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Paulo Arantes pensador da desconstrução

Abertura, Débora Bolsoni

Durante sua trajetória, primeiro na França, depois nos EUA, o filósofo franco-argelino Jacques Derrida se empenhou em explicar ― em grande medida, sem sucesso ― a diferença entre desconstrução e destruição, respectivamente, do francês déconstrution e do alemão Detruktion. Leitor de Hegel, Husserl e Heidegger, interlocutor da fenomenologia, Derrida propõe o termo desconstrução na esteira da Detruktion heideggeriana, termo com o qual o filósofo alemão havia retornado aos gregos para tentar encontrar o momento originário do esquecimento do Ser. Derrida formou-se em filosofia na França entre o final dos anos 1950 e o início de 1960, trabalhando em torno da fenomenologia de Husserl, o principal mentor de Heidegger, sob a orientação de um hegeliano, Jean Hyppolite. Na Detruktion da metafísica, Heidegger se dedica a interrogar os pressupostos metafísicos que, por equívoco, teriam atribuído características ontológicas ao que deveria ser pensando no campo ôntico, formulando a proposta de diferença ôntico-ontológica cujos desdobramentos também poderão ser localizados na noção derridiana de différance, homofonia de différence de difícil tradução. “Diferindo”, “diferenciando”, “adiando” são algumas das possibilidades de sentido do termo, e todas eliminam um dos aspectos mais importantes da diferença entre différance/différence, a indistinção entre as palavras faladas.

Incansáveis foram as vezes em que Derrida explica que o termo desconstrução foi um modo de traduzir Detruktion do alemão para o francês retirando, no entanto, o caráter de destruição contido no termo original. Tratava-se mais de escavar as camadas sedimentadas da metafísica do que retornar ao ponto originário que Heidegger perseguira. Foi preciso repetir, também à exaustão, que desconstrução não era uma disciplina ou um método ― uma hiper-hermenêutica, por exemplo ― e, portanto, não poderia ser replicado, embora Derrida também reconheça que pode haver regularidades na maneira de formular um certo tipo de questão de estilo desconstrutivo.

“A desconstrução acontece no mundo” é uma das formulações de Derrida para evitar o que acabou por tornar-se inevitável: o uso do verbo “desconstruir” como sinônimo de destruir, desmontar, desfazer como uma ação deliberadamente empreendida por um sujeito. Tomo como sinal da incompreensão do termo uma entrevista feita com ele pelo Le Monde em 1994 que permaneceu inédita até 2004. A publicação póstuma se deu em edição especial do jornal dez anos depois, por ocasião da sua morte. Ali, entre as homenagens mais ou menos óbvias, o jornal reproduz a resposta à pergunta: “O que é desconstrução?”, formulada pela enésima vez desde o termo ter sido usado por Derrida, ali por 1966, quando escrevia Gramatologia. Destaco alguns trechos da resposta: “É preciso entender esse termo, ‘desconstrução’, não no sentido de dissolver ou destruir, mas de analisar as estruturas sedimentadas que formam o elemento discursivo, a discursividade filosófica dentro da qual pensamos (…) A desconstrução não pode ser uma disciplina ou um método. Não é uma técnica, com normas ou procedimentos. Se eu quisesse dar uma descrição econômica, elíptica da desconstrução, eu diria que é um pensamento da origem e dos limites da questão ‘o que é?’, que domina toda a história da filosofia (…)”.

Considero legítimo supor que, no momento da entrevista, início dos anos 1990, a pergunta estivesse motivada pela ampla aceitação que sua filosofia vinha recebendo nos EUA há pelo menos uma década, especialmente em Yale, uma das universidades norte-americanas em que as teorias da desconstrução foram mais bem recebidas ― sobretudo no âmbito dos estudos literários ― e de onde se irradiaram. Uma primeira onda de popularização do termo pode ser percebida, por exemplo, no título do filme Desconstruindo Harry, dirigido por Woody Allen em 1997. O termo faz ali uma de suas primeiras passagen do vocabulário filosófico para a cultura pop.

No Brasil, mais especificamente no Departamento de Letras da PUC-Rio, Silviano Santiago é um dos responsáveis por acolher o pensamento da desconstrução e publicar, ainda em 1976, o Glossário Derrida (Editora Francisco Alves), redigido por muitos de seus orientandos e orientandas que viriam a se tornar, também, pesquisadores de Derrida. No início dos anos 2000, será no Departamento de Filosofia da mesma PUC-Rio que Paulo Cesar Duque Estrada organizará um primeiro grupo de orientandos e orientandas em Derrida, onde comecei minha formação filosófica. Primeiro como aluna e depois como professora, segui à risca o roteiro derridiano de recusar o uso vulgar do termo desconstrução como sinônimo de destruição, demolição, desmonte. O que incluiu, muitas vezes, a crítica ao uso do verbo desconstruir, sempre ancorada na ideia de que, do ponto de vista filosófico, desconstrução é uma abordagem, uma forma de pensamento, não um ato deliberado, nem um método, com argumenta Derrida.

Dito tudo isso, chego então ao que motiva minha escrita: a publicação de Formação e desconstrução ― uma visita ao Museu da Ideologia Francesa (Editora 34, 2021), do filósofo Paulo Arantes, e a sequência de debates dos quais ele tem participado para lançar e discutir o livro. Reunião de artigos inéditos, propositalmente não situados no tempo, Formação e desconstrução tem servido para que Arantes argumente que a incidência do uso vulgar do termo desconstrução na política, em especial pela alt-right, termina por comprovar que o pensamento da desconstrução se prestava a ser apropriado por discursos do tipo “pós-verdade” no qual estão assentadas grande parte das lideranças políticas de extrema direita.1

As provocações de Arantes foram a confirmação de um bom encontro, já que, em outro lugar,2 venho trabalhando com sua filosofia, principalmente a partir do tema da brazilianização do mundo, tal qual proposta por ele no início dos anos 2000, e sua possível articulação com o devir-negro do mundo pensado por Achille Mbembe em Crítica da razão negra (N-1 Edições, 2018). Em pelo menos um aspecto, discordo do modo como Arantes parece pretender localizar na disseminação do pensamento da desconstrução o fenômeno da pós-verdade e de seus piores usos pela chamada alt-right, a extrema direita alternativa que foi expandindo seu poder a partir do início do século XXI. De minha parte, desde 2016, quando o Dicionário Oxford escolheu “pós-verdade” como a palavra do ano, sua possível relação com o pensamento da desconstrução me inquieta. O presidente Donald Trump havia sido eleito, alçado ao poder pelas estratégias da alt-right (uma das palavras finalistas no dicionário no mesmo ano). Com o prefixo “pós”, consolidava-se a ideia de que, se a verdade foi “desconstruída”, estaríamos então lançados ao vale tudo da pós-verdade.

Tenho desde então me valido do argumento da coincidência, o mesmo usado por Luc Boltanski e Eve Chiapello em O novo espírito do capitalismo (WMF Martins Fontes, 2009). Explico: na pesquisa que os sociólogos franceses fizeram ao longo dos anos 1990, eles localizaram a apropriação, por parte das grandes empresas e organizações, dos valores libertários das manifestações de Maio de 1968, como liberdade, flexibilidade, quebra de hierarquias e fim das instituições. É o que chamam de coincidência: na sua infinita plasticidade, o sistema capitalista se aproveitou de tudo aquilo que emergira como signo de protesto para fazer valer o que chamam, ecoando Max Weber, de “novo espírito do capitalismo”.

A ideia da coincidência me parece interessante justamente por desprezar qualquer relação de causalidade, de modo que possamos analisar as possíveis consequências do pensamento da desconstrução sem precisar aderir a nenhum tipo de julgamento moral em relação ao que Arantes chama, não sem uma imensa dose de ironia, de “museu da ideologia francesa”. Num ponto importante estamos de acordo: é preciso pensar, analisar e refletir a respeito das consequências da tomada, pela extrema direita, “da ausência de fundamentos para a clausura da metafísica da presença” ― vislumbrada por Derrida em 1967, quando publica Gramatologia ―, como uma espécie de vale-tudo do qual decorre muito das perversões das fake news, do descrédito à ciência, do globalismo como teoria e assim sucessivamente.

Assim como Arantes, posso continuar procurando explicações, ainda que não definitivas, para o vale-tudo ter colado tão bem no Brasil. Primeiro, somos o país do vale-tudo desde sempre. Aqui reencontro com o tema da brazilianização do mundo tal qual proposto pelo filósofo da USP nos anos 2000 e ofereço a minha própria interpretação do problema da “formação e desconstrução”: a sociedade brasileira não chegou a ser configurada na “clausura da metafísica da presença” porque sempre estivemos mais ocupados em enclausurar pretos, pobres, comunistas e outros “restos ontológicos” do que em nos construir como sociedade, de modo que a desintegração social a que assistimos hoje é assustadora, mas nem surpreendente nem efeito de uma desconstrução.

Um detalhe não pouco importante é que parte da bibliografia produzida para pensar a relação entre alt-right, desconstrução e pós-verdade está editada nos EUA e serve pouco ao contexto brasileiro. Refiro-me, por exemplo, ao ótimo livro da jornalista Michiko Kakutani, A morte da verdade: notas sobre a mentira na era Trump (Intrínseca, 2018). Enxergo ali pelo menos dois problemas: o primeiro, a ênfase na relação de causalidade a que já me referi. O segundo tem menos relação com o livro em si e mais com o fato de que, no Brasil, as estratégias de “desconstrução” da extrema direita encontram solo mais fértil em função de outro termo do título do livro de Arantes: “formação”, muito presente nas discussões do filósofo uspiano, cuja obra, em parceria com a companheira, Otília Beatriz Fiori Arantes, acaba de ganhar um acervo digital.

Com isso quero dizer que os processos de destruição a que estamos sendo submetidos só podem ser apresentados como “desconstrução” como farsa, já que carecemos de formação que, digna desse nome, venha a ser “desconstruída”. Nos exemplos mais recentes, como o incêndio que destruiu o Museu Nacional e a Cinemateca Brasileira, em São Paulo, há destruição desde o momento em que há descaso com a formação ― de história, de acervo, de memória ou de qualquer elemento que venha a constituir unidade e significar identidade.

Já no incêndio da estátua de Borba Gato se poderia dizer que há desconstrução, no sentido mais filosófico do termo, na medida em que, em vez de formular a pergunta “o que é?”, o ato faz ecoar a questão de Achille Mbembe: o que fazer com os monumentos históricos que encarnam, na sua estética monumental, a violência colonial? Como se pode ler no ensaio de Mbembe traduzido na revista Rosa, sua proposta não é incendiar, mas, se eu quiser seguir o vocabulário derridiano, desconstruir. Identifico no filósofo camaronês grande afinidade com Derrida, se pudermos entender a ressignificação das estátuas como desconstrução de camadas do passado que foram sendo inscritas na história monumental, tal qual pensada por Nietzsche e relida por Walter Benjamin (respectivamente, “Segunda consideração intempestiva” e “Sobre o conceito de história”). Ora, nada mais propício ao “tempo do fim” do qual se ocupa Arantes do que acontecimentos que arrancam seu caráter de novidade olhando para o passado. Se a desconstrução acontece no mundo, é em grande medida porque a desconstrução só encontra condições de possibilidade de acontecer no mundo do fim do mundo.

Para terminar, cito um exemplo recente ocorrido numa entrevista da senadora Marina Silva concedida à revista Rosa. Diversas vezes, Marina se valeu do termo desconstrução para se referir aos ataques desferidos pelo PT contra ela durante a eleição de 2014. Ora, ali houve destruição ― de uma mulher, de uma carreira, de uma reputação. Nada justifica o uso do termo desconstrução porque nem seu sentido filosófico nem seu sentido vulgar são adequados para descrever a violência da qual a então candidata foi alvo. Talvez ainda tenhamos que, como Derrida, nos ocupar da diferença entre destruição e desconstrução, de modo que, no “mundo coberto de alvos” ― para fazer ecoar O mundo como alvo, título de outro livro recente de Arantes, publicado em e-book ―, uma das tarefas seja diferenciar o que construir, o que destruir e o que desconstruir.