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Delírios, sonhos e círculos, ou a desrazão tradutória de Donaldo Schüler1

Prefácio da nova edição de Finnicius Revém, tradução de Finnegans Wake

Daniel Nasser

Uma confissão, maio de 1976, após um curto hiato provocado por uma greve, Jacques Lacan inicia o décimo e último encontro de seu seminário intitulado Le Sinthome, dedicado a interpretar James Joyce e sua literatura, com as seguintes palavras:

Confidenciei-lhes, a greve me caiu muito bem. Não tinha vontade alguma de lhes contar nada porque eu mesmo estava embaraçado. Da última vez, estava tão enredado entre meus nós e Joyce que não senti a menor vontade de falar disso com vocês. Estava embaraçado, e, agora, estou um pouco menos, pois creio ter descoberto algo transmissível, […] alguma coisa que não é clara por si só — pois não é claro por si só que encontrei o …2

Como ler a embaraçosa confissão à luz da obra de James Joyce e, principalmente, às sombras de Finnegans Wake, o último, extremamente noturno e estranho romance do escritor irlandês? Por um lado, o psicanalista poderia simplesmente estar embaraçado, incerto e hesitante em relação à obra de Joyce e à “função” desta para com a psicanálise e, portanto, a interrupção teria sido boa, dando-lhe mais tempo para tecer o fio da meada de seus raciocínios. Por outro, poderíamos arriscar a dar mais sentido às palavras de Lacan, talvez, compreendendo-as como uma ação engenhosa que implicitamente ata seu embaraço a algo muito importante e necessariamente constituinte da experiência de confusão, enigma e incerteza presente na leitura das obras de Joyce; uma experiência de estranhamento que radicalmente se intensifica em seu último romance, ao ponto de alcançar a mania, o delírio e a desrazão. Lacan soube lidar com seu embaraço joyciano, atando-o a uma série de estranhos nós para refazer o próprio sentido da psicanálise (e de seu almejado fim), vindo justamente interpretar aquilo que Joyce, artisticamente, soube fazer com a sua própria desrazão. Não por acaso, a pergunta de Lacan que obliquamente flui através de todo Le Sinthome vem a ser: “Joyce era Louco?”.

Pergunta que de forma literal nomeia o sétimo3 e penúltimo livro de Donaldo Schüler sobre o escritor irlandês: Joyce era louco? lançado em 2017, também, pela Ateliê Editorial. Já o seu último livro sobre Joyce, até o presente momento, vem a ser esta nova edição revista de Finnegans Wake que se encontra em suas mãos. Um romance enigma que desafia a razão e sonha, tendo sido justamente delirantemente ressonhado e irracionalmente redesafiado por seu tradutor enquanto Finnicius Revém. Joyce, de fato, sonhou uma nova língua e linguagem incomuns para saber fazer com sua desrazão, o que nos leva à indagação se Schüler também precisou perder a própria razão para saber fazer em português brasileiro uma nova língua e linguagem completamente incomuns para que o delírio, agora, de Joyce-Schüler pudesse mais uma vez refluir. De outro modo, podemos dizer que a pergunta de Lacan re-volta: Teria Schüler enlouquecido para traduzir Finnegans Wake?

Seu livro de 2017, Joyce era louco?, talvez seja um dos mais fecundos relatos para alcançarmos tal resposta e, simultaneamente, navegarmos e naufragarmos, imergirmos e submergirmos, no fluxo onírico e labiríntico deste renovado Finnegans Wake. Talvez testando ou atestando a própria loucura tradutória, Schüler atravessa a pergunta de Lacan em uma ensandecida análise de Finnegans Wake e também de Ulysses e da própria vida de Joyce. São trazidos à baila, não apenas o Lacan de O seminário 23 — Le Sinthome, mas uma vasta e variada discussão acerca da psicanálise, arte e loucura, chegando a alcançar sanatórios brasileiros, mais próximos do próprio autor, com uma entrada na instituição “Casa Verde” do Alienista de Machado de Assis ou vestir a túnica bordada pela arte de Bispo do Rosário. No livro, somados a Joyce, à psicanálise, à literatura e à arte brasileiras há uma outra especialidade de Schüler, talvez a maior delas, pois o pensamento, a mitologia, a literatura e a filosofia da Grécia antiga,4 também, encontram-se com a desrazão, sendo tomados pela catarse dionisíaca, pela maníaca húbris, pela loucura trágica e pelo furor de mênades. Todas as ferramentas desse saber fazer que estão em Joyce era louco?, isto é, a obra joyciana, a psicanálise, a literatura, a arte e a cultura brasileiras, a mitologia e a literatura antigas e de outros tempos e, também, o próprio talento literário de Schüler5se fazem presentes nessa muito pessoal, complexa, rigorosa e delirante tradução de Finnegans Wake.

Sem dúvida ler Joyce era louco? nos ajuda a penetrar nesse enigma. Também podemos ler as numerosas “Notas de leitura” de Donaldo Schüler que capítulo a capítulo acompanham a presente tradução, notas que não visam explicar o romance, mas procuram em outras palavras recontá-lo, como se fossem um segundo sonho correndo em paralelo ao primeiro sonho. Há inúmeros caminhos para adentrar Finnegans Wake, por exemplo, a filosofia setecentista de Giambattista Vico, que é explicitamente invocada nas primeiras linhas do romance. Uma filosofia que, para se opor à “barbárie da reflexão” que havia se tornado a célebre razão toda explicada de Descartes, propõe, em lugar do conceito, a metáfora como base para erigir sua poética Ciência Nova, buscando também uma aproximação ao pensamento de selvagens e de crianças, traçando mitologias comparadas entre povos de diferentes épocas e lugares, vindo não mais a pensar em uma história linear e progressista, mas em uma circularidade onde povos e nações nascem, florescem, alcançam a maturidade e fenecem em ciclos de ascensão e de queda sem fim. Também poderíamos pensar na… Pare! Advertem os próprios autores: “Para estabelecer conexões [em Finnegans Wake] podemos recorrer à habilidade de especialistas. Mas não se busque em outro a firmeza que nos falta. Não se aguarde a aurora de visão plena”. Uma advertência presente nas “Notas de leitura” de Schüler (nota 11 na página 239) nos aponta o mais fecundo caminho para adentrar na ensandecida literatura de Finnegans Wake: simplesmente ler o romance sem desejar domá-lo ou compreendê-lo plenamente. Ou a advertência explicitada por Joyce quando perguntado se não haveriam níveis de significado a serem explorados no romance, ele responde “Não, não, é feito para você rir”.6

Antes de embarcarmos nessa risada que rejeita a uma visão plena, transparente ou toda explicada de seu texto, vejamos um pouco de sua história. O riso de Joyce-Schüler foi originalmente lançado de forma bilíngue em cinco volumes entre 1999-2004, tornando-se de imediato um verdadeiro evento nos meios literário e joyciano do Brasil. A despeito de sua enorme, radical e insana complexidade, ou talvez por causa desta, a publicação obteve enorme sucesso tanto da crítica especializada como de público, tendo esgotado as edições dos cinco volumes, vindo receber, dentre outras, as seguintes distinções: o Prêmio John Jameson, em 2000, em vista de sua significativa contribuição à difusão da cultura irlandesa no Brasil; o Prêmio APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) de tradução em 2003; o “Fato Literário” da Feira do Livro de Porto Alegre em 2003 e o Prêmio Jabuti (Câmara Brasileira do Livro) de tradução em 2004. O presente livro é a terceira edição revista por Schüler que, além de contar com significativas alterações em seu texto e um novo tratamento gráfico, agora traz o romance completo em um único volume e apenas em português. Contudo, vale lembrar que nas margens do texto da tradução seguem os números relativos à paginação da edição original standard inglesa, permitindo que o leitor possa, página a página, facilmente cotejar a tradução na brasileira língua dos sonhos de Schüler com o inglês sonhado por Joyce. A numeração lateral também nos permite localizar as inúmeras “Notas de leitura” do tradutor, notas que por si só possuem a extensão e dignidade de serem quase um livro à parte no interior desse livro.

“Notas de leitura” que, como dissemos, não almejam a uma visão plena e transparente do texto de Joyce e da própria tradução, mas nos permitem rir e fluir com esse incomum, noturno e enigmático romance. Inspirado em tais notas, propomos uma nova e estranha nota de leitura em que, talvez, se possa vislumbrar a complexidade do caráter enigmático e onírico da tradução e, ao mesmo tempo, tente responder à pergunta: “Schüler teria enlouquecido para traduzir Finnegans Wake?”. Incorreríamos em loucura ou cairíamos no nada se procurássemos encontrar essa resposta-nota não em um capítulo, nem em um parágrafo ou frase, mas em uma única palavra, mais ainda se, ao invés de escolher a palavra dentre as mais de seiscentas páginas do romance, tomássemos de cara a primeira palavra que vem abri-lo? riverrun é palavra a qual foi ressonhada em português como “rolarriuana”. Sim, abordaremos essa única e primeira palavra, deslizando pela sutileza de sentidos e enigmas que estão nela sobredeterminados, condensados e fundidos para tentar compreender a própria a loucura criativa que constitui a tradução de Donaldo Schüler.

ROLARRIUANA7, comecemos com um só R minúsculo de ROLAR, movimento circular e contínuo. Um minúsculo R, pois a última linha do livro se tornou célebre por não possuir ponto, as suas fluviais palavras finais do curso de um rio “a lenta a leve a leta a long a” fazem nos rolar de volta para esse R inicial, o fim re-volta ou re-flui para seu início, “finnicius”. Rolar sobre si mesmo, sem mais primeiras e última palavras, o romance emula a circular ruína-renascimento sem fim da humanidade. As circulares queda e ascensão de ciclos históricos, míticos, públicos, privados e subjetivos. Os ciclos históricos de Vico, o eterno retorno de Nietzsche, ciclos infernais, purgatoriais e celestiais de Dante, a queda de um muro, de Wall Street, de heróis e, principalmente, de cada e todo homem comum enfim.

O motivo da queda, um R a menos em seu fim: ROLA(-R). Não a da saudade da mulher pomba-ROLA que sabiamente voou, mas a forma, em fala popular, do phalo: a ROLA. Reflui nos meandros do livro o fato, a acusação, a suposição, a fofoca, o rumor do atentado da exibição pública de uma ROLA para jovens garotas em um parque, o que leva à queda de um dos talvez personagens principais do livro: o pai, Humphrey Chimpden Earwicker, HCE, o homem comum enfim que aglutina e reflui em si, uma série de heróis, escritores, santos, sábios, bêbados, Poter, Tim Finnnegan, Tristão, o primeiro Adão… O sentimento de culpa e da falha fálica, rumores de atentado, estupro e incesto perpassam o livro e o “Homem a Caminho Está” de sua queda.

Se cai um R, por outro, também sobe mais um, dois RRs agora, o som rouco rr rrrrrrr de uma onomatopeia na garganta. A queda, por outro lado, também, é a dilapidação da consistência da fala fálica, essa falácia, que agora desaba em sons que não mais respondem à ordem do pai. Som em si, sons puros e impuros em um labirinto de contornos musicais, uma tremenda confusão-criação sonora na escrita de incertas palavras, frases e páginas por todas as páginas do livro: alterações do ritmo, assonâncias, trocas de letras, aglutinações de termos sobre termos, criações de neologismos. A criação musical de novas palavras para expressar a experiência da fluidez do sonho, do delírio, do pesadelo, da alucinação e de sempre outro infamiliar sentido. Sons em estranhas ordens e significações assim como a tendência a desenvolver palavras onomatopaicas, por um lado, são uma particularidade um tanto comum aos que submergem na esquizofrenia e, por outro lado, ou melhor, em uma fluida continuidade com o lado anterior, tais estranhos sons, também, estão ligados a uma parte da psiquê comum a todo e qualquer humano que sonha: o inconsciente. Uma infamiliar onomatopoiesis enquanto a imitação de sons dos nomes de palavras conhecidas cujos nomes já são sons e cuja imitação de seus sons vem formar novas palavras jamais escutadas e concebidas, atravessando assonâncias em várias línguas, linguagens, culturas, tempos por meio da qual submergimos no sonho e inconsciente humanos. Nesse constante troca-troca de sons, o RR bem pode vir as ser o háhá de quem RIU. Trocadilhos sonoros e cômicos preenchem essa onomatopoiesis: o engenhoso humor da deformação sonora, gramatical e lógica da linguagem fazem fluir chistes por todo o livro. Aprendemos o caminho do chiste para o inconsciente por meio de Freud, cuja interpretação dos sonhos também perpassa todo o livro. Volta à memória a anedota de que o romancista quando perguntado se lera a obra do psicanalista, prontamente, com um chiste, respondeu que não foi necessário pois “Joyce é Freud”, tendo na ponta da língua que seus nomes ressoam o som de “alegria” em suas respectivas línguas. A cômica língua que alegremente gargalha e delira, e pela derrisão vem diluir e dissolver as rígidas ligações da reiterada consciência que ordena a todas as coisas, rir desta língua e linguagem ordenadoras, rir desse homem, rir do pai, rir do phalo.

No diluir da linguagem em risadas temos precisamente uma fluida fonética em que ouvir o RIU pode se transformar em ouvir o RIU[O], um rio corrente que não para de se metamorfosear ao simultaneamente transfigurar a tudo que carrega e atravessa. Para além dos ainda localizáveis fluxos de consciência de Ulisses e para além das suas transformações de estilo; neste último romance-rio, submergimos em afluentes de sonhos sem fim, afluentes de ensandecidas risadas e de ébrias palavras de um alcoólatra. O bar é o lar. Habitar um pub na forma de um barco ébrio que flutua e submerge em rios de whisky. Desequilibrados pela cachaça, homens caem, mas o álcool também é o antídoto à queda, é a água-benta que opera milagres e ressuscita mortos, o whisky que em bom brasileiro é cana da boa, é a aguardente, é o uisquibão que em gaélico, a original e quase esquecida língua irlandesa, vem a ser usquebaugh, uisce: água e beatha: vida. Água da vida que fecunda todo o romance em sua sintaxe e palavras fluidas, vindo a ser, também, a vida de um rio, o rio Liffey, Liffey de life de vida que atravessa e (de)forma a negra piscina da cidade de Dublin. Neste rio fluir, os fenômenos da natureza, também, confundem-se com as personagens do livro, o rio Liffey se torna a fluidez feminina, a mulher-rio, torna-se a personagem Anna Liffey.

Por fim, ANA, Anna Liffey, Anna Lívia Plurabelle, ALP, mas o livro-rio não tem fim, assim como a própria palavra não termina, mas reflui e se transforma. Anna Lívia é mudança, é a mãe da criação, é a matéria-prima de metamorfoses, é mãe das mães, é Eva. Não é apenas a confluência entre personagens e o rio que atravessa Dublin e o romance, mas, mais ainda, além dessas diferentes manifestações, Anna Lívia, principalmente, permeia todo o livro de Joyce enquanto sua infamiliar forma de escrita, ela é a própria linguagem metamorfoseante, fluida, cômica e delirante de Finnegans Wake. Anna Lívia, que vem a ser a autora de uma carta, programa e texto poético similar ao próprio romance: o “Mamafesto”, uma escrita mãe-mulher, ou “Mamafesta”, uma escrita em festa que rindo desconstrói a língua do pai. ANA em sua fluidez, também, é palavra palíndromo, de trás para frente e vice-versa e com um único N na plural e singular tradução de Donaldo Schüler. Por fim e começo, volta-se às origens gregas de seu tradutor, que opta por um único N, pois aná em grego é “de novo”, é repetição, re-volta, revém, é sonho que sonha a si mesmo dentro de um outro sonho, é finnicius que revém. Em ANA, a palavra, tal qual o romance, rola sobre si mesma, ROLARRIUANA.

Adentramos nessa palavra, primeiramente e sobretudo, na esperança de que ao menos uma incerta resposta acerca da poética desrazão do romance e de sua tradução possa ter sido vislumbrada. Contudo, há uma segunda razão. Essa nova edição revista, ou melhor, ressonhada, além de trazer significativas alterações em seu texto e um novo tratamento gráfico e editorial, tem como motivação ser o pontapé inicial de uma coleção joyciana na Ateliê Editorial. A coleção que justamente tem como nome a enorme, fluida e enigmática primeira palavra de Finnegans Wake recriada por Schüler que, agora, em simultâneo, vem a ser a primeira palavra do autor irlandês a ser traduzida em nossa COLEÇÃO ROLARRIUANA.

A opção por esse nome, além de uma homenagem ao trabalho de Donaldo Schüler, visa que a coleção como um todo se inspire no trabalho poético, crítico, musical, sonhador e delirante de sua versão de Finnegans Wake. A proposta é que afinemos as futuras traduções da coleção a partir desse precioso delírio inventivo, e isso não apenas para a polifonia metamorfoseante de Ulisses, mas também para as obras anteriores e mesmo as iniciais que aparentemente seriam menos experimentais. A partir da experiência radical desse último Joyce, ler, de trás para frente, o conjunto de sua obra, encontrando uma ligação entre seu fim e seu início, entre Música de câmara, de 1907, e Finnegans Wake, de 1939, em uma anacrônica recirculação de sons, sentidos e sonhos.

Nesse horizonte, Donaldo Schüler duplamente já se encontra na coleção, não apenas a inaugura e a inspira com essa tradução, mas o próprio Joyce era louco?, há poucos anos editado pela Ateliê, entra retrospectivamente, ou de trás para frente, como um dos volumes da coleção na categoria de escritos sobre James Joyce. Mais ainda, encontra-se triplamente, pois Schüler tem parte fundamental no segundo volume de textos traduzidos de Joyce na coleção que será uma nova edição centenária e a dezoito vozes de Ulisses. A COLEÇÃO ROLARRIUANA, em 2022, no centenário de Ulisses, por meio de uma tradução polifônica, celebrará dezoito vezes o romance, isto é, para cada um de seus dezoito episódios foi cuidadosamente selecionada — dentre as mais criativas e importantes vozes da literatura, das artes, da tradução e do universo de estudos joycianos espalhados por todo Brasil — a mais peculiar e precisa voz tradutória para alcançar em português as singularidades da tão radical, inovadora, densa, cômica, erótica e metamorfoseante prosa de Ulisses. Donaldo Schüler, em uma realização em tudo afeita ao sonho de Finnegans Wake, por sua vez, ficou encarregado de uma das mais complexas, extensas, ousadas e insanas tarefas dessa celebração, pois irá verter para o português as mais de cem delirantes páginas de “Circe”, episódio que se passa à meia-noite do romance e cuja técnica de escrita proposta por Joyce vem ser a alucinação.

Por fim, ou melhor, sem fim, para a imagem da capa desta nova edição de Finnegans Wake e para o ícone que identifica a COLEÇÃO ROLARRIUANA escolhemos dois “retratos”, ou quase, do escritor, realizados pelo artista e amigo pessoal de Joyce, o escultor romeno naturalizado francês Constantin Brancusi. Para a identidade da coleção, temos o desenho intitulado Signo de Joyce que, a despeito de sua quase abstração, ou talvez por causa dela mesma, tornou-se uma imagem amplamente conhecida do escritor. O desenho foi originalmente publicado em 1929 em Tales Told of Shem and Shaun: Three Fragments from Work in Progress acompanhando a publicação de fragmentos de Finnegans Wake quando este ainda era conhecido pelo nome de Work in Progress. Para a capa, escolhemos o relevo intitulado Retrato de J. Joyce, de 1928, composto por um disco de papelão e uma espiral em cobre, sendo uma obra muito menos conhecida, mesmo entre joycianos. O relevo permaneceu junto ao próprio Brancusi que a exibia no espaço principal de seu peculiar ateliê em Paris, em uma parede bem ao lado de suas célebres Colunas infinitas. A obra permaneceu com o escultor até a sua morte, em 1957, sendo, hoje, parte do acervo do Moderna Museet em Estocolmo.

Daniel Nasser

Além do impacto formal das imagens, elas foram escolhidas para ressoar na memória a histórica edição de Panaroma do Finnegans Wake, de 1971,8 que trazia fragmentos do romance transcriados pelos irmãos Augusto e Haroldo de Campos e portava, logo após a página de dedicatória, um detalhe do Signo de Joyce, ocupando uma página inteira. Um livro crucial e mais que inspirador para os estudos joycianos brasileiros, a própria tradução do título desta edição como Finnicious Revém advém desse trabalho dos irmãos Campos.

A escolha também propõe uma continuidade formal entre a capa da presente tradução e a identidade da coleção, lembrando que se o Retrato de J. Joyce talvez possa deixar de ser abstrato, isso apenas acontece quando é tomado em relação ao desenho de Brancusi. A espiral ciclópica do desenho — uma possível referência à grossa lupa a cobrir um dos olhos de Joyce ou ao seu tapa-olho a ocultar a vista glaucômica — re-volta na espiral em cobre do relevo, em certo sentido reelaborando uma estranha figuração labiríntica e circular de Joyce. A continuidade por espirais faz refluir a imagem da capa desta edição de Finnegans Wake para o conjunto da coleção, reiterando o forte desejo de continuidade desse trabalho onírico, ensandecido, noturno e brilhante de James Joyce e Donaldo Schüler para COLEÇÃO ROLARRIUANA como um todo, em sonhos mais uma vez circulares.