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“Aos meus três países, em partes iguais”: brutalismo e fronteirização em tempos de escalada

Resenha de Brutalismo, de Achille Mbembe

Historical, Erica Ferrari

A dedicatória trans e infra fronteiriça do livro Brutalismo, de Achille Mbembe, é a porta de entrada escolhida para seu projeto de antimuseu, “uma espécie de celeiro do futuro, cuja função seria abrigar o que deve nascer, mas que ainda não chegou” (2021, p. 35). Camarões está presente principalmente no capítulo “A comunidade de cativos”, África do Sul se espalha pelo livro, e é de lá que Mbembe olha para as questões de identidade e anti-identidade. Senegal, por sua vez, é de onde vem a pergunta sobre a possibilidade de um mundo sem fronteiras. A Europa e os Estados Unidos também estão presentes, visto que é impossível contorná-los se quisermos pensar os futuros da razão. Cruzando diferentes entidades geonacionais, a preocupação de Mbembe é a matéria vida, tão fina, a qual intenciona recolocar em circulação, a qual propõe ser a presença antecipatória do imperativo de desfronteirização.

Publicada pela n-1 edições em 2021, com tradução de Sebastião Nascimento, a edição brasileira de Brutalismo dá sequência a Políticas da inimizade (n-1 edições, 2020) e Crítica da razão negra (n-1 edições, 2018), seguindo a cadência das publicações originalmente francesas tal como editadas pela La découverte (Brutalisme, 2020; Politiques de l’inimitié, 2016; Critique de la Raison Nègre, 2013). Os movimentos dos textos remetem a outros trabalhos do autor que se separa da teoria pós-colonial ao insistir em interrogações que se voltam sobre o si próprio, mais do que sobre o outro.1

Algumas passagens cruciais de Brutalismo apareceram antes em Necropolitics (2019), livro publicado pela Duke University Press, na série Theory in Forms, organizada por Nancy Rose Hunt e pelo próprio Achille Mbembe. O livro Politiques de L’inimitié é o texto de partida da edição estadunidense, à qual são adicionados dois capítulos centrais. Em Necropolitics, o terceiro capítulo corresponde ao artigo “Necropolitics”, originalmente publicado pela revista Public Culture, em 2003, e ausente na edição francesa de Politiques de L’inimitié. A ele segue o ensaio “Viscerality”, no qual o autor revisita suas próprias teses e a partir do qual traça linhas gerais de temas reapresentados em Brutalismo.

De “Viscerality”, o autor desdobra em “Fraturação” (capítulo 2) e “Animismo e visceralidade” (capítulo 3) algumas das lógicas do brutalismo que retomam sua discussão prévia — já indicada em “Necropolitics” — em torno do “Estado de segurança”, que implica um fantasmático “estado de insegurança”, produtores e produtos um do outro e de uma guerra contra certas populações que vivem entre nós, mas que não consideramos serem dos nossos. Agora, o autor se volta à generalização de uma “sociedade de segurança” numa ordem liberal em escalada, na qual “o capital se converteu em mundo […], se fez carne” (2021, p. 73), imbrincada em tecnologias de monitoramento constante que conformam uma geografia carcerária modulada pela computação digital.

Já não há fronteiras intransponíveis, no entanto o monitoramento constante que assinala quem pode ou não as cruzar faz com que “muitos de nossos contemporâneos encontrem nas fronteiras os limites da globalização” (2021, p. 75). A segurança se apresenta, então, como principal justificativa/meio/objetivo de uma aterrorizante “paz perpétua” do planeta, também como uma commodity cuja oferta está menos relacionada a uma suposta centralização do monopólio legítimo da violência do que ao controle e à distribuição de fluxos articulados a redes locais e transnacionais.

O brutalismo contemporâneo “do qual a pós-colônia é apenas uma das expressões — é o outro nome para aquilo que chamamos de ‘devir negro do mundo’” (2021, p. 214). A um de seus modos de operar o autor nomeia Fronteirização (capítulo 2) e é enfático ao retomar a fronteira como marco zero “da não relação e da negação da própria ideia de uma humanidade comum, de um planeta, o único que temos, que juntos compartilhamos e ao qual nos vincula nossa condição comum de passantes” (2021, p. 76). O problema não são refugiados ou pessoas em busca de asilo, mas as fronteiras, “tudo começa com elas e todos os caminhos levam de volta a elas” (2019, p. 97). Aqui, fronteiras não são estáticas nem equivalentes aos limites administrativos de um território. Mbembe considera que, “como um dispositivo ontológico, ela [a fronteira] agora opera por si só e em si mesma, anônima e impessoal, com suas próprias leis” (2021, p. 75). A fronteirização é o processo pelo qual “os poderes desse mundo continuamente convertem certos espaços em lugares intransitáveis para determinadas categorias de pessoas” (2021, p. 78; 2019, p. 99). Consiste em barrar e orientar fluxos indesejados, assinalando massas humanas que estão em lugares onde não deveriam estar, que devem ser banidas. Uma luta travada contra aqueles que cometeram o erro de se mover, uma verdadeira caçada que reorienta a violência perseguindo presas, que se assemelha às grandes caçadas de outrora e que faz parte de uma longa história de caçadas humanas.

Trata-se de uma forma de guerra contra a “própria ideia de mobilidade, de circulação, de velocidade, numa época que é justamente de velocidade, de aceleração e cada vez mais de abstração, cada vez mais de algoritmos” (2021, p. 79). Se por “‘brutalização’ deve-se entender, portanto, ‘selvagerização’, a internalização da violência da guerra que permitiria a aceitação de todas as suas dimensões, inclusive as mais paroxísticas” (2021, p. 46), não se trata necessariamente de fuzis, canhões, prisões, pois o brutalismo não se resume aos horrores da guerra, ele se embrenha no cotidiano, e “consiste na produção de uma sequência de coisas que, em um dado momento, conduzem a uma série de eventos fatais” (2021, p. 46).

O brutalismo opera por “punção e coleta de corpos” (2021, p. 53). Mbembe destaca o aspecto fantasmático que postula “excedentes populacionais” (introdução, capítulo 5) como ameaça que faz operar uma economia política dos corpos, “como uma imensa fogueira” (2021, p. 53), da qual corpos racializados são feitos matéria-prima, “ao mesmo tempo sua lenha e seu carvão” (2021, p. 53). Sendo assim, trata-se de uma termopolítica, pois o neoliberalismo, do ponto de vista de corpos racializados (confinados e imobilizados), é “um gigantesco dispositivo de bombeamento e carbonização. Como o menor, o ladrão de uma lata de cerveja em uma loja, muitos não têm outra fonte de renda além dos próprios corpos” (2021, pp. 53–4).

Ao tratar dos corpos-fronteiras (capítulo 5), o autor atualiza as formas como são geridas as pessoas (agora montes de carne) “em demasia”, destacando como desde o século XVI tratou-se de controlar a circulação de corpos estigmatizados como virulentos — migrantes, mendigos, vagabundos, desviantes do imperativo de comunidade e sedentariedade —, evacuando-os dos espaços próprios à vida, enviando-os a campos de batalhas, colônias penais, a postos de trabalho forçado em portos e arsenais, às galés. Os medos simultâneos de superpopulação e despovoamento, que moldaram o discurso ocidental acerca de matemáticas populacionais desde pelo menos o século XVII, atingem uma escala sem precedentes e estão no cerne do brutalismo. Presente desde o início da era moderna na Europa, a noção de “excedentes populacionais” acompanha a recusa de partilha da Terra, que no século XXI apresenta novas conformações, com a multiplicação de classes racialmente tipificadas e recolocação da questão sobre regulação populacional na agenda cultural e política do planeta. Mbembe segue Elsa Dorlin2 ao se referir ao neomalthusianismo contemporâneo enquanto prática de gestão de diferentes técnicas de esterilização social. A reativação de imaginários populacionais da modernidade também é referida pelo autor em termos de neonaturalismo, sustentado pela crença em “verdades fundamentais que seriam legitimadas pelo sistema da natureza” (2021, p. 159), bem como pelo desejo de endogamia. Em um momento em que todo lugar da Terra parece estar conectado em rede, as inibições vêm sendo suprimidas e a paixão narcísica se torna a chave do novo imaginário, isso suscita o que o autor chama “metafísicas do ‘lugar onde se vem’” (2021, p. 201).

Ainda desdobrando “Viscerality” e tangenciando “Necropolitics”, Mbembe situa clausura e expurgo lado a lado à fronteirização como parte do funcionamento das sociedades de segurança, destacando as tensões que emergem na transição “para um novo sistema técnico mais automatizado, mais reticular e ao mesmo tempo mais abstrato, formado por múltiplas telas — digital, algorítmica, numinosa” (2021, p. 80). À medida que se inicia o século XXI se dissolve a separação entre “a verdade do ser” e tecnologia, entre real e virtual, o sujeito se torna imagem, se reapresenta como uma série de corpos-imagens, produtor e consumidor de fluxos ininterruptos. Fonte de geração e de armazenamento de dados, “o sujeito se concebe como uma superfície na qual se registram uma imagem, diversas imagens, e elas não precisam ser consistentes” (2021, p. 97). Em meio à possibilidade de circulação ininterrupta das imagens-sujeito, — “o Sujeito fez-se imagem”, sintetiza o autor (2021, p. 95) — qualquer projeção é autocentrada e alinhada a uma expansão planetária pelo desejo de apartheid, decretação da diferença em uma época que se caracteriza pela tecnologização das fronteiras e pelo retorno dos campos.

Campos de refugiados? De deslocados? Abrigos? O único nome para o destino final de quem, longe de ser resgatado, é capturado tentando entrar na Europa não pode ser outro: campos de estrangeiros (capítulos 2 e 7). As fronteiras são “apenas a parte visível de dispositivos e instalações […], que surgiram em resposta à questão do que fazer com os fluxos de dejetos, isto é, com a humanidade excedente. […] As fronteiras e outras instalações também são plataformas de supertriagem. Os corpos-fronteiras compõem esses mundos de dejeto.” (2021, p. 158)

Ao tomar emprestado o termo brutalismo da arquitetura, vem à vista a matéria, sua plasticidade. A materialidade da brutalização se dá tanto como fronteira virtual, onipresente e nanotecnológica, como pela concretude de Lesbos ou Lampedusa. Novos tipos de espacialidade acompanham a movimentação de riqueza, comércio e edificações, e a lapidação de uma nova forma do humano, sujeito/objeto, “desmembrado entre vários corpos [de fruição], o corpo-máquina, o corpo-dispositivo e, principalmente, o corpo-imagem fabricado pelas novas tecnologias” (2021, p. 105).

A paixão narcísica que alinha uma nova psicologia das massas parece resumir tudo à autoapresentação e à autonominação, configurando um novo imaginário que tenta se livrar do inconsciente e reduzir a esfera pública a um lugar de representações impossíveis. Na era do capital financeiro globalizado, compassado pelas tecnologias digitais, o celular aparece como acontecimento estético decisivo, “ele se tornou mais do que um companheiro, é uma extensão do ser” (2021, p. 98). Se qualquer pensamento global se deparará com o signo africano, entendendo signo africano como “aquilo que sempre excede o que é dado a ver” (2021, p. 32), é porque o retorno do animismo se manifesta propriamente em um culto do eu e seus múltiplos duplos, animados pelas tecnologias digitais.

Quando situa a África no horizonte do planeta, Mbembe mantém em vista que “o paradoxo decisivo da história africana no capitalismo reside na tensão, praticamente não resolvida, entre o movimento e a imobilidade” (2021, p. 157). Ao olhar para a filosofia africana do movimento, pré-colonial, Mbembe coloca em xeque a “história universal” com centro na Europa e as metafísicas da substância, aproximando “as metafísicas africanas do devir” a uma lógica própria do mundo digital, que não busca a categorização e limitação hierarquizada do movimento.

A proposta de antimuseu3 apresentada na introdução é referência direta a “Este meio-dia abrasador”, capítulo 4 de Politiques de L’inimitié e capítulo 6 de Necropolitics, quando indica que um olhar para a história do mundo que seja inseparável da história da escravidão transatlântica nos convida a fundar o antimuseu, visto que inserir o escravo no museu como existe hoje consistiria na consagração do espírito do apartheid, dentro de regras de categorização, segregação e triagem. A função mumificante e fetichizante do museu acompanha tal lógica e pode ser que tenha sido necessária para a sobrevivência da sociedade, “assim como a função do esquecimento na memória”. Os objetos e as vidas em cativeiro, de ontem e de hoje, são testemunhas de algo inenarrável que se perdeu, do tributo pago pela África para essa sociedade, e o autor é certeiro em afirmar que não se deveria usurpar do escravo o poder de escandalizar, deve-se permitir que ele continue “a assombrar o museu tal como existe hoje por meio de sua ausência” (2020, pp. 186–87; 2019, pp. 171–72).

A proposta de desfronteirização, que acompanha o antimuseu, não consiste em um movimento de “se fechar em si mesmo, de se deixar invadir pela obsessão com o próprio lar, com o estar entre pares, com o em-si transcendental […]” (2021, p. 62); trata-se de abrir o caminho para o passante. A intenção em se livrar de uma barreira metafísica, rememorando que a criação de objetos visando ao automatismo não é um fato universalmente dado, possibilita deslocar o pensamento para uma política do em-comum, uma política do vivente (capítulo 8). Com as idas e vindas em rede dos ensaios apresentados em Brutalismo, pode-se, por fim, apreender que apenas o escândalo, aparições espectrais do intolerável e da magia provenientes dessa parcela daqueles “que são mantidos à parte — a parte à parte” (2020, p. 139) — que assombra a história europeia, pode ser uma prática radical que aponte para a possibilidade de desfronteirização.