mission par le milieu…? Après je reviendrait au début, et puis la fin… la fin… je la laisserait ouvert… elle découlerait du milieu…” (Akerman, 1997, 6'13" — 6'28") [É a tensão que me impede, é preciso que essa tensão cesse. Afinal, é apenas uma missão… Além disso, sei muito bem que é assim no começo. Então… se eu apanhasse essa missão pelo meio…? Depois eu voltaria para o começo, e então o fim… o fim… eu deixaria em aberto… ele resultaria do meio…].

Esta porta, a terceira porta, desafia os limites daquilo que se deve dizer sobre ela. Como disse Chantal Akerman, no filme em que sua missão era falar sobre o próprio ofício: há medo (o grande ou o pequeno medo) antes de começar. É certo que é apenas uma missão. Para executá-la, é preciso suspender todos os limites, o que significa dizer que é preciso suspender os atalhos, os caminhos, as estradas, sulcos, rastros (é preciso suspender os rastros?). É preciso suspender as divisões, as fronteiras, as muralhas. Para executar essa missão, é preciso suspender o limiar: a soleira da porta, suspender a entrada, o início, o princípio. É preciso suspender tudo aquilo que começa. É preciso cessar com toda previsão, é preciso esperar como quem apenas observa sem auxílio da dedução, sem se adiantar. É preciso estar aqui, erguer-se, é preciso estar pendente, pendurar-se na própria espera. É preciso retirar os vestígios de esperança que possam restar no gesto da espera, suspender o que em cada um tende a algo como um objetivo ou uma meta. Sempre se pode voltar para o começo. E o fim… o fim… fica em aberto. Essa missão deve ser apanhada pelo meio. É preciso ficar diante da porta condenada andando infinitamente no labirinto que o atravessar a porta supõe. Olhar por entre as frestas, por entre as fendas, se perder no labirinto que é a espera sem objeto.

Entre 1946 e 1966 Duchamp concebeu o segredo, em segredo. O segredo que ele desejou que fosse exibido apenas um ano após sua morte. O segredo se exibe, poderia se dizer assim. O segredo se exibe após a morte (silêncio, desaparição: é tudo o que nos aparece, o que nos é dado a ver). O segredo nos é dado, e o que se dá nesse desejado gesto póstumo, o que nos aparece da sua desaparição, é o próprio segredo. Um dom, uma dádiva, um dote. Como quem tivesse dito, hipoteticamente: eis aqui, olha só, há um segredo… partilhemos a sua impossibilidade, o silêncio que ele perpetua, eu o ofereço a vocês. Eis o segredo: uma oferenda. Given: The Waterfalls, 2. The Illuminating Gas. Étant Donnés: 1. la chute d’eau, 2. le gaz d’éclairage. Uma porta rústica, por onde se pode olhar através de uma fenda.

https://www.youtube.com/watch?v=nzMznyyLwyM

O que se vê é o segredo que se mostra como tal: um corpo nu de mulher deitada, seu sexo exposto sem que nenhum pelo lhe cubra, suas pernas abertas: a perna esquerda se dobra em paralelo com o braço esquerdo, que se ergue segurando um lampião. Está deitada, a mulher, e não alcançamos o seu rosto. O seu rosto não se mostra, o seu rosto é uma ausência, um silêncio. Está deitada sobre galhos secos. Ao fundo, uma paisagem densa de árvores, um jardim. Uma porta rústica, por onde se pode olhar através de uma fenda.7

Quando vivia em Paris, no pequeno apartamento da rue Larrey, nº 11, Duchamp fez instalar dentro de casa uma porta que não podia estar nem aberta nem fechada porque estava sempre aberta e fechada ao mesmo tempo. Uma porta que ele abria quando a fechava (fechada mesmo aberta, como alguém disse acontecer com os livros) e que descolava da sua função de porta, como a palavra porta descola de qualquer porta se a dissermos duas vezes: uma porta-porta. A dele rodando entre dois umbrais, e por isso incapaz de preencher um vazio sem abrir outro vazio. Duchamp tinha-a colocado ali para não esquecer que há em tudo uma parte de nada, um vão impossível de preencher sem que logo se abra outro mesmo ao lado. Mas desde então dormia mal, por causa dos gritos dessa porta, ao mesmo tempo concreta e abstracta, deslocada e infeliz como uma alegoria sem propósito. E quando não conseguia dormir, e se levantava às escuras para ir beber um copo de água, acontecia-lhe hesitar diante da sua invenção: «aberta, fechada?». Nessas alturas, se via que Duchamp ia enganar-se outra vez, a porta-porta mudava de posição e empurrava-o docemente para o lado do vazio. Além de gritar e ser didáctica, que mais pode uma porta para se fazer entender? Duchamp desaparecia então no fundo escuro da cozinha, e sempre dava consigo a pensar sem saber muito bem porquê que, talvez por estarem tão cheios de nada, os gritos da sua porta-porta lhe faziam afinal fraternamente companhia. Depois, no regresso ao quarto, hesitava novamente — «aberta, fechada?» — mas, com os braços um pouco adiante do rosto, atravessava agora o vazio a passos mais decididos.

(Martelo, 2009, p. 7).

Um corpo nu de mulher deitada, seu sexo exposto sem que nenhum pelo lhe cubra. Suas pernas abertas exibem o segredo, dão a ver o segredo: uma fenda entre as pernas, como se fosse uma fenda numa porta. Uma porta rústica de madeira, um corpo nu de mulher. Uma fenda que contém uma fenda. Uma fenda que impede que outra fenda avance. Uma fenda que exerce contra outra fenda a força exigida para frear seu ímpeto. Uma fenda que tem a capacidade de abrigar, receber, acolher ou hospedar a fenda. Em 1866, Gustave Courbet chamou essa fenda de L’Origine du Monde. Courbet parece não ter sentido medo ao olhar de frente para o começo, para o princípio. Courbet deu a ver o começo, a origem; deu um nome para a o começo. Um nome de mulher. Um nome que não se pronuncia e, paradoxalmente, um corpo de mulher que apenas parcialmente nos é dado a ver, pois seu rosto está ausente. A fenda é o limite que circunscreve o inominável: é o que ao mesmo tempo se mostra e se esconde.

Uma fenda ou uma fresta, uma fenēstra, uma janela ou abertura estreita que permite a passagem da luz. Um corpo de mulher cujo braço esquerdo se ergue segurando um lampião, como fez Duchamp. A luz do lampião permite que se veja a fenda através da fenda, a fresta: uma janela ou uma porta. The Illuminating Gas ou le gaz d’éclairage, o gás da iluminação. As coisas que vemos, nós as vemos porque há luz.

Deve-se começar pelo meio. 27'56": a câmera está centralizada diante de um corredor estreito. As paredes ocupam grande parte do enquadramento. De cor bege. São paredes beges, ou amareladas pelo tempo, como quase todas as paredes que delimitam os corredores do hotel (estamos em um hotel, somos hóspedes das portas e corredores que o nosso olhar hospeda). Por vezes penso que é um efeito da luz, que é a iluminação que nos faz vê-las assim, as paredes, em tom de nude, esse bege, o amarelo surrado pelo tempo. A fonte de luz — não é possível precisar se se trata de uma lâmpada ou de uma arandela, pois a luminosidade permite que a câmera capture apenas um foco de claridade embranquecido e disforme, com um contorno vermelho esfumaçado que molda a fonte de luz —, a fonte de luz está situada na parede do lado esquerdo de quem olha, na parte superior do enquadramento, e próxima a uma das portas onde irá culminar a cena (voltarei a isso). Na parede situada do lado direito de quem olha, no canto superior, à extrema direita do enquadramento, vemos outra mancha disforme, como se fosse uma concentração de glíter branco que forma uma mancha oval concentrada, cujo contorno se acinzenta, como se o glíter se tornasse rarefeito. Lembra as figurações da via láctea. Esse outro borrão brilhante é o reflexo da luz. É provável que seja o reflexo da fonte de luz situada à esquerda. A fonte de luz ao fundo é refletida no primeiro plano: os dois — fonte e reflexo — em altura semelhante. Uma diagonal levemente descendente da esquerda para a direita.

Do lado esquerdo de quem olha, a pintura da parede parece desbotada ou manchada, a cor é irregular. Do lado direito, a pintura da parede é mais homogênea, observamos menos oscilações nos tons de nude, na sua cor. As diagonais que compõem esse enquadramento são sutis e talvez exigiriam maior esforço de percepção se não houvesse o contraste de cores: o nude e a gradação de tons acinzentados das paredes laterais, do teto, e da pequena parte da coluna no teto que nos é dada a ver, contrastam com o preto do chão do corredor, que vai desembocar em duas portas escuras (marrons, quase pretas, talvez completamente pretas, não é possível dizer). Centralizadas pela câmera, duas portas escuras e altas como a noite, com um pequeno retângulo horizontal de vidro na parte superior de cada uma delas. São portas que contêm janelas. São portas que impedem que as frestas (pequenas janelas) avancem. São portas que exercem contra as frestas (pequenas janelas) a força exigida para frear seu ímpeto. São portas que têm a capacidade de abrigar, receber, acolher ou hospedar as frestas (as pequenas janelas). As duas portas altas e escuras se encontram no fim do corredor de modo que, desse encontro — em que os batentes superiores de cada uma delas são vistos como diagonais descendentes em relação ao centro do enquadramento —, formem um “V” cuja abertura do ângulo é alargada. Uma abertura de ângulo generosa, como se o ângulo se abrisse para alguém que nele desejasse se hospedar. Mas esse encontro de portas está selado. São portas cimentadas em paredes sólidas, antigas. Nós, hóspedes deste olhar, permanecemos diante do enquadramento estático durante 14". Aos 28'10", a porta, situada à direita de quem olha, se abre discretamente: uma pequeníssima fresta, por onde podemos olhar uma pessoa que nos olha. Essa fresta se oferece ao nosso olhar por 6" apenas, e a porta volta a se fechar. Aos 28'29", há um corte e a partir de então somos hóspedes de outro corredor: outro ângulo, outra geometria. Linhas paralelas, diagonais e perpendiculares em diferentes profundidades. Outra iluminação. O tom predominante é ainda um amarelo envelhecido ou o nude. Uma placa de saída (“EXIT” em letras vermelhas sobre fundo branco) no centro do enquadramento: uma luz ilumina o ambiente, mas não vemos a lâmpada. A fonte ou a origem da luz não estão ao alcance da nossa vista (30'17").

O filme se chama Hôtel Monterey. O meio do filme (por onde se deve começar), é o meio do hotel (onde nos hospedamos), entre duas portas. O filme se chama Hôtel Monterey. O meio do filme (por onde se deve começar), é o meio do hotel (onde nos hospedamos), entre duas pernas. O nosso olhar está dirigido para o sexo de uma mulher. Aos 28'10" o sexo de uma mulher se abre discretamente, timidamente. Uma fresta se oferece ao nosso olhar e o que essa fresta nos oferta é o próprio olhar. Exatamente como num reflexo. Nossos olhos olham os olhos que nos olham. Mas são outros, e não os nossos próprios olhos, os olhos que nos olham. Os olhos para os quais podemos olhar, são olhados graças a fenda que se abre entre as pernas (entre as paredes) de uma mulher (de um hotel, o Hotel Monterey), de onde surge uma pessoa (não sabemos se um homem ou se uma mulher). Estamos no meio do filme, no meio do hotel, no meio das pernas de uma mulher.

[Você queria ver tudo de uma mulher, tanto quanto possível. Você não vê que isso é impossível. § Você olha a forma fechada. Você vê primeiro os leves frêmitos se inscreverem na pele, justamente como os do sofrimento. E logo depois as pálpebras tremelicarem como se os olhos quisessem ver. E logo depois a boca se abre como se a boca quisesse dizer. E logo depois você percebe que debaixo das tuas carícias os lábios do sexo incham e que do seu veludo sai uma água visguenta e quente como seria o sangue. Então você faz mais rápidas as tuas carícias. Você percebe que as coxas se afastam para deixar a tua mão mais à vontade, para que você faça tudo melhor ainda. § E de repente, num gemido, você vê o gozo chegar a ela, arrebanhá-la inteira, soerguê-la da cama. Você olha com muita força o que acaba de executar nesse corpo. Você o vê em seguida tornar a cair, inerte, sobre a brancura da cama. Ele respira depressa com sobressaltos cada vez mais espaçados. E depois os olhos se fecham ainda mais, e depois eles se selam ainda mais no rosto. E depois eles se abrem, e depois eles se fecham.]

(Duras, tradução de Vadim Nikitin, 2007, pp. 70-1)

Somos, logo em seguida (28'29"), colocados diante de uma placa de saída: “EXIT” em letras vermelhas sobre fundo branco. E ali permanecemos por 1'47" (até (30'17") como se não houvesse saída.

Estamos no meio do filme, no meio do hotel, no meio das pernas de uma mulher. E, no entanto, é como se justamente aqui (neste corredor, por entre as pernas de uma mulher), aos 28'10" — embora não apenas aqui — fosse possível situar o começo. A origem do mundo (Courbet). Talvez seja por isso que Eva sempre tenha estado lá, naquele quarto (La Chambre). Eva, digo, a origem, aquela que sempre esteve. Talvez por isso o paraíso tenha estado sempre lá, espalhado sobre toda a Terra, irreconhecível (Novalis). Talvez por isso a origem (o começo) se situe em toda parte (no meio, ou no fim — um fim aberto, como as pernas de uma mulher); talvez por isso a origem (o começo) tenha se tornado tão irreconhecível: por ter se espalhado por todos os tempos: a noite toda (Toute une Nuit). Mesmo quando não há luz, ou quando a luz que há é pouca (sobretudo no escuro é preciso evidenciar o começo, a origem e a sua permanência nos tempos e espaços: corredores, ruas, quartos…). Talvez por isso Duchamp tenha sentido a necessidade de jogar luz sobre a fresta de uma mulher deitada, de uma mulher com as pernas abertas. The Illuminating Gas ou le gaz d’éclairage, o gás da iluminação. As coisas que vemos, nós as vemos porque há luz. Duchamp jogou luz e se colocou diante do labirinto, à espera. Até que viesse a morte (a dele).

É de fato um labirinto o Hôtel que Chantal Akerman nos convida a habitar: o claro e o escuro, as escadas, os elevadores, os imensos corredores cheios de portas, as janelas. As placas de saída. A fresta (a janela, la fenêtre), por onde passa a luz, enquanto o hóspede, à espera, pede passagem. Ele não espera senão passar, não deseja outra coisa que o movimento (Alice).

Estamos num hotel. O filme é um documentário. O filme se chama Hôtel Monterey, o hotel tem o mesmo nome.

When I did Hôtel Monterey it was not because of the experiment, it was also to show a hotel, and bring attention… and also to play with abstraction and very concrete. For example you have a rollway and it’s yellow. At the end, it’s red, and I stay for a while, I don’t know… for a minute or 45 seconds… well you forget that it’s a hallway after a while, and you see red and yellow, it becomes abstract… so I play with that. But you also have a feeling about the hotel with poor people, so… It’s working in many levels. (Akerman in Beck, 2010, 11'59")

[Quando eu fiz Hôtel Monterey não foi por causa do experimento, foi também para mostrar um hotel, e chamar atenção para isso… e também para jogar com a abstração e o extremamente concreto. Por exemplo, você tem um corredor que é amarelo. No final, ele é vermelho, e eu permaneço por um tempo, eu não sei… por um minuto ou 45 segundos… bem, você esquece que se trata de um corredor depois de um tempo, e você vê o vermelho e o amarelo, a coisa se torna abstrata… então eu jogo com isso. Mas você também tem um sentimento sobre o hotel com as pessoas pobres, então… Isso funciona em vários níveis.]

A terceira porta é silenciosa. Esta porta contém frestas, janelas, digo de outra maneira: ela impede que as frestas ou as fendas avancem. As janelas. Por isso não está nem aberta nem fechada e também por isso ela não é estática, mas exerce contra as frestas a força exigida para frear seu ímpeto. Esta porta contém frestas, e com isso digo também que ela tem a capacidade de abrigar, receber ou hospedar as frestas.

O filme começa com a câmera estática diante de um espelho pendurado sobre a parede que reflete a movimentação da recepção de um hotel. É o Hôtel Monterey. O que vemos, além de vermos a parede que sustenta o espelho e uma fresta que interrompe a parede para sugerir a alteração do espaço (talvez um corredor, talvez um hall de entrada, uma pequena sala onde se situam os elevadores, não sabemos, pois não vemos); o que vemos são os reflexos das imagens refletidas pelo espelho. O espelho reflete a passagem de pessoas, o seu movimento. É o que vemos. O espelho também reflete, na parte superior, algo que permanece estático: uma janela aberta, de vidro, por onde vemos um lustre aceso, uma fonte de luz. Acontece aqui exatamente como acontece no meio do filme (aos 27'56") com a fonte de luz situada na parede esquerda de quem olha (com a mancha branca situada na perna direita da mulher que tem as pernas abertas para o hóspede). Acontece aqui exatamente como acontece com a fonte de luz que, no meio do filme (no meio das pernas), reflete a luz (uma mancha oval horizontal que parece composta de glíter) na parede direita de quem olha (uma mancha branca que lembra a via láctea ou o esperma ainda fresco na perna esquerda da mulher que tem as pernas abertas para o hóspede). Acontece aqui exatamente como acontece no meio do filme (aos 28'10"), quando a porta, situada à direita de quem olha (quando o sexo da mulher que está deitada, com as pernas abertas, à espera do hóspede) se abre(m) discretamente (porta e sexo se abrem): uma pequeníssima fresta, por onde podemos olhar uma pessoa que nos olha. O olhar da pessoa que nos olha se reflete no nosso olhar ao olhá-la. Ou ainda: o nosso olhar se reflete no olhar da pessoa que nos olha. Não fica claro qual a fonte do olhar e qual o seu reflexo. Ninguém pode saber qual a fonte, qual a origem, quando foi de fato que isso tudo começou.

E, no entanto, não acontece exatamente assim no começo do filme, quando estamos diante de um espelho estático que exibe o reflexo do movimento dos passantes sob o reflexo de uma janela de vidro. Pois, no começo do filme, o que vemos são apenas os reflexos das imagens refletidas pelo espelho. Não vemos as imagens, as fontes que estão sendo refletidas. Vemos apenas reflexos. A fonte não se vê (a origem ou aquilo a partir do qual o reflexo tem o seu começo). Ou então não vemos os reflexos, vemos apenas as imagens que não geram reflexo no espelho ou em qualquer outra superfície. São pessoas em movimento. Vemos apenas as imagens dos passantes (hóspedes como nós), que atravessam o espaço interpondo seu movimento entre a câmera e o espelho colado à parede. O primeiro corte do filme acontece aos 1'20". Uma simetria imperfeita, ou a perfeição assimétrica que borra a exatidão do cálculo e confunde a matemática com que a geometria visual ostensiva nos ludibria. O que essa simetria imperfeita faz corresponder, assemelhar, harmonizar em proporção equivalente é a constatação de uma diferença instransponível. É uma simetria que contém a dissimetria, é uma simetria que impede a dissimetria de avançar, ao mesmo tempo que é uma simetria que abriga, recebe, hospeda a dissimetria.

Há muitos cortes, há muitas coisas que acontecem em silêncio depois que o filme começa. Há portas que se abrem e que se fecham num mesmo espaço entre os 30'18" e os 36'11", e no entanto, nada vemos, digo, não sabemos quem entra ou quem sai dessas portas, com que objetivo e que caminho percorrem para fora do enquadramento.

Muita coisa acontece a seguir ao primeiro corte (1'20"), muita coisa acontece depois que o filme começa. Muitos cortes acontecem, e depois o filme chega ao fim. Mas antes de chegar ao fim, o filme começa por chegar ao fim. É quando estamos num corredor (39'50"). Um corredor comprido cheio de portas à direita. São retângulos escuros, de uma escuridão que luz alguma alcança. Um corredor comprido que termina numa porta central, elevada em relação ao chão: o horizonte do enquadramento. É de fato uma porta? Pela primeira vez a câmera não está estática, se movimenta em direção ao retângulo escuro situado ao fim do corredor estreito, suspenso em relação ao chão (é uma porta?). O corredor estreito cheio de portas à direita. Durante o movimento da câmera, passamos por uma interrupção na parede do lado esquerdo. Talvez seja um corredor, talvez seja o vão para as escadas, não sabemos (não vemos). Esse vão forma um ângulo de 90º com o corredor que a câmera nos leva a percorrer. Outro vão, também do lado esquerdo. Chegamos, com a câmera, ao retângulo escuro que se supunha ser uma porta. É quando o retângulo ocupa praticamente todo o enquadramento devido à proximidade da câmera. Sua forma se transforma. Graças a uma coluna de madeira vertical à esquerda, o retângulo se transforma num quadrado.

Aos 41'35" a câmera começa a se distanciar novamente, em velocidade lenta. Por isso, o quadrado (ou o retângulo) continua se transformando. Vê-se agora uma placa branca em que se lê EXIT (em vermelho) no canto superior esquerdo. Nesse filme, parece haver mais de uma saída, e, no entanto, há uma única palavra nesse filme em que há muitas saídas, uma palavra que nunca é pronunciada: saída (EXIT). Vê-se ainda outra placa idêntica, situada no canto superior da parede à direita. Já são três saídas que o silêncio dá a ver, e, no entanto, permanecemos ali, a olhar para todas as saídas que são dadas ao olhar. Ninguém sai dali, embora haja muitas placas que indiquem a saída.

Percorremos o mesmo corredor em sentido inverso, mas com a câmera dirigida para a mesma direção. O que se vê no caminho de agora é muito diferente do que se havia visto quando percorremos o caminho no sentido inverso. Tudo indica que se trata do mesmo caminho, pois a câmera não faz curvas, anda em linha reta no sentido da ida ou no sentido da volta e, no entanto, anda sempre na mesma direção. Ainda assim, não se vê as mesmas coisas. Aos 43'8" algumas luzes se apagam e outras se mantêm acesas. Em algum momento que não foi possível precisar, algumas luzes devem ter se acendido, depois de estarem apenas algumas delas apagadas. Aos 43'17" a câmera volta a se movimentar. Vai novamente em direção ao retângulo escuro situado no fim do corredor e tudo é novo de novo. Agora vemos reflexos de luzes azuis. São três os reflexos que vemos e formam um traçado levemente diagonal, levemente descendente, à esquerda. Estamos ainda no mesmo corredor, percorremos ainda o mesmo caminho, e, no entanto, não vemos as mesmas coisas. Aos 43'58" chegamos com a câmera novamente ao fim do corredor, e o que se via quando víamos um retângulo escuro (por vezes um quadrado), o que se supunha ser uma porta, vemos agora como um quadrado novamente (já não mais um retângulo), é agora uma janela o que vemos (já não mais a porta que supúnhamos). Há luzes do lado de fora da janela: azuis, laranja, amarelas, brancas. Pequenos (mas nem tão pequemos assim) focos de luz situados no centro-esquerdo do enquadramento. A câmera (a mesma câmera) nos faz passear pelo espaço (o mesmo espaço) visto por muitas perspectivas (perspectivas diferentes).

Aos 43'58" a câmera se aproxima ainda mais daquilo que se supunha um retângulo, uma porta, um quadrado, uma janela transparente que dá a ver focos de luz. Conforme a câmera se aproxima, mais luzes vão surgindo. As luzes aparecem como se tivessem sido acesas pelo movimento de proximidade da câmera. A câmera volta a se afastar e temos a impressão de que as luzes se apagam. É quando não podemos mais ver os focos de luz. A câmera passa novamente pela placa de EXIT. É um filme que oferece muitas saídas ao espectador, um hotel que oferece muitas saídas ao hóspede. E, no entanto, estamos ainda aqui percorrendo os dois sentidos do mesmo corredor, ninguém sai, permanecemos hospedados. Aqui. Num movimento erótico.

Aos 45'6" amanhece e o que vemos já não é mais o que vimos. Luz. A câmera se move na mesma direção da noite, se movendo, no entanto, na direção do dia. Como acontece quando abrimos ou fechamos os olhos em que há luz e não há luz, como acontece quando as mulheres abrem as pernas. Há uma janela no fim do corredor (uma fresta), portas do lado direito do corredor. Vemos a janela de vidro e vemos o que está fora da janela de vidro, pois há luz. Há outras janelas do lado de fora da janela. Uma fenda ou uma fresta dentro de outra fenda ou de outra fresta. Given. Étant Donnés. A câmera faz o percurso inverso novamente (estamos ainda no mesmo corredor, não houve curvas, é um movimento erótico), e, no entanto, há a luz do dia. A câmera segue, como sempre na mesma direção do olhar do hóspede, embora siga na direção oposta do movimento. Onde antes era possível ver uma placa de saída (EXIT em vermelho sobre fundo branco), agora se vê uma placa de direcionamento: uma flecha vermelha (sobre fundo branco) que aponta para a direção contrária em relação à direção para a qual a câmera se movimenta. Se não é possível fazer coincidir o sentido da flecha com o sentido do movimento, parece que estaremos condenados a percorrer o caminho sempre no sentido contrário, repetidamente. Entrar e sair, permanecer nesse movimento. É como fazer amor.

48'20", agora está mais escuro. Embora ainda seja dia, a luz se alterou, e se altera tudo o que vemos repetidamente (tudo o que vemos simultaneamente pela primeira vez). Novamente tudo se altera e estamos ainda no mesmo corredor cheio de portas. O que antes era amarelado e esbranquiçado, agora é amarronzado e alaranjado. A placa de EXIT situa-se agora sobre a placa com a flecha que aponta para a mesma direção em que a câmera se movimenta (há momentos assim, em que somos iluminados por uma bonita coincidência…). Há uma janela no fim do corredor (não mais um retângulo, uma porta ou um quadrado), e pela janela sabemos (porque vemos) que ainda é dia. Há luz. Através da janela de vidro, vemos duas outras janelas situadas à direita. Vê-se agora pela primeira vez que a janela ao fim do corredor está aberta. O que a fecha (caso ela estivesse fechada) é um vidro transparente. A câmera torna a recuar lentamente. Vemos agora tudo o que já havíamos visto antes, menos algumas coisas, pois a câmera cessa seu movimento no meio do caminho (49'15"). Já não é noite. Corte. O filme continua até chegar ao fim.

A terceira porta é silenciosa. É um filme mudo como a primeira porta, sem qualquer anteparo das palavras. Mas não é exatamente assim, na terceira porta. Há uma palavra, uma única palavra, que nos é dada ao olhar (mas que não nos é dada à escuta) quando entramos por esta porta. Por essa falta de coincidência entre o que vemos e o que não ouvimos, permanecemos ali, embora tudo indica que haja saída (mais de uma), embora nenhuma porta se apresente como saída, embora as portas se transformem em janelas (frestas) que hospedam o nosso olhar. Por essa falta de coincidência entre o reflexo e a imagem que é a sua origem, ao olharmos para o espelho não é a nós próprios que vemos. Mas uma fenda, uma pequena fresta, um vão. E então continuamos a nos movimentar.

Desfecho (quando a porta se abre, vemos uma janela: alguém diz que é um dos nomes do amor, sem poder precisar qual)

(Na entrada do site da Fondation Chantal Akerman referente a La Chambre, lemos palavras atribuídas à cineasta: “Je respire mais bien couchée dans mon lit. C’est le lendemain de la fin de Monterey.”8 [Eu respiro mas bem deitada na minha cama. É o dia seguinte ao fim de Monterey.] “Onde se entra é por ali que se sai.” (Siscar, 2019, p. 86)).