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Para um corpo que está só

Marco Noreña

María Gómez Lara é poeta desde que descobriu a poesia (não lembro a idade certa, mas ela me contou). Criada em Bogotá apesar do frio, foi levada cedo para o exílio durante a Guerra Civil colombiana, quando sua mãe, a jornalista Patricia Lara, e seu pai, o então procurador Alfonso Gómez Méndez, precisaram deixar o país depois de extensivas ameaças de morte. Ela me contou que gostava dos marzipãs que sua mãe trazia ao voltar para casa, em Viena. Assim que chegamos ao apartamento que dividimos por um mês em Massachusetts, eu acabei comendo o marzipã que ela acabara de comprar em nome de sua memória afetiva — felizmente, ela me perdoou.

A faísca e o epicentro de seu último livro, El lugar de las palabras, se deram depois do encontro com o fim inesperado do verbo e da vida. María foi diagnosticada com um tumor no cérebro, justamente na região que dá ao humano o dom da palavra. Em “Para um corpo que está só”, a tentativa de transpassar a experiência do encontro com o próprio corpo castigado, mas infinitamente potente, está entre a palavra e a pele. O poema que traduzi é uma ode ao corpo que sobreviveu à domesticação e à violação do patriarcado, encontrando refúgio dentro de si.

Se você quiser avistar a poeta de longe, procure uma flor colorida num cabelo volumoso de grossos cachos. Tenho desconfiado que eles guardam as histórias que fluem em suas palavras.


Para um corpo que está só

I

porque meu corpo está só
terei que rodeá-lo

abraçar meus joelhos
amarrar meus cabelos
preparar minha cabeça para que a abram

porque com meu cérebro estou só

estou só com minhas mãos
estou só com meu medo
estou só com minhas costas

estou só
com estas pontadas de dor
que já não sei se invento

já não sei se me dói a consciência
mas as sinto como agulhas
me atravessando mil vezes

será que vão me abrir com uma agulha?

II

tantas vezes era eu contra com meu corpo:

eu lutando
porque me disseram que não era o suficiente
então acreditei que era meu corpo
o que impedia que me amassem

queria ocupar menos espaço
queria ser menos estranha
queria um rosto no qual
qualquer um se sentiria em casa

agora meu corpo é a minha casa

e tenho medo de quando me cortarem
para que abram meu crânio
o cabelo crespo que tanto reneguei
porque me disseram que tinha muito volume como eu
e precisaria acomodá-lo para que me amassem

tenho medo de que me doa
esta pele escura
pela qual quando menina me excluíram

tenho medo de não voltar
a abrir os olhos
com os quais me olhava tanto no espelho
buscando em mim defeitos:

tens o nariz muito largo
as sobrancelhas muito grossas
são muito amplos os teus quadris
não te cabe a roupa

III

agora nada em mim é excesso
agora quero ocupar todo esse espaço
no qual antes tentava me encolher
para que finalmente me vissem
agora quero expandir-me
estar onde estou
cobrir todos meus cantos
agora quero estar aqui
sem mudar nada
porque estou só comigo
e isso é suficiente
por tudo o que amo
para este corpo que está só


Para un cuerpo que está solo

I

porque mi cuerpo está solo
tendré que rodearlo

abrazarme las rodillas
recogerme el pelo
preparar mi cabeza para que la abran

porque con mi cerebro estoy sola

estoy sola con mis manos
estoy sola con mi miedo
estoy sola con mi espalda

estoy sola
con estas punzadas de dolor
que ya no sé si invento

ya no sé si me duele la conciencia
pero las siento tan agudas como agujas
atravesándome mil veces

¿me irán a abrir con una aguja?

II

tantas veces era yo contra mi cuerpo:

yo luchando
porque me dijeron que no era suficiente
entonces creí que era mi cuerpo
el que impedía que me amaran

quería ocupar menos espacio
quería ser menos rara
quería una cara de esas
en las que cualquiera se siente en casa

ahora mi cuerpo es mi casa

y tengo miedo de cuando me corten
para poder abrirme el cráneo
este pelo crespo
del que tanto renegué
porque me dijeron que tenía mucho volumen como yo
y había que aplacarlo para que me amaran

tengo miedo que me duela
esta piel oscura
por la que de niña me excluyeron

tengo mucho miedo de no volver
a abrir los ojos
con los que tanto me miraba al espejo
buscándome defectos:

tienes la nariz muy ancha
las cejas muy gruesas
tienes amplias las caderas
no te cabe la ropa

III

ahora nada en mí es demasiado
ahora quiero ocupar todo ese espacio
en el que antes encantaba encogerme
para que al fin me vieran
ahora quiero expandirme
estar en donde estoy
llenar todos mis rincones
ahora quiero estar aquí
sin cambiarme nada
porque estoy sola conmigo
y eso es suficiente
por todo lo que amo
a este cuerpo que está solo