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A nova crise no interregno capitalista

Entrevista com Wolfgang Streeck

O momento político-econômico atual da União Europeia (UE) e dos Estados Unidos da América (EUA) sob governo democrata de Joe Biden é o tema central desta entrevista com o sociólogo alemão Wolfgang Streeck, realizada no início de julho de 2021 e publicada aqui pela primeira vez na íntegra (na edição de 25 de julho do jornal Folha de São Paulo foi apresentada uma versão resumida). O diretor emérito do Instituto Max Planck para o Estudo de Sociedades de Colônia, na Alemanha, parte de questões relacionadas a conceitos e categorias como tempo comprado, interregno, as passagens de Estado Fiscal, para Estado Endividado e Estado de Consolidação e o deslocamento para cima do conflito distributivo, para reafirmar seu entendimento de que a “velha lógica” capitalista orienta as medidas até aqui anunciadas para retomada das atividades econômicas em meio à pandemia.

Há uma problematização do otimismo corrente — mesmo entre setores da esquerda — com as medidas de Biden e as possibilidades de uma suposta nova fase de acumulação capitalista que rompa com preceitos neoliberais. No meu entender, o entrevistado realiza habilmente, nas respostas às questões, algo que Antonio Gramsci nos ensina em uma conhecida passagem dos Cadernos do cárcere: a distinção entre “os movimentos orgânicos (relativamente permanentes)”, que compõem determinada estrutura social, “dos elementos que podem ser denominados ‘de conjuntura’ (que se apresentam como ocasionais, imediatos, quase acidentais)”. De acordo com Streeck, não há razões para acreditar que os estímulos anunciados até aqui por Biden ou pela União Europeia representem qualquer ruptura com o neoliberalismo e a lógica fundamental da sociedade capitalista de garantir a acumulação sem fim de capital privado, o que traz como consequência o aumento das desigualdades de renda e riqueza.

Por diversas vezes, Streeck nos lembra que Biden terá de entregar algo rapidamente, sob pena de uma eventual vitória político-eleitoral do Partido Republicano nas eleições de meio de mandato em 2022, o que inviabilizaria a consecução de um programa econômico para, de fato, atender aos interesses da “classe trabalhadora em declínio no coração dos Estados Unidos”. Ressalta ainda que, mesmo diante da emergência de diferentes formas de insatisfação com as consequências do capitalismo, a ausência de partidos de massa que combinem os descontentamentos em um denominador comum transformador, de sentido democratizante, possibilita ao capitalismo continuar a se impor como padrão predominante de integração social.

Há outras importantes contribuições ao longo da entrevista, como as consequências para a luta política, seja em âmbito eleitoral (a reação do trumpismo ou as alternativas à esquerda, por exemplo), seja em âmbito social, da possível emergência de uma nova fase de participação das massas com potencial para deslocar de volta “para baixo” o conflito distributivo. Streeck traz também projeções para as eleições nacionais que acontecem na Alemanha em setembro, e analisa as dificuldades correntes das esquerdas no mundo, aprofundadas em contexto de pandemia. E assim como em sua conhecida análise sobre os impasses vividos no ocidente, apesar da permanente (e crescente) imposição de interesses em favor do capital, seguem presentes os muitos sinais da crise que caracteriza o período de interregno que levará ao fim o atual modo de produção.


Em Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático, afirma-se que as possibilidades de compra de tempo estão esgotadas, e essa seria uma das razões da crise de legitimidade do neoliberalismo e do “capitalismo democrático”. No entanto, em análises recentes de ações governamentais em contexto de pandemia, há autores que apontam para possibilidades de mudança na orientação da política macroeconômica, anunciando, inclusive, o fim do neoliberalismo em uma perspectiva progressista. Para dar apenas um exemplo, o mais novo pacote econômico de Joe Biden, de estímulo à esfera produtiva pela injeção de recursos provindos da reversão parcial das medidas de Donald Trump de diminuição da taxação sobre as empresas, tem motivado análises que apontam para uma nova lógica econômica a reger o centro do capitalismo. Qual é a sua avaliação de tais medidas de estímulo à retomada econômica, sejam elas nos EUA ou na UE? Podemos entrar em uma nova fase de compra de tempo que dê sobrevida ao “capitalismo democrático” e reverta o “contexto subestruturado do interregno nascente com suas instituições disfuncionais e cadeias causais caóticas”, ou são apenas novos sintomas mórbidos de uma era que está chegando ao fim?

Wolfgang Streeck — Antes de mais nada, a transição para uma “nova era” leva tempo. Biden está no governo há menos de meio ano e em breve começará o período que antecede as eleições de meio de mandato, de novembro de 2022. Lembro-me muito bem do período imediatamente após a eleição de Bill Clinton, em 1992, quando o céu estava cheio de sonhos de reformas fundamentais, como a social, a educacional e a do mercado de trabalho. Isso terminou dois anos depois, quando ambas as Casas do Congresso se tornaram republicanas, com Newt Gingrich assumindo o poder na Câmara dos Deputados e Clinton mudando de rumo em 180 graus, iniciando a revolução neoliberal. Vamos ver se Biden vai se sair melhor.

Em segundo lugar, depende do que você quer dizer com “uma nova lógica do capitalismo”, e pelo que você chama de “sobrevivência do ‘capitalismo democrático’”. O capitalismo tem evoluído permanentemente desde seu início, assumindo constantemente novas formas: novas tecnologias, nova organização do trabalho, novos regimes financeiros, mudanças nas relações com o Estado e a democracia etc. O que não mudou foi sua natureza fundamental: uma economia política guiada por uma compulsão intrínseca pela acumulação sem fim de capital privado capaz de gerar mais capital privado. Uma sociedade capitalista é aquela cujo bem-estar depende de sua economia ser suficientemente lucrativa para incentivar o investimento de capital privado ― se preferir, a “velha lógica” do capitalismo. Não há razão para acreditar que o estímulo econômico fiscal, independentemente do seu tamanho, representaria uma ruptura com esta lógica.

Certamente, uma questão interessante é como os enormes déficits públicos necessários para estimular a decadente máquina de lucro americana são financiados, e por quanto tempo isso pode continuar sem causar mais danos do que benefícios, especialmente para aqueles que não são proprietários de capital.

Parece-me que o pacote de Biden será financiado por uma mistura complexa de política fiscal e monetária, ou seja, por uma enorme extensão da dívida pública americana combinada com uma promessa do Fed de manter as taxas de juros baixas para que a dívida possa ser paga, além da garantia aos investidores em dívida pública de que, se a pressão chegar, o Fed comprará sua dívida com dinheiro novo, o que no jargão tecnocrático do dia é chamado de “estabilização dos mercados financeiros”. Você tem alguns palpites sobre quem se beneficiaria mais disso, os ricos ou os pobres, e se as desigualdades de renda e riqueza aumentariam ou diminuiriam como resultado. Para mim, esta é uma lógica bastante antiga.

Em “O retorno dos reprimidos”, depreende-se a ideia de que Trump era um “fenômeno patológico”. A doença acabou? Como interpretar politicamente a vitória de Joe Biden, a reação do trumpismo com as tentativas de anulação dos resultados eleitorais e os primeiros meses de gestão democrata? E qual é a viabilidade futura de posições como a de Bernie Sanders, com programas mais avançados em termos de extensão de direitos?

W.S. — Eu diria, como Zhou Enlai, quando Kissinger lhe perguntou o que ele pensava sobre a Revolução Francesa, que é “muito cedo para dizer”. Por enquanto, Biden parece ocupar o espaço político aberto por Sanders e, talvez, por Corbyn no Reino Unido, da mesma forma que Roosevelt se antecipou ao socialismo e ao comunismo americanos. Mas não esqueça que Trump, no ano passado, recebeu nada menos que 11 milhões de votos a mais que em 2016 (74 milhões contra 63 milhões), indicando um forte apoio à sua versão isolacionista e protecionista de “America First” [América em primeiro lugar]. Biden terá de entregar algo, não apenas em 2024, mas já, como eu disse, até os meados de 2022, e veremos como poderá ser. O que vejo, além do programa econômico de Biden, é uma tentativa de reverter o afastamento de Trump do ativismo e intervencionismo internacional e retornar à velha ideologia de “nação indispensável” do Partido Democrata, representada pelos governos Clinton e Obama. Isso certamente será caro e pode ser absolutamente perigoso, entre outras questões, pela relação com a China. Se ele vai consolidar o apoio entre os que ainda devem ser o núcleo eleitoral dos democratas, os pobres de diferentes origens étnicas e a classe trabalhadora em declínio no coração dos Estados Unidos, é uma questão muito em aberto. Se o ativismo internacional vier com o livre comércio e a livre circulação de capitais ao estilo da OMC, acho difícil de acreditar que possa obter apoio de grande parte do povo americano que conviveu com isso no período de “internacionalização” e “globalização”, como mostrou ao eleger Trump em 2016.

Em diferentes momentos de sua obra recente, aponta-se a extrema desigualdade de poder e a existência de uma diplomacia financeira internacional imune ao controle democrático de suas decisões, que se sobrepõem aos Estados Nacionais e determinam os padrões de produção social. Se compreendermos o interregno como um momento histórico de crise de autoridade, não seria justamente tal contexto que possibilitaria a ação política dos grupos subalternos e, por extensão, o controle democrático? A apatia e o entretenimento como formas predominantes da política neoliberal não podem estar dando lugar a uma nova fase de participação das massas com potencial para deslocar de volta “para baixo” o conflito distributivo? As novas expressões de atuação política das massas, sejam elas de movimentos sociais que atuam pela extensão de direitos como o Black Lives Matter, que parece ter sido fundamental na vitória de Biden ― ou os grupos neofascistas contrários a medidas de distanciamento social, por exemplo ― apontam para possibilidades concretas de incidência política ou seguem extremamente distantes dos processos decisórios? Apesar de enfraquecidos, os movimentos sociais e a velha classe trabalhadora ainda incidem sobre os processos políticos e possuem potenciais transformadores?

W.S. — Eles têm influência, sim. Se têm potencial de transformação, o futuro mostrará. Acho que depende muito do país e da região geográfica. Existem hoje, como você observa com razão, muitas expressões de descontentamento, às vezes bastante radicais, sobre diferentes questões e em diferentes formas, sem, contudo, um denominador comum de magnitude política relevante. Há descontentamento com os governos, de forma particular ou em ampla escala, relativo à má prestação de serviços ― assistência à saúde, educação etc. ― à insuficiente proteção contra riscos econômicos e incertezas e à falta de consideração do poder público por grupos específicos ou, em geral, pelos “perdedores” das guerras de competitividade. No entanto, não há partido de massas, por mais organizado que seja, que possa unir as diversas oposições e dar um enfoque comum ao seu descontentamento. Além disso, a discriminação por raça ou orientação sexual não é nada essencial para a estabilidade do capitalismo. O capitalismo pode facilmente prescindir de tais discriminações e de fato se juntar à batalha contra elas ― veja o apoio financeiro do Goldman Sachs ao “casamento para todos” ou as consideráveis doações aparentemente feitas por grandes empresas globais a uma organização como a Black Lives Matter, para comprar a boa vontade geral do público, bem como para se proteger de ataques específicos a suas práticas de emprego e contratação. Enquanto o padrão básico de “todos nós trabalhamos para o lucro de poucos, então eles terão misericórdia de nós e investirão seu lucro para gerar mais lucro, dando-nos uma chance de continuar a trabalhar para eles” permanecer intacto, todos os tipos de coisas parecem toleráveis a uma oligarquia capitalista, certamente incluindo o que quer que as pessoas da parada do Christopher Street Day queiram encenar.

Já estamos convivendo há mais de um ano com a pandemia da covid-19, um acontecimento global que impactou profundamente a economia e a política no ocidente. Quais foram os principais efeitos da pandemia sobre a Alemanha e a União Europeia? Houve alterações de tendências que estavam em curso ou as análises anteriores à pandemia referentes à crise do “capitalismo democrático” e ao interregno seguem atuais?

W.S. — Mais uma vez, lamento, muito cedo para dizer, pelo menos dessa forma. Tenho apenas duas tentativas de observação a fazer. Primeiro, parece-me que a pandemia proporcionou um período de fôlego aos partidos centristas da esquerda e da direita, partidos que estão em decadência há algum tempo porque seus eleitorados tradicionais estavam se dividindo ou definhando. A centro-direita parece estar se saindo melhor devido a experiência e solidez, enquanto a centro-esquerda continua a ser assombrada pelos Verdes em suas diferentes formações, que ainda absorvem uma parte crescente do seu voto.

A esquerda radical, por sua vez, parece estar à beira da extinção política, já que não tem nada a oferecer sobre a pandemia que difira da política governamental dominante. A direita radical, em comparação, parece estar se saindo melhor, o que pode ter a ver com o fato de conseguir capturar, em nome da liberdade pessoal, a oposição poujadista dos pequenos empresários e dos profissionais autônomos contra as políticas de lockdown do centro e da esquerda. Em geral, acho interessante que a esquerda tenha se tornado o partido de um Estado forte, até mesmo autoritário, em nome da “ciência” e de saber melhor o que é bom para todos, alinhando-se ao governo do dia, quanto mais está disposto a impor duras restrições. Os vários grupos de pressão “covid-zero”, em particular, estão mais à esquerda do que à direita, alguns fantasiando sobre um retorno da solidariedade universal, do povo, até mesmo dos povos unidos, em um lockdown brusco e rápido: apenas três semanas ou quatro, e o vírus será derrotado ― o que é, naturalmente, completamente ilusório e falhou até mesmo na Austrália. A posição liberal, em comparação, é que temos de aprender a viver com o vírus e aceitar que algumas pessoas morrerão por algum tempo, se não for por ele ― uma posição que é considerada desumana, até mesmo fascista entre a esquerda, e é um grande tabu nas discussões políticas.

Quanto à União Europeia, os 750 bilhões de euros de dinheiro extra são apenas mais um passo, moderadamente criativo, do Estado Fiscal para o Estado Endividado, a ser seguido inevitavelmente por outro passo em direção ao que chamo de Estado de Consolidação. Criativo porque encontrou uma maneira de contornar a proibição dos tratados para a UE contrair dívidas, embora, por enquanto, uma única vez, na vigência de um suposto Estado de Emergência. Note-se que o dinheiro fresco foi distribuído a todos os Estados Membros e não apenas aos países mediterrâneos em sofrimento, pois todos são afetados em diferentes graus pelo que chamo de crise fiscal do Estado Capitalista. Mas enquanto a soma parece impressionante, tudo o que fará é financiar alguns projetos nacionais de prestígio, beneficiando os governos no poder, sem de forma alguma curar as assimetrias fundamentais da União Monetária Europeia que estão arruinando a Itália, a Espanha e a França, enquanto tornam a Alemanha rica. Lembre-se de que o novo caça-bombardeiro alemão-francês, o FCAS (Future Combat Air System), custará, sozinho, de acordo com estimativas realistas, 300 bilhões de euros.

Já antes da pandemia, a dívida havia se tornado a cura aceita para a falta de dinheiro público necessário para manter o capitalismo a flutuar sob condições de “estagnação secular”. A dívida, no entanto, deve ser cumprida e paga em algum momento, devendo o Banco Central Europeu manter as taxas de juros baixas porque, caso contrário, Estados como a Itália poderiam ter de entrar em inadimplência (para que o serviço da dívida não seja doloroso, também deve haver crescimento econômico ― do qual ninguém sabe se e a que nível acontecerá). É verdade que, com engenhosidade suficiente, você pode sempre tentar adiar a hora da verdade. Mas se, no caminho, os investidores começarem a duvidar de que recuperarão o dinheiro, e com lucro, o custo do refinanciamento da dívida ― que cresce continuamente ― aumentará, primeiro nos países fracos, depois na UE (agora outro Estado Endividado, ou quase-Estado), e finalmente também nos países fortes como a Alemanha. Todos os tipos de acidentes políticos e econômicos podem acontecer por este caminho, acidentes que exigirão ainda mais “criatividade” dos governos nacionais e das organizações internacionais.

No final do verão alemão de 2020, Angela Merkel parecia bem avaliada em sua gestão da pandemia e a eleição nacional tinha a CDU como favorita. No entanto, passado o inverno, a situação parecia completamente diferente, com queda na popularidade de Merkel, nas intenções de voto na CDU e uma possível vitória Verde nas eleições de setembro. Ao mesmo tempo, a AFD, desde o início da pandemia, não deu mais sinais de que seguirá crescendo. Sua leitura exposta no artigo “A renewed left as the imperative of political reason” se modificou, diante do novo cenário eleitoral? Como tais mudanças de conjuntura têm se expressado no debate programático? Em relação a isso, em termos mais específicos, o Sr. poderia explicar sua posição sobre como lidar com a AFD, seus apoiadores e o tema do nacionalismo?

W.S. — Não haverá uma “vitória verde”. No final, os Verdes poderão acabar com menos votos que o SPD, que permanecerá nitidamente abaixo de 20%. Se nenhum milagre acontecer, o candidato da CDU/CSU, Laschet, será chanceler de um governo de coalizão que poderá incluir qualquer combinação com Verdes, SPD e o liberal FDP, dependendo dos votos que cada partido obterá. A política alemã é centrista até o osso. Neste momento, Laschet, como primeiro-ministro do maior estado federal, Renânia do Norte-Vestfália, está tentando desenvolver um regime de combate à covid mais sustentável do que o interminável lockdown de Merkel (adotada para agradar à ala “covid-Zero” dos Verdes). Em seu estado, Laschet governa com o liberal FDP, em afinidade com os pequenos empresários e outros que sofrem sob os sempre retornados lockdowns.

Você está pedindo o “debate programático”. Não há nenhum. Laschet produziu um “programa” que é tão trivial e chato que ninguém o está lendo. Nisso ele segue os passos de Merkel ― que é completamente dissonante quando se trata de ideologia e afins, mudando repetidamente de direção em 180 graus se isso se adequar à sua política de coalizão. O que há de mais ou menos diferente ― em geral não dito, por parte dos líderes partidários, está relacionado com sua provável resposta às crises, que os manterá ocupados quando no cargo, em questões relativas a: Europa Oriental, União Monetária, finanças estatais, relação com a Rússia, confronto americano com a China e o desejo francês de que a “Europa” defenda seu império pós-colonial na África Ocidental etc. Há um amplo consenso na Alemanha, incluindo cada vez mais também a AFD, de que manter viva a União Monetária deve ser a prioridade máxima da política alemã, pois a moeda comum é a principal fonte da prosperidade alemã. Há pequenas diferenças sobre o valor da compensação a ser paga pelo contribuinte alemão, em nome das indústrias de exportação alemãs, a países “perdedores” como Itália, Espanha e França por se agarrarem ao Euro, sobre a melhor ― menos visível ― forma de pagamento, e quem seria melhor em negociar o preço para baixo.

Quanto à AFD, ela não tem nada a mostrar com relação à crise da covid, já que não tem participação no governo, seja em nível estadual ou nacional. Desde seu ponto mais alto após a chamada “crise dos refugiados”, há cinco anos, não conseguiu desenvolver uma identidade programática confiável. Hoje, está dividida internamente entre uma maioria declinante de conservadores de direita e uma minoria crescente de nacionalistas radicais de direita. Nesta posição, ela se oferece como inimigo público nº 1 para os partidos centristas, que mantêm seu campo unido, excluindo não apenas a própria AFD, mas o que quer que ela possa dizer no domínio da respeitabilidade constitucional. Apesar disso, a AFD parece ter um núcleo duro de apoio ao redor de 10% do eleitorado, especialmente entre os homens jovens.

Em sua formulação sobre o interregno, em How Will Capitalism End?, aponta-se oito problemas insolúveis do capitalismo, tais como o crescimento declinante, o aumento da desigualdade e a impossibilidade de gestão macroeconômica. Sou um pesquisador brasileiro, que lida com tais “problemas insolúveis” como problemas crônicos do capitalismo dependente. Passados quase treze anos da falência do Lehman Brothers, será que não se deveria dizer que o capitalismo encontrou novo padrão, comandado pelo Quantitative Easing do Fed (o qual se repetiu na pandemia), em lugar de estar sem direção? E o diagnóstico pessimista sobre o futuro do capitalismo é relativo apenas ao capitalismo ocidental ou também se refere ao capitalismo que se desenvolveu no oriente, em torno da China, país que desde 2008 manteve taxas altas de crescimento e ainda controlou de forma relativamente rápida a pandemia, minorando seus efeitos econômicos?

W.S. — Novamente, se o capitalismo é um sistema econômico e social cuja estabilidade depende da acumulação ilimitada de capital privado com o objetivo de produzir mais capital privado, então QE não é mais do que a contrapartida monetária da expansão ilimitada da dívida fiscal, necessária para fechar a lacuna cada vez maior entre os custos crescentes do capitalismo e sua disposição decrescente de pagar por eles. Além disso, como mantém as taxas de juros baixas, incentiva a especulação em mercados de ativos, e, na medida em que promete proporcionar “estabilidade financeira”, garante aos proprietários de ativos que o valor de suas participações não será corrigido para baixo. Como resultado, os 1% mais ricos ficam ainda mais ricos, no decurso da inflação do valor dos ativos, e a diferença de riqueza entre eles e o restante da sociedade continua crescendo. Que é “um novo padrão” apenas na medida em que é um novo instrumento, adaptado ao capitalismo financeiro, para assegurar que aqueles que acumulam capital privado prosperem enquanto o restante deve buscar como obter uma parte dos lucros, se é que consegue alguma coisa.

Acredito que o que você está perguntando é se isso pode continuar para sempre, e é claro que não pode, embora nós, como sempre, não saibamos quanto tempo vai durar e o que virá depois. Quanto às consequências, para os países periféricos, do “novo padrão” (que, como disse, é fundamentalmente um padrão bastante antigo), é seu trabalho descobrir. Meu palpite é que se deve olhar especificamente quais são as consequências ― dos esforços americanos para resgatar o capitalismo da estagnação secular ―, para as elites dos países periféricos, o que elas recebem por participarem disso e como as vantagens que obtêm as impedem de fazer coisas úteis para seus próprios países. Se seus cochos estão em Nova York, por que elas deveriam se preocupar com São Paulo?