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“Os sovietes atuais não mais representam a vontade dos operários e camponeses”

Introdução à revolta de Kronstadt

Guilherme Peters

Situada a 30 km de Petrogrado, na ilha de Kotlin, a base naval de Kronstadt é uma das regiões mais importantes do golfo da Finlândia. Entretanto, durante o ano de 1917, para a burguesia de Petrogrado, Kronstadt se tornou o símbolo do inferno na terra, o renascimento da Comuna de Paris em solo russo — essas palavras de Raskolnikov, líder bolchevique na região.1 Poucos anos depois, os marinheiros e operários da fortaleza seriam novamente encarados da mesma maneira, mas, dessa vez, por seus próprios irmãos de armas, os bolcheviques. Como, em um período de menos de quatro anos, Kronstadt passou de inimiga do Antigo Regime a inferno da burguesia e, por fim, para adversária dos comunistas?

Desde fevereiro, Kronstadt já vivia um período intenso. Os marinheiros transformaram a região em um banho de sangue, desferindo seu ódio mortal contra centenas e centenas de oficiais, assassinados, linchados ou presos, o que aliás derruba a ideia de que Fevereiro teria sido uma revolução pacífica.2 Nesse momento, o poder seria transferido para o soviete de Kronstadt, o que tornou, nos meses seguintes, a legitimidade do Governo Provisório na região não mais do que uma miragem. Como diz Orlando Figes, “foi Outubro em Fevereiro”.3

Até abril de 1917, os trabalhadores, os marinheiros e os soldados, bolcheviques, socialistas-revolucionários e radicais independentes formavam a maioria no soviete. Em maio, o soviete era formado por 112 delegados socialistas-revolucionários, 107 bolcheviques, 97 independentes e 30 mencheviques.4 Quando novas eleições foram realizadas no começo do mês, o soviete passou a ser composto por 93 bolcheviques, 91 socialistas-revolucionários, 68 independentes e 46 mencheviques.5 É perceptível que, sendo fortes, os bolcheviques de forma alguma eram os únicos e nem concentravam uma quantidade muito superior de delegados em relação às demais forças políticas de esquerda, mesmo quando estiverem no auge de sua representação.

No dia 13 de maio, o Comitê Executivo passou a seguinte resolução: “O único poder na cidade de Kronstadt é o do Soviete dos trabalhadores e soldados”. Quando a República de Kronstadt foi proclamada, criou-se uma situação. O Governo Provisório, ainda no sistema dual, não tinha autoridade para se impor e foi obrigado a negociar com os revolucionários. Oficialmente, o Soviete se declarou como força soberana no dia 16 de maio, inaugurando a “República Soviética de Kronstadt” e rejeitando a autoridade do Governo Provisório. Dias depois, em 24 de maio, sob pressão tanto do governo quanto do soviete de Petrogrado, houve um acordo. A crise se resolveu quando, oito dias após a tomada do poder, os marinheiros aceitaram a autoridade do Governo Provisório em troca da eleição de um comissário próprio.6 Foi nesse momento que Trotsky se tornou uma espécie de ídolo dos marinheiros de Kronstadt, pois, nas duras negociações com o governo, ele os defendeu contra ameaças de repressão.7 Mesmo que o soviete tenha concordado com a soberania do Governo Provisório, no fundo, nada mudou: o Governo Provisório só tinha poder na teoria, pois na prática o soviete continuava soberano.8

O poder que se formou na região a partir desse momento está descrito, de forma talvez um pouco idealizada, mas não irreal, por Israel Getzler:

Era em seu autogoverno comunal que a Kronstadt vermelha se realizou, percebendo as aspirações radicais, democráticas e igualitárias de sua guarnição e de seus trabalhadores, seu apetite insaciável por reconhecimento social, atividade política e debate público, seu anseio reprimido por educação, integração e comunidade. Quase de uma noite para outra, as tripulações dos navios, a marinha e unidades militares e os trabalhadores criaram e praticaram uma democracia direta por meio das assembleias e comitês de base. Apoiado neles, a democracia representativa do Soviete, seu Comitê Executivo e suas comissões. O princípio eletivo foi aplicado a todos os postos públicos. A responsabilidade dos titulares dos cargos perante seus constituintes era reforçada pelo direito dos últimos de revogação instantânea e pelas eleições trimestrais. O eleitorado foi mantido totalmente informado pela Izvestiia de Kronstadt que publicava literalmente os procedimentos do Soviete e um registro de votos a respeito de questões cruciais. Diferenças salariais foram reduzidas ao mínimo e todas as dragonas e insígnias de posição foram abolidas. Um político recém-nascido e vigoroso e cultura social de partidos socialistas, clubes e landsmannschaften, jornais, palestras, discursos públicos, reuniões de massa na praça da Âncora e comícios festivos envolveram e permearam a democracia soviética de Kronstadt.9

Some-se a esse bom funcionamento a observação de visitantes e comissários do governo que atestam que as fábricas funcionavam com segurança, limpeza, organização e boa produtividade.10 A fortaleza armada se tornaria um símbolo do poder dos sovietes.11 Como pontua Figes, Kronstadt era um “bastião do maximalismo revolucionário”, o que, poucos meses depois, causou problemas até mesmo para os bolcheviques.

De qualquer forma, a calmaria com o governo durou pouco. Petrogrado entrou em um processo revolucionário entre os dias 3 e 5 de julho. As massas, contabilizadas em meio milhão, fizeram protestos violentos, com desordem popular. Vinte mil marinheiros armados desembarcaram na região. Em 4 de julho, esses milhares de marinheiros de Krostadt fizeram uma manifestação em homenagem aos mortos na Revolução de Fevereiro, um dia após a abertura do Primeiro Congresso dos Sovietes.12 Nela, carregavam bandeiras com os dizeres “todo poder aos sovietes”. Seria apenas uma demonstração de força ou uma tomada efetiva do poder? Ao que parece, os marinheiros queriam tornar aquele o momento definitivo e ficaram à espreita, aguardando as ordens de Trotsky.13 Mas não foi o caso. A falta de organização estratégica e a demora para agir tornaram julho apenas um ensaio. Os bolcheviques hesitaram até o último momento. Lênin, em particular, refreou as massas, desestimulando qualquer ato de violência contra o Governo Provisório.

Um episódio é bem ilustrativo do ímpeto das massas. Os marinheiros chegaram a sequestrar um amedrontado líder do governo provisório. O ministro da agricultura, Victor Chernov, foi escolhido para negociar com as massas e tentar apaziguá-las. Fracassadas as explicações de Chernov, ele foi jogado dentro de um carro.14 Sem saber o que fazer com o recém-capturado ministro, os revolucionários o colocaram à disposição dos bolcheviques. Trotsky fez um discurso pedindo que ele fosse solto, contemporizando naquele momento duro. Por um lado, ele faz questão de exaltar os marinheiros: “vocês vieram aqui, revolucionários de Kronstadt, assim que ouviram a respeito de uma ameaça à revolução. Vida longa à Kronstadt vermelha, a glória e o orgulho da revolução”. Por outro, apela para que não houvesse nenhuma forma de violência individual específica: “vocês mostraram ao soviete seu desejo de que a classe trabalhadora não quer mais ver a burguesia no poder. Mas por que prejudicar a própria causa com atos de violência contra indivíduos causais? Indivíduos não valem sua atenção”.15 Com isso, Trotsky ao menos impediu que Chernov fosse linchado pelas massas, após o entreveiro na porta do Palácio Tauride.

Entretanto, a atitude foi durante criticada pelos líderes bolcheviques, especialmente Lênin, que observou a quebra da hierarquia e disciplina partidárias. O discurso de Lênin foi francamente decepcionante para os marinheiros. Eles esperavam que o grande líder bolchevique os convocasse para a revolução; na verdade, o apelo de Lênin foi por disciplina, determinação e vigilância.16 A decepção dos marinheiros foi ainda maior porque eles acreditavam estar apenas realizando aquilo que Lênin havia vaticinado em abril: não aceitariam mais nenhuma forma de compromisso com o Governo Provisório. Curiosamente, Trotsky, que ainda não havia se tornado membro do partido, saudou o movimento, declarando que ele estava na dianteira da revolução. Quando finalmente os bolcheviques decidiram que não era a hora, foi difícil conter os marinheiros. Apesar de toda movimentação, os manifestantes acabaram, horas depois, se dispersando.

Ainda assim, o Governo Provisório responsabilizou os bolcheviques pelas jornadas de julho. O desfecho foi a prisão de muitos líderes bolcheviques, e também de Trotsky, que apesar de não ser do partido, estava próximo das posições de Lênin desde maio e em agosto viria a se tornar filiado. Também foram expedidas ordens para a prisão de Lênin e Zinoviev. A credibilidade dos bolcheviques ficou abalada, inclusive com os numerosos rumores de que Lênin fosse um agente alemão para desestabilizar o governo. Temendo por sua vida, ele se exila na Finlândia. Kerensky, líder do Governo Provisório, também toma medidas contra os marinheiros de Kronstadt.17

No final de agosto, os marinheiros voltariam a Petrogrado, mas dessa vez para defender o Governo Provisório contra a reação, capitaneada pelo general Kornilov. Essa luta constitui o ensaio final para a Revolução de Outubro. Foi nesse episódio que muitos trabalhadores se armaram para os meses seguintes.18 Ao mesmo tempo que preparou as tropas vermelhas e os trabalhadores, o affaire Kornilov foi o canto do cisne para o Governo Provisório, cuja legitimidade derretia. A situação degringolou a tal ponto que, depois de Kerensky implorar pela ajuda dos marinheiros de Kronstadt, eles decidiram consultar Trotsky na prisão para saber o que deveriam fazer. Depois do aval do líder, eles se tornaram fundamentais para derrotar a reação.19

Em Outubro, não houve propriamente uma revolução em Kronstadt. Como o soviete já havia se formado e a democracia operária funcionava há alguns meses, os marinheiros não experimentaram a tomada do poder pelos bolcheviques em sua própria região.20 Naturalmente entusiastas da Revolução, os marinheiros e operários de Kronstadt refletiram os eventos de Outubro na sua composição. Após a Revolução, Kronstadt adquiriu maioria bolchevique, 100 deputados comunistas, 75 Socialista-Revolucionário, 12 Mencheviques internacionalistas e 7 anarquistas — os outros 90 delegados não filiados eram simpatizantes da esquerda revolucionária.21

Não houve uma bolchevização uniforme e imediata de todos os sovietes após Outubro, mas sim um avanço progressivo. Pouco a pouco, eles se tornaram apêndices do governo e perderam sua autonomia e diversidade. Marc Ferro descreve essa história como a convergência de três processos quase simultâneos: primeiro, a partir de fevereiro de 1917, bolchevização da sociedade, feita por muitas vias, desde reuniões pedagógicas e o convencimento ideológico até manipulações autoritárias dos simpatizantes; segundo, desde Outubro, a institucionalização do bolchevismo, com a eliminação dos demais partidos, o fechamento da Assembleia Constituinte, o controle burocrático pelo alto, realizado na figura dos comissários, sobre os sovietes, a eliminação de órgãos autônomos, a subversão das organizações sindicais; por fim, a burocratização por baixo, em que os apparatchicks corrompem de dentro a organização democrática dos órgãos operários de origem plebeia.22 É essa a dinâmica da sociedade russa entre 1917 e 1921. Dinâmica que, por certo, será contestada de diversas formas, como veremos. Todos esses processos se desenrolam sob o signo de dois absolutismos — de um lado o do próprio partido e de outro o absolutismo popular.23 Frequentemente, esse absolutismo popular se impõe com medidas duras, até mesmo violentas, e com um voluntarismo ainda maior do que aquele dos próprios bolcheviques. O que se segue desse esquema é que o poder dual estabelecido durante o Governo provisório não se encerrou de forma abrupta em Outubro. Antes, o que ocorreu foi um extenso processo no qual um dos poderes gradualmente se sobrepôs ao outro.

Ironicamente, em seu radicalismo desenfreado, foi um grupo de marinheiros anarquistas de Kronstadt que fechou à força a Assembleia Constituinte de 1918, impulsionados pelos bolcheviques. O evento, criticado, entre outros, por Rosa Luxemburgo,24 aprofundou o processo de bolchevização ao excluir — e, pouco depois, suprimir — os demais partidos de esquerda, arremessados para a “lata de lixo da história”, segundo a infame expressão de Trotsky nos momentos derradeiros da experiência constitucional. No entanto, a oposição à Assembleia Constituinte não era uma repulsa do modelo parlamentar em si, mas uma crítica da representação. Para os marinheiros e operários, não poderia haver uma liberdade excessiva concedida aos representantes. Eles deveriam ser mais próximos da figura de um delegado, apenas conduzindo ao parlamento a vontade e as decisões do soviete, com possibilidade de revogação imediata do mandato pela base em caso contrário. Era esse formato25 o mais adequado para evitar a autonomização dos representantes e o reconhecimento do poder das bases.26 O sovietismo de Kronstadt se tornou antiparlamentar apenas depois da Revolução de Outubro, pois a instituição ficou associada à restauração do poder burguês. De todo modo, o episódio da Constituinte parece ter sido o ápice da aliança entre os dois absolutismos, que logo iriam divergir e entrar em conflito. Junto com o fim do comunismo de guerra e o início da NEP, o poder bolchevique sobre os sovietes se consolida, e não mais em aliança com eles. O resultado parecia quase inevitável: se os dois absolutismos entrassem em rota de colisão, como ocorreu, o prejuízo seria para aquele que não detinha o poder do Estado. O resultado: uma ditadura sobre o proletariado.

A revolta de Kronstadt foi o epílogo revelador desse conflito, o momento no qual o absolutismo do partido se impõe sobre aquele do povo e dos sovietes de forma explícita e violenta. Tendo em vista o processo de bolchevização do período, não se deve ver esse acontecimento como um episódio isolado. Na verdade, a insurreição é, de fato, o momento final de uma série de revoltas contra o governo bolchevique. Sob pena de perder de vista o sentido desse processo, o levante de Kronstadt não deve aparecer como um incidente à parte. Ele se insere em uma atmosfera mais ampla de insatisfação popular. Os primeiros episódios dessa insatisfação se passaram ainda em 1918, com greves de soldados e marinheiros em Petrogrado, junto com operários. Rebeliões dentro do Exército Vermelho aconteceram em Saratov, nos Urais e em Kronstadt no mesmo ano. Na primavera de 1919, novas greves operárias em Petrogrado, Astrakhan, Briansk e Tver, com os soldados se recusando a reprimi-las. Ainda em 1919, novamente, o Exército Vermelho passou por motins em Astrakhan e Orel. Nas semanas anteriores à insurreição, houve uma série de greves operárias e insurreições camponesas. Resistências massivas no campo contra a política de requisição e confisco, especialmente no final de 1920, na região de Altai. Desde 1919 já havia movimentações e insatisfações intensas na região de Tambov e em 1920 em Tiumen. Na mesma época, houve igualmente mobilizações em Saratov, Samara, Kuban, Tobolsk e na Sibéria.27 Brovkin oferece um panorama da situação:

O motim em Kronstadt deve ser visto no contexto de outras rebeliões nas Forças Armadas no final de 1920 e início de 1921. E as greves em Petrogrado e Moscou foram parte de uma poderosa onde de greves que varreu as principais cidades industriais da Rússia e da Ucrânia. Esses não foram incidentes isolados, mas uma revolta popular que coincidiu com o crescimento da insurgência camponesa.28

Na sequência, o autor sugere que essa onda de revolta popular que se alastrou pelo país foi uma ameaça ainda mais perigosa do que o Exército Branco e que se tratou de uma situação revolucionária. Essa última avaliação soa um exagerada, mas ao menos chama a atenção para o fato de que o peso da oposição ao regime durante o período 1920–21 foi muito maior do que se costuma imaginar. Se situação revolucionária parece uma expressão excessiva, certamente havia um levante popular de grandes proporções, ainda que ele não tivesse uma coordenação em larga escala. Mesmo com toda essa oposição popular, os bolcheviques lançaram mão de várias estratégias para aumentar seu controle sobre os sovietes: delegados que aos poucos passavam a concentrar funções e exercer hegemonia no interior dos sovietes; comissários que mediante exigências e cobranças submetiam o órgão a um controle estrito; e, quando houvesse rebelião, rapidamente isolar a região e reprimi-la, sem negociação. Assim, realizou-se uma usurpação gradual do poder dos sovietes, transferido progressivamente ao governo central.

No caso específico do soviete de Kronstadt, até o junho-julho de 1918, ele foi governado por uma coalização de partidos de esquerda, sendo os delegados escolhidos diretamente pela base naval, sem relação com indicações partidárias. Na eleição de abril de 1918, o número de cadeiras dos bolcheviques no soviete diminui de 131 para 53.29 No entanto, no verão de 1918 os mencheviques-internacionalistas e os Socialistas Revolucionários de esquerda foram expulsos do soviete, dando início à bolchevização. Já em novembro daquele ano, Kronstadt estava representada no Sexto Congresso dos Sovietes por dois delegados bolcheviques. Nas eleições de janeiro de 1919, a composição do soviete passa a ser de 73 comunistas, 91 simpatizantes do partido, 22 não partidários, 1 menchevique (mencheviques foram readmitidos nas eleições para o soviete em novembro de 1918), e 1 simpatizante dos maximalistas. Com a extinção do sistema multipartidário, as eleições se tornaram apenas um simulacro, com o previsível desfecho de dar uma legitimidade farsesca à hegemonia bolchevique. Não demorou muito para o partido desorganizar e suprimir a democracia naval. Em janeiro, o então presidente do Conselho Militar Supremo, Trotsky, aboliu os comitês eleitos nos navios e determinou que os comissários seriam todos indicados pelo partido, além de estabelecer tribunais revolucionários com a missão de manter a disciplina, o que antes era feito por cortes eleitas.30 Em fevereiro de 1919, as reuniões massivas na praça da Âncora passaram a ter outro caráter ao serem organizadas pela seção de agitação e propaganda do partido. Antes locais de intensos debates e plenárias, os meetings se tonaram palcos de propaganda, com a difusão do programa do partido e palestras sobre a doutrina bolchevique. Aos poucos, os comissários passaram a se encarregar da organização de boa parte das atividades políticas da região e da coordenação entre trabalhadores e marinheiros.31 Ou seja, os bolcheviques transformaram o soviete em órgão burocrático, espécie de apêndice do partido, assim como fizeram com os outros sovietes ao longo do tempo.

Ainda assim, entre 1918–21, durante a Guerra Civil, os marinheiros lutaram do lado dos vermelhos, mas apenas por acharem que os brancos representavam um perigo ainda pior. Logo que a guerra se encerra, eles se voltaram contra os bolcheviques, assustados com o tratamento dispensado aos camponeses. A vida nababesca que alguns líderes comunistas levavam também foi motivo de ressentimento. O inverno de 1920–21 foi crucial. Aos poucos, as massas trabalhadoras, que por tantos anos penaram, trabalharam, passaram fome e privações inimagináveis esperavam uma melhora com o fim da guerra civil. Mas a situação econômica era calamitosa — além da guerra, uma centralização administrativa excessiva, o início da burocratização do partido e o comando ditatorial dos líderes criou um clima de descontentamento. À medida que as promessas de 1917 não se realizam, o regime se fechava cada vez mais.

A perseguição aos demais grupos políticos se intensifica a partir do final de 1920 e especialmente no início de 1921. Houve uma empreitada feroz contra os mencheviques em fevereiro de 1921, ainda antes da rebelião ocorrida em Kronstadt. Dois mil foram presos durante os três primeiros meses do ano.32 Essa perseguição põe em xeque a ideia de que Kronstadt teria sido o episódio responsável por alavancar o fechamento do regime. Esse processo era anterior e se desenrolou ao longo de todo o período 1917–21. Às tendências autoritárias, além da bolchevização dos sovietes e da repressão às dissidências políticas, some-se o fim da Assembleia Constituinte e a criação da Cheka.

Em meados de fevereiro de 1921, essa insatisfação alcançou seu auge entre os trabalhadores de Petrogrado. Em meio às discussões a respeito da organização sindical, o partido perdeu controle sobre as fábricas. No dia 21, uma reunião de operários denunciava o regime de partido único. Em 23 de fevereiro os protestos foram proibidos, o que desencadeou uma greve em várias fábricas. No dia seguinte, os bolcheviques colocaram a cidade em estado de sítio. Já começavam a aparecer conflitos, inclusive armados. Uma semana depois da reunião dos trabalhadores, a Cheka prendia preventivamente 200 militantes SRs e mencheviques. Seguiram-se manifestações dos trabalhadores, descontentes com os rumos da economia e a penúria vivida na cidade.33 Severamente condenada pelo comitê chefiado por Zinoviev, a greve logo adquiriu caráter político.

Contudo, na cidade de origem, a revolta arrefeceu. Mesmo que os bolcheviques tenham conseguido abafar a situação, com ameaças e concessões, ela se espalhou para Kronstadt. Em Petrogrado as manifestações se iniciaram mais por conta da carestia e do colapso da vida industrial, embora tenham logo ganhado também uma conotação política. No entanto, quando a revolta chegou a Kronstadt, ela se revestiu desde o início de bandeiras iminentemente políticas, além da carência ocasionada pela guerra e pela crise. Lá, a situação se deteriora rapidamente. Desde o final de 1920, já ocorria uma debandada do Partido Comunista na região.

Em 27 de fevereiro, assustados com as notícias que chegavam de Petrogrado sobre a repressão severa às manifestações, os marinheiros dos encouraçados Sebastopol e Petropavlosk resolveram se informar enviando uma delegação ao local. A informação de que havia fábricas cercadas por unidades militares com comunistas armados vigiando os trabalhadores revoltou os marinheiros. Logo, reúnem-se 17 mil oficiais e marinheiros, 3 a 4 mil trabalhadores e uma população civil de mais ou menos 30 mil homens e mulheres. Os marinheiros enviam pessoas para as usinas em greve.

No dia seguinte, 28, realizam uma assembleia geral na qual tiram uma resolução em 15 pontos, aprovada pelas tripulações dos encouraçados. É convocada para o dia seguinte uma reunião aberta na Praça da Âncora. Lá se reúnem algo como 15 mil pessoas, entre operários e marinheiros. Acompanhado pelos comissários Nikolai Kuzmin e Pavel Vasiliev, Mikhail Kalinin, o presidente do Comitê Executivo do Congresso dos Sovietes, procura negociar com os manifestantes, sugerindo resolver a situação a portas fechadas, com as lideranças dos marinheiros. No entanto, a multidão rechaça qualquer chance de conciliação e, diante da presença estarrecida dos oficiais bolcheviques, adota a resolução do dia anterior. Kalinin reage alertando os participantes que aquela medida contrarrevolucionária não seria perdoada pelo governo. E, afinal, quais eram as reinvindicações presentes no documento?

Resolução da Assembleia Geral do 1º e 2º Esquadrões da Frota do Báltico, realizada em março de 1921.

Depois de ouvir os relatos dos delegados enviados a Petrogrado pela assembleia geral das tripulações para examinar a situação, a assembleia decidiu, uma vez estabelecido que os sovietes atuais não mais representam a vontade dos operários e camponeses, faz-se necessário:

  1. Organizar imediatamente novas eleições para os sovietes pelo voto secreto, com o cuidado de organizar propaganda eleitoral gratuita para todos os operários e camponeses.
  2. Garantir liberdade de expressão e de imprensa para os operários e camponeses, para os anarquistas e para os partidos socialistas de esquerda.
  3. Assegurar liberdade de reunião para sindicatos de trabalhadores e organizações camponesas.
  4. Convocar uma conferência não partidária dos operários, soldados do Exército Vermelho e marinheiros de Petrogrado, de Kronstadt e da província de Petrogrado, no mais tardar até 10 de março de 1921.
  5. Libertar todos os prisioneiros políticos dos partidos socialistas, assim como todos os operários, camponeses, soldados e marinheiros presos por suas conexões com movimentos de trabalhadores e camponeses.
  6. Eleger uma comissão para revisar os casos dos que estão detidos em prisões e campos de concentração.
  7. Abolir toda politodeli (propaganda oficial), porque nenhum partido deve possuir privilégios especiais na divulgação de suas ideias ou receber apoio financeiro do governo para tais objetivos. Em vez disso, devem-se estabelecer comissões educativas e culturais, eleitas localmente e financiadas pelo governo.
  8. Abolir imediatamente todas as zagryaditelnyie otryadi (destacamentos armados que requisitavam cereais dos camponeses).
  9. Equalizar todas as rações de todos os que trabalham, como exceção daqueles dedicados a atividades com risco para a saúde.
  10. Abolir os destacamentos de combate comunistas em todos os ramos do Exército, assim como os guardas comunistas em serviço nas fábricas e moinhos. Caso se considere necessária a presença de tais guardas ou destacamentos, deverão ser nomeados de dentro das fileiras do Exército, e enviados às fábricas conforme a avaliação dos operários.
  11. Dar aos camponeses plena liberdade de ação com respeito à sua terra, e também o direito de manter o gado consigo, desde que os camponeses os mantenham com seus próprios meios, isto é, sem emprego de trabalho remunerado.
  12. Requerer que todos os ramos do Exército, assim como nossos camaradas, os kursanti (cadetes militares), sustentem nossas resoluções.
  13. Demandar que a imprensa dê máxima publicidade a nossas resoluções.
  14. Nomear uma comissão de controle itinerante.
  15. Permitir a livre produção de artesãos que não empreguem trabalho remunerado.34

Esse programa representava não só uma revolta contra o comunismo de guerra, cuja continuidade se mostrava insustentável frente à condição extenuante que havia estabelecido no país, mas também um protesto contra os aspectos políticos do bolchevismo, que não se resumiam aos problemas da política econômica. No documento, a frase inicial resume o problema: “Os sovietes atuais não exprimem a vontade dos operários e camponeses”. Os rebeldes denunciavam a burocratização autoritária — a comissariocracia - “domínio arbitrário dos comissários”,35 e desejavam a restauração da pujante democracia soviética que esteve em atividade no período 1917–18.

Assim que tomam conhecimento do manifesto, Lênin e Trotsky acompanham a avaliação de Zinoviev, denunciam-no como um desvio esquerdista grave, com pautas que se ligavam aos socialistas-revolucionários de esquerda. Não apenas isso, mas afirmam a presença de um general que fizera parte da guarda tzarista na organização dos insurgentes. Kozlovsky, retrucam os rebeldes, foi escolhido para a região pelo próprio Comissariado do Povo para a Guerra, ou seja, pelos bolcheviques.

Em primeiro de março, às 14h, é convocado um grande encontro na praça da Âncora. As tentativas de negociação com o governo fracassam e o movimento se organiza. No dia seguinte, são eleitos cinco homens para formar o Comitê Revolucionário. No mesmo dia, o governo bolchevique exigiu a rendição imediata do Comitê, o que foi prontamente rejeitado. Um pouco mais tarde, o Comitê ganha mais dez membros. A assembleia decidiu prender alguns dos líderes bolcheviques, como Vasilev, o comandante Kuzmin e o comissário Korsunin. Apesar disso, a estratégia não era a de um conflito direto, mas de tentar persuadir os membros do partido a aceitarem as reivindicações. Durante a rebelião, dos 2.680 militantes e estagiários do Partido Comunista na região 900 se desfiliaram e uma boa parte engrossou as fileiras dos insurgentes.36

No dia 5 de março, Trotsky lança um ultimato para os rebeldes com duração de dois dias. Na manhã do dia 7 se inicia um pesado ataque bolchevique, com vinte mil tropas comandadas por Tukhachevsky.37 Enquanto a ofensiva ocorria, os rebeldes prosseguiam sua revolução. Durante seus 17 dias, o Comitê Revolucionário de Kronstadt desmontou todo a organização bolchevique, organizou novas eleições para os sindicatos e o soviete. Em 8 de março, foi publicado no jornal Izvestiia o documento “Pelo que lutamos”. Ele começa da seguinte maneira: “Depois de realizar a Revolução de Outubro, a classe operária esperava alcançar sua emancipação. Mas o resultado foi uma escravização ainda maior da personalidade humana”. O manifesto acusava a “ditadura comunista” de trair os ideais do socialismo e conclamava uma “terceira revolução”, que, estabelecendo o poder dos sovietes, deixaria para trás os trezentos anos de despotismo monárquico, o intercurso burguês do Governo Provisório e os anos de violência e opressão da “autocracia comunista”.38

No mesmo dia em que o manifesto é publicado, são abertos os trabalhos do Décimo Congresso do Partido Comunista, em Moscou. Na pauta do Congresso estavam as recentes revoltas políticas, a revisão do comunismo de guerra e a discussão sobre as teses da Oposição Operária a respeito da organização sindical e da democracia interna ao partido.39 A insurreição em Kronstadt fazia convergir todos os assuntos e acabou se tornando um dos temas centrais. Somado a esse cenário já bastante delicado, os comunistas alemães tentaram uma nova insurreição que logo foi derrotada, tornando ainda menos prováveis as chances de o comunismo triunfar em algum país da Europa ocidental.40

No dia 10, Trotsky apresentou um relatório sobre a difícil situação em Kronstadt. De imediato, 279 delegados, um quarto de todos os reunidos,41 se apresentaram para resolver a situação. Os primeiros a se colocar à disposição foram, surpreendentemente, membros da Oposição Operária e dos Constitucionalistas Democráticos, duas tendências que reivindicavam mais autonomia operária e que em breve seriam suprimidas pelo Congresso.42 Alguns anarquistas estrangeiros que naquele momento passavam por Moscou se ofereceram para intermediar a situação e buscar uma saída pacífica, mas sem sucesso.43

O Comitê Central, representado por Zinoviev e Trotsky, prosseguindo na mesma estratégia, taxou a revolta de contrarrevolucionária e organizada do exterior pela Guarda Branca, o que estava evidentemente em contraste com as reinvindicações divulgadas. O soviete de Petrogrado acompanhou o Comitê. No Décimo Congresso, Lênin mostrou que os líderes bolcheviques tinham clareza sobre o desejo dos rebeldes: “eles não querem a Guarda Branca e também não querem nosso poder”.44 Por rejeitarem o poder bolchevique, ou ao menos a forma como ele vinha sendo exercido na região, com os comissários do partido monopolizando o soviete e impondo as decisões do governo, Lênin viu um grande perigo. Kronstadt poderia ser apenas um pretexto para outras insurreições semelhantes, que seriam insufladas pelos brancos a fim de desestabilizar o governo. Por conta disso, a campanha de propaganda contra a rebelião foi ostensiva. Rádios e jornais falavam nos “traidores de Kronstadt” e na “Kronstadt Branca”, rapidamente endossando a narrativa bolchevique de que a revolta fora planejada por um general branco.45 No entanto, os revolucionários se mostraram muito ciosos de não serem confundidos ou receberem ajuda da guarda branca ou de qualquer tipo que quisesse usar a rebelião como pretexto para restaurar o antigo, fosse ele monárquico ou burguês. No jornal Izvestiia do dia 6 de março, um claro alerta sobre o perigo: “Vocês são inspirados pelo desejo ardente de restaurar o genuíno poder dos sovietes e pela nobre esperança de devolver ao trabalhador seu trabalho livre e para o camponês o direito de dispor livremente de sua terra e dos produtos de seu trabalho. Mas eles esperam trazer de volta o nagaika do czar e o privilégio dos generais… Vocês precisam derrubar o poder comunista para ter uma vida pacífica e um trabalho criativo — eles precisam para subjugar os trabalhadores e camponeses. Estejam a postos. Não deixem os lobos em pele de carneiro chegarem perto da ponte do capitão”.46

A investida final foi especialmente sangrenta. Para combater os rebeldes, foram enviadas tropas de elite do Exército Vermelho e da Cheka, além dos já mencionados membros do Décimo Congresso. No dia 16 de março, começou a última grande ofensiva. 50 mil tropas avançaram, com artilharia pesada e bombardeios aéreos. Mais de 10 mil do Exército Vermelhas foram mortos, incluindo quinze delegados do Décimo Congresso.47 Na noite seguinte à derrota, seguindo ordens de Zinoviev, por volta de 500 rebeldes foram executados sumariamente. No dia 20 de maio, 167 marinheiros do encouraçado Petropavlovsk são fuzilados pela Cheka; no dia seguinte, mais 32 do mesmo navio e 29 do Sebastopol; em 24 de março, mais 27 marinheiros e por fim nos dias 1 e 2 de abril, 64 são julgados pelo tribunal revolucionário, dos quais 23 condenados à morte. Ao todo, 2103 rebeldes são condenados e fuzilados.48 Nos meses subsequentes, mais de dois mil rebeldes tiveram o mesmo destino e outras centenas foram enviados para Solovki, onde morreram doentes, com fome e exaustos. Enganados por uma promessa de anistia, outros seis mil e seiscentos, que haviam escapado para a Finlândia, foram mortos assim que voltaram.49

Segundo Oskar Anweiler, “o levante de Kronstadt iluminou a contradição interna da ‘ditadura do proletariado’ que supostamente reinava na Rússia”.50 Tornava-se nítido que na doutrina e na prática bolchevique não havia diferença entre democracia proletária e ditadura do proletariado. Essa última era, na verdade, a ditadura do partido e o partido era dominado por um punhado de homens que formava o Comitê Central. Ou seja, nessa equação, a vontade do povo era equivalente à do proletariado que era idêntica à do partido que era igual à do Comitê Central. Sendo assim, as decisões do Comitê não poderiam senão expressar a autêntica vontade das massas, sem excessos, nem déficits. Era o que o jovem Trotsky denominou “substituísmo político”.51

A grande preocupação dos bolcheviques com Kronstadt era que a revolta se espalhasse pelo resto do território. Lênin percebeu com clareza que Kronstadt era apenas a ponta do iceberg e que se a revolta prosperasse, logo todo o interior poderia estar tomado por protestos contra o governo.52 Em suas notas para o discurso no Décimo Congresso, em 8 de março, Lênin acompanha o discurso bolchevique geral e acusa a insurreição de ser organizada pela Guarda Branca. Mas não só. Usa todos os jargões possíveis, “contarrevolução pequeno-burguesa” e “anarquista”, organizado pelos imigrados da Guarda Branca e por Socialistas Revolucionários,53 para desmerecer e apequenar o que acontecia. Reduz as numerosas reinvindicações e insatisfações de caráter político a problemas de ordem comercial, como se a grande ou única motivação fosse o bloqueio do comércio livre. No mesmo discurso, diz que seria “politicamente inevitável” que a Guarda Branca usasse a revolta como um pretexto para estabelecer seu poder e que isso só poderia desencadear uma restauração do capitalismo e do poder dos proprietários.54 Não haveria um terceiro termo: havia o lado bolchevique, representando o comunismo através da ditadura do proletariado, ou o lado dos capitalistas internacionais, da pequena burguesia anarquizante, dos mencheviques, dos socialistas-revolucionários, enfim, de todos que apoiassem qualquer revolta contra o governo. Lênin diz que, após a Guerra Civil, uma das últimas e mais cruciais batalhas seria contra o elemento pequeno-burguês anarquista, sendo que o “imediato destino da revolução depende se seremos bem sucedidos ou não” nesse conflito.55

Em notas preparadas para o Décimo Congresso, Lênin escreve: “A lição de Kronstadt: na política — o fechamento das fileiras (e da disciplina) dentro do partido, luta mais intensa contra os mencheviques e os socialistas revolucionários”.56 Adiante, Lênin seguiu à risca suas conclusões. Acusando a oposição de tornar possíveis rebeliões armadas, como a de Kronstadt, o líder bolchevique atuou para bani-la. Assim, no mesmo congresso, foi votada a condenação do programa da Oposição Operária, classificado por Lênin como um “desvio anarco-sindicalista”;57 uma segunda resolução determinava que deveria haver unidade partidária, dissolvendo todas as frações e agrupamentos internos ao partido, usando Kronstadt como exemplo de uma situação que poderia ser aproveitada pelos contrarrevolucionários. Por fim, determinou-se a concentração massiva de poder no Comitê Central, permitindo até mesmo a expulsão de membros dissidentes.58 Em maio de 1921, pouco depois dos acontecimentos de Kronstadt, o partido bolchevique desencadeou uma nova onda de repressão contra mencheviques, SRs e anarquistas, considerados tão perigosos quanto o Exército Branco. Muitos foram levados para a Sibéria. Ao fim do ano, nem mesmo a sombra da oposição parlamentar existia.

A narrativa e os argumentos usados pelos bolcheviques para justificar o episódio são os mesmos, produzidos por Lênin, Zinoviev e, sobretudo, Trotsky. Mais tarde, curiosamente, a versão de Trotsky acaba sendo repetida não apenas por seus seguidores, mas também brevemente reproduzida no oficialesco manual stalinista sobre a História do Partido Comunista da União Soviética.59 Acontece que esses argumentos caem por terra um a um. Não fica comprovada a participação de contrarrevolucionários e de membros imigrados do Exército Branco, como defenderam Zinoviev e Lênin. Pelo contrário, os insurgentes fizeram de tudo para se desvencilhar do auxílio ou orientação de qualquer um que pudesse usar a revolta como um trampolim para interesses escusos. Lênin também sugeriu que as palavras de ordem usadas na revolta eram vagas e nebulosas, quando na verdade o documento elaborado pelos insurgentes parecia muito claro quanto às reivindicações. Por fim, Lênin aventou que o slogan “Sovietes sem comunistas”, ou sua variação “Sovietes livres, sem comunistas”, foi obra de Pavel Milyukov, um dos líderes dos Constitucionalistas Democráticos, partido de orientação liberal. Na verdade, esse lema surgiu ainda no ano de 1918, em protestos dos trabalhadores do porto de Murmansque,60 e depois se estendeu chegando às revoltas camponesas de 1919–1920, à greve de Petrogrado em fevereiro de 1921 e, enfim, em Kronstadt.

Nem é verdade, como também argumentou Trotsky, que em 1921 não se encontravam, no lugar dos antigos heróis saudados como a vanguarda da Revolução, um bando de camponeses vestidos de marinheiros e operários, incorporando uma mentalidade anarquista e pequeno-burguesa. De fato, alguns dos bolcheviques mais experientes da região haviam sido transferidos para outras áreas, especialmente para os transportes, mas por conta do próprio partido e especificamente de Trotsky que moveu marinheiros confiáveis para tarefas ligadas a transporte.61 No entanto, nem as bases, nem os líderes eram radicalmente diferentes daquelas do período revolucionário. A análise da tripulação dos dois grandes encouraçados demonstra que mais de 90% havia sido recrutada antes de 1918 e apenas uma pequena fração havia chegado mais tarde, não tendo participado da Revolução. Ou seja, a imensa maioria dos marinheiros tinha um perfil de veteranos, altamente politizados e à esquerda. Mesmo a chegada de novos marinheiros à região foi muito menor do que se supunha, algo em torno de 1.300 homens.62

Trotsky avança mais um argumento e afirma que os membros do Partido Comunista na região do Báltico tinham uma origem social predominantemente agrária, o que explicaria a motivação da revolta e a falta de disciplina. Na verdade, a proporção de camponeses no Partido Comunista em Kronstadt era grande, mas não muito diferente daquela de outras organizações, como o próprio Exército Vermelho, que, em 1921, era formado de uma maioria de soldados com origem camponesa. Mesmo entre os civis, não havia uma porcentagem significativamente maior de camponeses na população do Báltico.63 Então muitos dos marinheiros de Kronstadt tinham, sim, uma origem agrária. E isso só fez aumentar sua revolta, pois quando voltavam para seus lugares de origem, normalmente para visitas familiares, percebiam que havia amplos protestos contra as políticas de confisco dos bolcheviques. Muitas da revolta camponesas ostentavam o slogan “sovietes sem comunistas” ou “sovietes sem bolcheviques”. Ainda que esses slogans também pudessem circular em Kronstadt, o problema não era a participação dos bolcheviques, mas se eles seriam capazes de aceitar uma participação democrática, ou seja, afinal, se o bolchevismo era compatível com a democracia.64

O programa da revolta de 1921 era basicamente o de restaurar a democracia soviética multipartidária que havia se estabelecido até 1918. Os marinheiros acreditavam em uma espécie de sistema soviético, mas independente, democrático e livre de hegemonias partidárias. A rebelião seria o início de uma “terceira revolução”, capaz de livrar os sovietes do domínio da burocracia do partido65 e reanimar as esperanças revolucionárias de 1917 — mais uma vez bradando a divisa “todo poder aos sovietes”, mas agora defendida contra os bolcheviques. Em razão da postura inflexível do governo comunista, era o feitiço se virando contra o feiticeiro.

Kronstadt revelou parte da natureza do sistema de dominação bolchevique, precipitando um processo que já havia se iniciado nos anos anteriores. A revolta é o último grande confronto entre um soviete e o Partido, pois o que se seguiu a ela foram medidas de endurecimento do regime, sufocando de forma definitiva a democracia proletária e pavimentando o caminho para um Estado monolítico.