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Hora de uma “quarta via”? — Radicalizar o debate, radicalizar a democracia

O sonho de Tatlin e o futuro perdido,
Guilherme Peters.

Trabalho composto por uma imagem da maquete referente ao Monumento à Terceira Internacional, realizada através de um processo de oxidação em chapa de ferro, a chapa está conectada a um circuito elétrico que alimenta um motor elétrico que gira seu eixo uma “boneca russa”. A superfície da chapa se mantém eletrocutada enquanto o trabalho estiver montado, se caso a chapa for desligada o circuito todo para de funcionar. O Monumento à Terceira Internacional, também conhecida como Torre de Tatlin, teria sido uma construção monumental idealizada e projetada pelo artista plástico e arquiteto russo Vladimir Tatlin. O monumento, porém, nunca chegou a ser executado em escala real por falta de fundos, tendo sido construídos apenas modelos reduzidos.

As expectativas de dar fim ao pesadelo Bolsonaro parecem concentrar-se, mais e mais, nas eleições marcadas para outubro de 2022. A inércia do calendário e das pesquisas de opinião parece pesar, como nunca, sobre as correntes que em tese seriam capazes de dar resposta consistente à miséria econômica, política e ideológica do país.

Parece possível, sem dúvida, derrotar Bolsonaro nas eleições presidenciais. Bem mais difícil é derrotar o bolsonarismo. E são praticamente impensáveis, no curto prazo, as chances de algo que vá além de uma aliança entre lulismo, centro-direita evangélica, empresariado, capital financeiro e oligarquias regionais.

Uma frente desse tipo pode ser instrumental para uma vitória contra o extremismo bolsonarista. É preciso, contudo, apontar para mais longe.

O estado de desmobilização e perplexidade hoje presente na esquerda não remonta apenas ao choque representado pela eleição de Bolsonaro em 2018. Pouco a pouco, uma atitude defensiva e acomodatícia tomou conta da maioria de nós.

É impressionante como, apesar das vantagens do sistema em dois turnos, a própria esquerda resiste à proposição de uma pauta de mudanças substantivas do sistema social. Ao mesmo tempo em que se insiste em venerar os desastres autoritários de Cuba, Nicarágua e Venezuela, prevalece a atitude da hesitação e da desconversa sobre assuntos que, em outros países, sequer são exclusivos dos setores progressistas.

Por que tão poucos candidatos e políticos brasileiros, por exemplo, se dispõem a defender o direito ao aborto? O caso é emblemático do temor profundo de se parecer “radical” e “divisivo” nos momentos de disputa eleitoral; o comportamento se repete em praticamente todos os problemas de fundo existentes na sociedade brasileira.

Por que não apresentar propostas econômicas que contemplem o endividamento das famílias de baixa renda, fazendo recair sobre o sistema financeiro, e sobre os que dele se beneficiam, o custo de um ajuste inevitável?

Que iniciativas estão em pauta para enfrentar o escândalo da desregulamentação do trabalho temporário e terceirizado?

A questão da desapropriação de imóveis desocupados para moradia já conhece, graças ao movimento dos sem-teto e a lideranças como a de Guilherme Boulos, uma presença real no debate político.

O sonho de Tatlin e o futuro perdido (detalhe), Guilherme Peters.

Não se vê a mesma disposição, mesmo entre seus aliados, para tocar em outros pontos, certamente antipáticos para as classes médias, mas de urgente resolução para a população jovem e negra das periferias. Até quando a polícia brasileira será torturadora, racista e assassina? Quando será desmilitarizada?

Continuaremos sem propor, no debate eleitoral, a revisão da Lei da Anistia? A prudência das forças democráticas e de esquerda no trato da questão militar não teve outro resultado que não o de alimentar a arrogância, o autoritarismo e a estupidez presentes nos quartéis. Que Exército queremos? De que Forças Armadas precisamos? E quanto estamos dispostos a pagar pela chantagem, velada ou não, a que recorrem?

Quanto o Estado perde ao sustentar, pela renúncia a impostos, os planos hospitalares da classe média ou os benefícios milionários ao setor industrial — enquanto deixa de investir em saúde básica e tecnologia?

Quem se afirma favorável a uma reforma tributária sem concessões, e se recusa a prosseguir na mentira de que não é possível aumentar os impostos de ninguém?

Por que uma sociedade laica e diversa convive com uma televisão que se viu sequestrada pelo charlatanismo religioso e pelo elogio das operações policiais?

São raros os políticos que defendam a liberação das drogas. Ou a criminalização severa dos abusos do agronegócio, rompendo com uma aliança de conveniência política que significa apenas destruição do meio ambiente e morte para os povos indígenas.

Ou ainda o fim das desigualdades no ensino fundamental e médio — determinando, por exemplo, a obrigatoriedade de bolsas para estudantes de baixa renda nas escolas particulares.

Não se trata de defender a radicalização em si mesma. Os erros calamitosos da retórica e das práticas “revolucionárias” da esquerda não podem ser esquecidos. Tampouco se trata de sonhar, para já, um futuro que está para ser construído democraticamente, passo a passo. Mas a democracia pressupõe, no mínimo, a apresentação de alternativas claras, sua negociação e seu debate.

Não é por acaso que, não só no Brasil, o sistema democrático se enfraquece. Aposta-se, mais uma vez, na eliminação das diferenças e no ocultamento dos problemas a enfrentar. O lulismo disputa com a “terceira via” um lugar de conforto fisiológico no enfrentamento a Bolsonaro. Não parece capaz de enfrentar as raízes do bolsonarismo. Eis uma tarefa mais longa e difícil — para a qual, sem dúvida, uma “quarta via” terá de se articular.

A realização de eleições primárias para indicar um candidato de esquerda, com vistas à composição de uma frente eleitoral democrática e progressista, seria um caminho nessa direção — para o qual Rosa está pronta a contribuir.