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Um dueto para pensar com os ouvidos

Resenha do livro A potência das fendas, de Flo Menezes e Vladimir Safatle, São Paulo, n-1, 2021

Daniel Nasser

Sabemos que Schoenberg incentivava seus alunos a ouvir cada obra como se ela estivesse sendo composta naquele exato instante. O ouvinte deveria abandonar a “cômoda satisfação” da contemplação passiva e buscar apreender e compreender o sentido (nos vários sentidos) do discurso musical, percebendo suas escolhas, desvios, concessões, novidades, coerências e incongruências. Essa atitude, ao mesmo tempo rigorosa e libertadora, acabou ganhando corpo na expressão “pensar com os ouvidos”, transformada em conceito nos escritos musicais e filosóficos de Theodor Adorno.

Há uma importante dimensão ética no esforço de “pensar com os ouvidos”: o reconhecimento de que, no conturbado e fugidio passar de cada tempo, nenhuma voz está só. Como lembra Ernst Bloch, a música diz “nós”, mesmo quando parece enfatizar o “Eu”. Por essa razão, o contraponto com os contemporâneos, emoldurado pelo passado e pelo futuro (não apenas da música) deixa de ser uma simples escolha, tornando-se uma obrigação do pensamento crítico e também da criação artística.

O livro A potência das fendas, publicado este ano pela editora n-1, responde a esse desafio, inserindo-se numa longa tradição de “conversas sobre música”. Dois amigos professores, Vladimir Safatle, filósofo e compositor, e Flo Menezes, compositor e filósofo, travam um diálogo aberto e instigante sobre questões que ultrapassam em muito os limites da abordagem da música como objeto de pesquisa acadêmica.

Não por acaso, ambos estrearam obras interessantes nos últimos anos. Pouco antes da pandemia, Flo Menezes apresentou no Theatro São Pedro a NeutrinÓpera Ritos de perpassagem, uma suma grandiosa e caleidoscópica de sua longa trajetória de aproximação entre música eletroacústica, filosofia da arte, carnavalização concretista, ciência e política. Já Vladimir Safatle lançou este ano um disco, reunindo em um programa muito bem articulado suas obras recentes para piano, voz e variados conjuntos de câmara. O confronto entre as duas obras ilumina pontos importantes do debate entre os dois amigos: matérias e formas diferentes testemunham modos distintos de pensar os problemas musicais que, como lembra Adorno, se impõem aos compositores a cada compasso.

O livro convida o leitor a participar da conversa, por isso talvez seja melhor apresentar esse diálogo com uma analogia sinfônica. Em seus cinco movimentos, alguns temas clássicos da crítica musical, como a relação entre música e sociedade ou a dialética entre construção e expressão, são articulados em sucessivas variações, enquanto eventuais discordâncias sobre pontos específicos e obras particulares configuram cadências e transições sempre inesperadas. Cabe ao leitor ouvir as diversas músicas citadas (elencadas no apêndice do livro) e acompanhar a trama de conceitos que, na boa tradição crítica, ecoa problemas musicais concretos.

O primeiro movimento da conversa recupera, no debate sobre a fantasia como forma, a histórica tensão entre música absoluta e música programática. Ao discutir como as obras lidam com as citações, Flo argumenta que todo texto é um intertexto, citando Luciano Berio: “para ser criador, o gesto precisa destruir alguma coisa”. Não sem ironia, a “desconstrução permanente” seria o resultado de uma prática marcada pela constante intertextualidade, que ao final configura uma “metamúsica”. Sua ópera, um original caleidoscópio de citações inter-relacionadas, é um exemplo disso, tecendo e rompendo as teias do sentido (utilizadas explicitamente como imagem) pela sobreposição de citações enunciadas e contrastantes. Safatle, por sua vez, ressalta outras consequências da interpolação de citações: o “contágio” entre as obras não deveria prescindir da busca pela autonomia, marca da liberdade do compositor diante das pressões da convenção e do que existe de desgastado, imposto e falso. Aqui há uma dialética importante, já tematizada por Adorno nos debates de Darmstadt: o controle absoluto dos materiais não significa a recusa completa da heteronomia. A autonomia radical de uma obra equivaleria à sua mudez, já que seu “material” (incluindo matérias e formas sonoras historicamente desenvolvidas) pressupõe a abertura para o Outro. Esse aspecto liga novamente o decurso musical à história social, na antecipação pela arte de modelos possíveis da articulação entre o controle e o acaso, entre a autonomia do momento individual e a ordem do todo. Entrando na conversa, lembro aqui a passagem em que Alban Berg, em seu dodecafônico Concerto para violino, tensiona a forma rigorosa para citar um coral de Bach (“Es ist genug”), intensificando o luto pela “morte de um anjo”.

Daniel Nasser

O segundo movimento trata do tempo musical: a temporalidade interna de uma obra instaura, problematiza ou decompõe o tempo? O disco de Safatle, intitulado Tempo tátil, é uma criativa reflexão sobre o assunto. Suas peças, e a sequência na qual elas são apresentadas, buscam criar “um tempo de emergências de rupturas de estrutura”. Não por acaso, o Allegretto da Sétima Sinfonia de Beethoven abre o disco, como contraponto contrapontístico (ao mesmo tempo fúnebre e esperançoso) a um texto de Safatle que ressalta a importância de insuflar (a imagem do vento tempestuoso é essencial tanto aqui quanto no Beethoven revolucionário) o “solfejo de nossas filhas”, já que “o tempo perdeu sua costura” e “os ossos do tempo se quebraram, se calcificaram”. Se, como diz Vladimir, “até do bater de dentes se faz música”, cabe pensar (como nas obras seguintes do disco), no tempo contrário ao espaço liso, nos “gestos ao piano” e nos atos de “instância e explosão”. O objetivo seria romper com os hábitos naturalizados de escuta, “tentando liberar o tempo do mundo”. A resposta de Flo retoma o debate sobre a ruptura entre a extensão narrativa da geração de Mahler e a concisão extrema de Anton Webern. A questão lançada por Schoenberg ainda perdura, repensada pelos compositores do pós-guerra: por que devemos ouvir, na música, o tempo em uma única direção? Afinal, ouvir é pensar: o ouvido deve aprender a reconstituir retrospectivamente as diversas relações e inter-relações: uma música deveria poder ser ouvida como um todo, de cima a baixo, de trás para sempre. Nada mais longe do que ocorre em nossos hábitos de escuta, “calcificados” pela indústria cultural. Nos Ritos de perpassagem, uma cena de futebol, projetada na tela do palco, transforma a plateia em torcida. Num achado teórico, Flo exalta na criação a necessária irreverência, que “dribla e destoa”. Romper as expectativas do tempo imposto e, lembrando Adorno, introduzir vida no “tempo coagulado”: também aqui a música mimetiza o gesto histórico e intempestivo capaz de conduzir a um novo mundo.

Chegamos enfim ao terceiro movimento, que coloca em primeiro plano um tema cujos motivos atravessam toda a conversa: a relação da criação musical com a sociedade e a política. Como lembra Safatle: “a questão fundamental é saber qual o ponto de conexão entre a produção estética e a produção do mundo”. No âmbito da música, essa questão tem sido respondida de várias formas, sempre com ênfase nas grandes obras do passado. Reconhecer esse “ponto de conexão” nas obras compostas após a segunda metade do século XX é, no entanto, um desafio ainda aberto. Safatle aposta na atenção adorniana à mediação interna: o desdobramento histórico das formas, nos melhores casos, gera “uma imagem do mundo que virá, de um mundo que pode ser paradoxalmente produzido através da escuta do que recusa as formas do mundo social”. Preservando sua autonomia, as obras relevantes expressam e superam, nos problemas técnicos que enfrentam, as contradições externas da sociedade. Um novo capítulo do longo debate sobre o engajamento musical que, desde Adorno e Eisler, torna-se produtivo apenas com análises concretas, não com posicionamentos abstratos. Safatle apresenta seus exemplos, enquanto Flo oferece uma resposta diferente ao dilema: é possível um engajamento explícito da obra, sem que ela abandone sua pretensão à autonomia. Lembrando novamente algumas obras de Luciano Berio (o Coro sobre textos de Pablo Neruda, ou a grandiosa Sinfonia, que aproxima Lévi-Strauss, Martin Luther King e Samuel Beckett) Flo conclui que “na grande obra, há sempre certa dimensão semântica que a projeta no palco das significações do mundo, isto sem falarmos de obras que, sem deixarem de ser radicais em suas especulações as mais profundas com relação a elementos técnicos da música, imbuem-se de caráter francamente, explicitamente, engajado”. Seria interessante, ao pensar as composições recentes dos dois debatedores, buscar perceber o quanto a questão aparentemente teórica do engajamento torna-se um componente da prática musical, diante do grave momento político que vivemos.

O quarto movimento podia ser um Scherzo, mas é assunto sério para nós brasileiros: o que significa compor música “erudita” no Brasil, periferia do capitalismo? A questão toca fundo em Flo Menezes, frequentemente apresentado no exterior como “compositor brasileiro contemporâneo”, expressão cujos sentidos extrapolam em muito o mero atestado de origem. Flo argumenta, citando a música de Bartók, que diversas obras inventivas estão baseadas em alguma tradição popular, mas assim mesmo conseguem romper os limites estreitos das fronteiras tradicionalistas. Seria o caso, então, de abandonar a distinção entre “centro” e “periferia”? Vladimir discorda, lembrando que esses conceitos ainda fazem sentido para representar a lógica geral de produção do capitalismo, tanto no plano econômico quanto no cultural, aliás interligados. A questão divide os amigos, que não desconhecem o caráter ideológico, impulsionado pela indústria cultural, de expressões como “material popular” e “forma nacional”. Uma pena que, aqui, os argumentos se concentrem muito mais na discussão da obra de Bartók e Schoenberg do que no extenso debate brasileiro sobre o assunto. Elevada a problema central por Mário de Andrade e desenvolvida em inúmeras polêmicas na segunda metade do século passado, a “questão nacional” não pode ser ignorada yao se pensar a música no Brasil. Uma discussão teórica também presente, por afirmação ou ausência, nos eventuais elementos “brasileiros” das obras dos dois interlocutores.

Daniel Nasser

O Finale explicita outra importante discordância entre os dois amigos: enquanto Flo defende seu conceito de “música maximalista”, exemplificado em obras amplas e complexas que exigem uma reformulação radical dos hábitos de audição, Safatle reafirma sua opção pelo redimensionamento das formas e materiais, em busca de uma música “informal”, na qual a dialética entre controle e liberdade possa encontrar expressão sonora. O debate ganha corpo quando Safatle elogia a “redução ao essencial” das obras de Morton Feldman (a obra citada é Rothko Chapel, mas poderíamos lembrar também as peças sobre e para Samuel Beckett), enquanto Flo alerta para o perigo da banalização de simplificações padronizadas, como as que ocorrem no Minimalismo americano.

Após acompanhar esse denso contraponto, o leitor pode apreciar melhor os contrastes entre a NeutrinÓpera de Flo e as curtas peças de Safatle. Também aqui o caminho do meio não leva a Roma, para citar uma célebre frase da Filosofia da nova música de Theodor Adorno. Numa coda cordial e sincera, Safatle defende a dissonância como o princípio ético que norteou esse “belo e raro” diálogo. A potência das fendas, em retrospecto, não promete nenhuma conclusão, mas nos incentiva a “pensar com os ouvidos” as alternativas para lidar com os problemas que a história nos impõe, nas obras, nas conversas e na vida.