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Lágrimas de Narciso1

Cinema mudo, Carlos Fajardo

Se inclina, vai beber, mas outra sede o toma:
enquanto bebe o embebe a forma do que vê.
Ama a sombra sem corpo, a imagem, quase-corpo.
Se envaidece de si,
mirar-se, admira o que nele admiram.
Deseja-se a si próprio, a si mesmo se louva, súplice
suplicado, ateia o fogo e arde.
Quantos beijos vazios deu na mentira d’água!
Quantos vezes tentou captar o simulacro e
mergulhou os braços abraçando nada!

Ovídio, Metamorfose

(trad. Haroldo de Campos)

Um reflexo rubro. Não, três reflexos na cor vermelha. Uma gota de sangue tinge a cristalina fonte. Inclinado, Narciso mira-se e admira a obsessiva beleza refletida no espelho d’água. Deseja infinitamente a si próprio. Tenta, por uma última vez, beijar o simulacro, os lábios refletidos na líquida face tendem para os seus, o outro na fonte também aspira a Narciso, mas acaba por mergulhar os lábios, beijando o nada. Quantas vezes tentaram se acariciar em vão, é quase como se tocassem, mas um mínimo sempre os impede. O que busca não há, porém insiste amando a mentira d’água. Outra gota de sangue cai do peito do mito grego na perfeita superfície cristalina, produzindo rubras ondulações circulares por onde o fugaz fantasma de água se dissipa.

A rubra superfície lentamente volta à sua lisa forma original, agora, outras imagens tomam forma no cristalino espelho e, como no mito grego, os espectadores se perdem fascinados pelos belíssimos reflexos que parecem flutuar e submergir na curiosa caixa de vidro. Porém, neste espaço de um líquido especular, é como se as imagens virtuais multiplicadas procurassem deixar de reproduzir os nossos movimentos e, de maneira fantástica, se rebelassem contra a tarefa de imitar os atos que produzimos diante da obra, é como se tivessem adquirido vida própria e nadassem livremente na superfície cristalina da caixa.

A vítrea caixa quadrada está sobre o chão abaixo dos seus joelhos, ela tem 2 m de lado e 20 cm de altura, porém, através de um jogo de reflexos, ela toma a aparência de uma profunda piscina, contendo um líquido vermelho reluzente. Admirado, você decide observá-la com extremo cuidado, reclina um pouco mais o seu corpo sobre ela e, após muito ponderar, ainda não é capaz de dar conta da engenhosidade do artista. Pergunta a si próprio se a rasa caixa possui três ou mais chapas de vidro quadradas? Quem sabe um espelho ao fundo e outra placa transparente recobrindo a superfície superior da caixa? Vidros paralelos entre si e, entre eles, provavelmente, um terceiro vidro colorido vermelho, semitransparente e semirreflexivo, inclinado cortando a caixa de ponta a ponta? Talvez a luz ao atravessar e, simultaneamente, refletir-se nas distintas camadas de vidro irá produzir a sobreposição e o deslocamento de três reflexos: são três imagens contempladas na superfície da caixa com leves diferenças de tamanho, de densidade e de deslocamentos entre si.

foto: Maciel Goelzer

A imagem, ou melhor, as imagens resultantes na caixa são tingidas pela cor desse possível vidro inclinado em intensidades distintas de cor. Uma espécie de velatura de reflexos vermelhos e quase vermelhos nos é devolvida pela obra fazendo com que uma única e mesma imagem seja triplicada em uma bela sobreposição de cores. Uma imagem, também, de irreal profundidade que, em si, joga para dentro da rasa e rubra piscina uma estranha fundura ao inverter para dentro da caixa a perfuração de uma ampla claraboia que ao atravessar o teto da galeria te convida à luz natural. A invisível trajetória da luz que garante a visibilidade do mundo e sua inversão são fundamentos da experiência estética dessa obra de arte que faz parte da exposição Espelho no espelho de Carlos Fajardo, onde mais sete obras do artista, por meio de uma rede de reflexos de luz, redesenham todo o espaço expositivo do Instituto Ling.2

Entre a luz da claraboia e a caixa, você encontra a si mesmo, contemplando a obra cuja superfície reflexiva contém três vezes o seu rosto, três vezes o seu olhar é sobreposto aos belos matizes vermelhos e devolvido a você.

Evasiva e fria como um cristal foi a soberba de Narciso diante da paixão de todos seus pretendentes, porém agora o menino d’água o encara com a mesma frieza, um gélido e intransponível mar os separa. Em toda sua vida jamais houve outro para Narciso, nenhum ou nenhuma jovem; mesmo as mais gentis ninfas, a sua arrogância as desfez em lágrimas; sequer a natureza dos perfeitos bosques ou a argêntea lua cheia tomaram a sua atenção. Porém, agora, o mito arde de amor. Narciso gentilmente sorri e o jovem lhe sorri, as suas lágrimas são respondidas com lágrimas, ao seu aceno, também, acena. Advinha as palavras na linda boca molhada, móveis palavras que, contudo, não chegam ao seu ouvido e, por fim, percebe serem cópias das suas tais palavras. Percebe ser “eu” este outro! Queima no amor por uma ilusão, a fútil imagem de si próprio. Corpo não há que possa lhe amar. A dor da cristalina impossibilidade o vence. Narciso deseja queimar a própria carne, separar-se daquilo que é para se aproximar do nada que ama. Pune o peito nu com seus dedos; ferido, o peito vai tingindo de rubro, ambos.

Na rubra poça cristalina em que você admira seu belo reflexo, você pergunta a si mesmo se a obra não se perde no mesmo erro de Narciso, pois, não apenas inclinado a se perder na autoimagem, a obra lhe conduz a um efeito líquido vertiginoso. Muitos inclusive receiam aproximar-se dela com medo de cair dentro de sua profundidade ilusória, pois esta não apenas espelha inversamente a alta profundidade do teto da galeria com suas luzes flutuando como se fossem confetes na superfície vermelha, mas, muito mais que isso, a obra espelha inversamente o buraco que atravessa o teto indo em direção ao céu, produzindo uma profundidade ainda mais deslumbrante e assustadora. Precisamente colocada sob a claraboia e com uma dimensão similar a esta, a obra foi pensada pelo artista para abrir o próprio espaço da galeria em uma inversão ilusória. Assim, a potência estética da obra não vem apenas reproduzir a minha imagem, mas, também, engolir e devolver o espaço que me cerca, incluindo todos os demais admiradores que se aventuram à beira dessa fantástica piscina.

Isso é extremamente central na experiência de um Espelho no espelho; desde o primeiro vidro que nos convida à exposição já temos o exemplo dessa precisa articulação de uma reflexão que necessariamente porta muito mais que um eu a admirar-se. Esse primeiro vidro encontra-se ao final de um largo e longo corredor que conduz à sala de exposição do Instituto Ling. Uma placa de vidro laminado amarela e quadrada com aproximadamente 2 m de lado foi posicionada, de maneira inclinada, de pé, apoiando-se na parede, tendo sua base encostada no chão a uma distância de uns 20 cm da parede.

O vidro foi precisamente posicionado pelo artista para ter a sua esquerda o mundo e a sua direita a exposição. Você na frente da obra precisa se deparar com esses dois universos que, refletidos, escorregam para o interior do trabalho. Por um lado, à esquerda, o corredor que leva à obra é constituído por uma extensa parede de vidro por onde o arborizado espaço externo pode ser visto. A luz natural, a vegetação, os pássaros e as folhas penetram lateralmente na obra em um belo e tênue reflexo amarelado. O móvel trajeto da luz solar durante o passar do dia nitidamente penetra na obra, alterando por completo o efeito reflexivo desta. O próprio ar livre é, também, de maneira mais delicada sentido por meio das folhas que ao vento balançam dentro do belo reflexo, assim, o transcorrer do tempo acontecendo no mundo lá fora é visto no interior do vidro amarelo.

Por outro lado, à direita da obra temos a entrada para sala de exposição, mas sequer é necessário se virar para adentrar à sala, pois através da superfície do vidro amarelo você vê a obra refletir a integridade da exposição que se encontra ao lado. Seus olhos instantaneamente, pelo reflexo, já o conduzem para dentro da sala onde grandes superfícies vítreas foram trazidas para o espaço pelo artista. Superfícies que não apenas espelham-se reciprocamente, mas também multiplicam a própria arquitetura cujo espaço, ilusoriamente, torna-se outro. Tais vidros apoiados nas paredes se apresentam como estranhas passagens, interagindo com o próprio ambiente, operando como uma grande e sutil instalação que virtualmente rearticula, dobra e de forma ilusória perfura o espaço da galeria. Basta aproximar-se da obra amarela e você já especularmente penetra no jogo de reflexos que constitui toda a exposição.

A obra extrapola o autocentramento narcisista, abrindo-se para um outro espaço de contemplação. Muito mais que perder-se em sua infinita beleza, a verdadeira dificuldade encontrada no mito e que lhe tolherá a vida vem a ser a ausência do corpo amado, pois viver exclusivamente para uma imagem sem tato, calor e carne é o que o conduz à morte. Para que a obra de arte seja capaz de atravessar seu narcisismo, escapando em certa medida à admiração mortal, ela precisa encarnar um corpo em ato e colocá-lo no centro da cena.

Isto se torna nítido ao nos aproximarmos da obra amarela pelo longo e largo corredor, pois o corredor e, principalmente, as pessoas que caminham em direção à exposição, são trazidos para dentro do reflexo amarelo. Mais do que produzir uma mera imagem, a obra te localiza no espaço, você tem a consciência do espaço e das pessoas que literalmente te cercam. As presenças, a tua e dos outros, estão colocadas em relação à obra, o que em ato está dentro da imagem é um espelho do que está do lado de fora e o que está do lado de fora é tocado e se relaciona por meio da projeção amarela da imagem. Superar a imagem do corpo fechado em si mesmo a partir de uma relação em ato entre corpos vivos interagindo entre si, ou seja, colocar as pessoas em relação é uma das experiências mais centrais e intensas da obra de Fajardo. Voltaremos mais vezes a essa experiência após adentrarmos à sala de exposição e nos perdemos em seus acúmulos de reflexos.

foto: Fábio Del Re

Agora, se nos voltamos para a superfície amarela em questão, somos capazes de notar que um dentro e um fora se fazem nítidos em relação ao corpo de vidro que não apenas reflete as ilusões, mas em si ganha corpo. Literalmente, são três corpos: o externo, o próprio corpo de vidro e o interno. O externo somos nós cujos corpos se relacionam no interior da imagem refletida. Há o próprio corpo do vidro, acentuado não apenas a partir da imagem refletida, mas a partir de algo que até então não havíamos mencionado: a existência de um terceiro corpo por trás do vidro.

Assim como o mundo virtualmente escorrega para dentro da brilhante e ilusória superfície amarela, há uma segunda superfície completamente material que escorrega para dentro da obra. Fajardo contrapõe a ilusória superfície a uma outra que opera em quase tudo em sua contrapartida, pois ela não vem refletir, mas de maneira extremamente opaca absorve a luz. Opondo-se à forma lisa, dura, transparente e reflexiva do vidro amarelo, temos uma superfície opaca, mole, composta por camadas sobre camadas de fibra pressionada, temos um quadrado de um espesso feltro branco com aproximadamente 2 m de lado. São dois quadrados, um de vidro outro de feltro, um deslocado em relação ao outro por meio de um giro, fazendo as pontas do feltro ultrapassarem os limites do vidro na lateral esquerda e em seu topo. Por trás do vidro temos essa segunda superfície que levemente girada parece escorregar. A partir da ponta superior, a densa e pesada superfície feltro inclina-se para frente, desenvolvendo uma curvatura conforme seu caimento e na extremidade dessa curvatura temos a outra ponta do feltro a tocar o vidro exatamente onde ambos tocam o chão.

No feltro você percebe a sombra de uma transparência, a placa de vidro produz uma leve sombra sobre o anteparo opaco do feltro e sobre a parede, tingindo ambos de amarelo. Diferentemente da piscina vermelha cuja superfície negava sua rasa profundidade, criando a ilusão de uma aguda profundidade líquida, a placa amarela volta para a concretude de seus 8mm de vidro, com seus 2 m de lado e 100 kg inclinados, escorando-se na parede. O feltro que parece escorregar por traz da placa de vidro é preso por meio dessa transparência pesada, o vidro o pressiona contra a parede, a obra precisa da parede, fazendo questão de literalmente escorar-se e pressionar o feltro na superfície da galeria em que nos encontramos.

No peso do vidro, sobreposto à curvatura do feltro, você contempla mais uma vez o seu próprio reflexo, porém agora uma tensão entre um dentro e um fora é estabelecida junto à sua imagem e com você tudo paradoxalmente escorrega para dentro do vidro: a luz, as árvores, a arquitetura, o espaço expositivo, você, eu e mesmo o tempo. A obra nos remete aos nossos corpos acontecendo em ato do lado de fora, dobrando-se no tempo, assim como o feltro literalmente dobra-se do lado de dentro.

Assim como o denso feltro, há uma segunda obra que desafia a soberania ilusória dos jogos de espelhos que constituem a intrincada rede de reflexos da exposição. A obra é constituída por nove imagens fotográficas impressas em uma superfície de papel algodão opaca, a qual recebeu a velatura de um tom vermelho-laranja escuro. São nove imagens de um 1 m × 68 cm que foram agrupadas para formar um grande painel de 2 m de altura por 3 m de largura. Contrariando as regulares bordas das nove fotografias que agrupadas formam uma grande grade, temos que as imagens no interior dessas bordas são fluidas, praticamente sem contorno, desfocadas, encontrando-se no limite do reconhecimento. A desarticulação da forma por meio da ausência de contornos nas imagens faz com que a obra se dilua em uma grande superfície tátil alaranjada e opaca.

A falta de foco transforma tais imagens em algo brumoso, algo fluido, uma imagem nevoenta que ao mesmo tempo está fragmentada em nove pedaços regulares. Contudo, tais pedaços de indefinições evocam fragmentos de delicados corpos femininos: pernas, coxas, pés entrelaçados, pele bem de perto, poros, um rosto, nádegas, ancas, seios, pedaços humanos dissolvidos. A falta de foco nos remete à experiência de corpos colados, um sobre o outro, corpos tão próximos que o olho não tem a distância mínima para formar o foco. Proximidade ao ponto de fricção das peles, um em outro, um dentro de outro e sobre um leito entre lençóis. A obra procura formar a imagem de algo impossível, procura expressar a imagem da experiência do toque. Uma imagem não mais dada pela percepção visual, mas pela experiência tátil da sinestesia entre ver e tocar.

foto: Fábio Del Re

A própria superfície da obra nos convida a nos aproximarmos dela para contemplá-la bem de perto e quase tocá-la. A imagem está ampliada em um papel de fibra de algodão extremamente delicado, sendo nítida a textura de sua superfície que nos evoca a textura de um fino lençol de uma cama. A imagem também remete a algo como uma turva visão de duas pessoas olhando uma para outra debaixo de um lençol, por isso há pouca e bem difusa luz na figura que reitera a ausência da nitidez nas imagens. O conjunto desfocado procura expressar não a visão, mas a quase impossível imagem da experiência das carícias daqueles que se encontram por debaixo dos tecidos e cujas peles também sentem o toque do leve e fino tecido que também acaricia seus corpos. A delicada e porosa textura de algodão da obra evoca tanto a superfície do fino tecido, como a superfície da pele, além da troca de carícias entre eles. A experiência estética com a obra pede que nosso corpo se aproxime bem de perto, quase se cole à pele dos corpos desfocados na fotografia. Uma experiência recorrente nas obras de Fajardo, essa experiência háptica e sensual que nos faz pelos olhos querer tocar, esfregar e acariciar suas obras.

Além disso, a ausência de corpos definidos sobreposta à fragmentação das nove imagens justapostas estimula o observador a enxergar a interação entre os múltiplos corpos colados entre si. Talvez porque pouco seja definido pelas imagens, o choque entre as fotografias convida a imaginação erótica do espectador a entrar em ação. Cada um diante da obra é capaz de atualizar as fantasias que habitam suas cabeças e eis que na delicadeza da quase indefinição imagética, certos espectadores chegam a ver cenas pornográficas, embora outros contemplem apenas a pureza da figura amada em repouso sob a luz do luar. Assim, a obra estimula a vontade erótica de consumir corpos pela imaginação. São quase imagens e são quase corpos, são cópulas imaginárias entre um corpo e uma imagem: são a imagem da atividade sensível de formar um corpo, de ter um corpo, de experimentar um corpo. Ao contrário do mito de Narciso, tais imagens são imagem não de uma imagem, mas uma imagem ao toque.

Não por acaso, tais fotos se encontram em uma precisa relação espacial e cromática com a rubra piscina de espelhos com que entramos no mundo de Narciso. As fotos estão na parede logo atrás da caixa, fazendo com que suas imagens mergulhem na rubra piscina; e, por incrível que pareça, a cor dos vidros, de algum modo, é capaz de sair da piscina e tingir a leve cor originalmente alaranjada em um matiz avermelhado como o sangue. Tal é a força do espelhamento entre elas, mesmo a superfície não reflexiva que estaria isenta de transformação vem de algum modo ser transformada. Muitos visitantes inclusive acreditam que se trate de uma única obra.

Uma vez que o corpo fotográfico em muito dista da performatividade das superfícies especulares de Fajardo, o que a contraditória e estanque imagem das fotos mergulhadas na líquida multiplicação na fonte de Narciso nos ajuda a, mais uma vez, ressignificar tais imagens? Como os reflexos na rubra piscina podem nos ajudar a compreender o corpo fragmentado da fotografia e o nosso próprio corpo diante da obra e o mesmo refletido nos vários espelhos da exposição? Para uma possível resposta precisaremos nos voltar a um Narciso subjetivamente moderno, recorrendo a uma das linhagens de interpretação psicanalítica do mito. Uma linhagem que tem seu primeiro ponto chave em 1914 em “Introdução ao narcisismo”, de Sigmund Freud, onde o autor redefinirá a imagem de Narciso como um dos conceitos fundamentais da psicanálise e da subjetividade moderna, e que possui o segundo ponto-chave em 1949 em “O estádio do espelho como formador da função do eu”, de Jacques Lacan, quando a teoria psicanalítica de Narciso será vista através de um espelho.

Freud irá propor uma distinção entre duas espécies de narcisismos: o primário e o secundário. Este último, em tudo se aproxima à forma em que, até aqui, inicialmente lemos o mito grego como um sujeito que volta seu erotismo exclusivamente em direção a si, tornando-se incapaz de direcionar sua libido para o resto do mundo. Em um autocontentamento patológico esse sujeito vai constituindo uma psique sem entradas e saídas, inacessível, fechada em si, tornando-se uma figura devorada pelo exclusivo amor a um objeto que não é outro senão ele próprio. Como resultado desse narcisismo secundário, Freud encontra a melancolia, a paranoia e a hipocondria. Um quadro que se constitui como mais um mero reflexo da triste imagem que apresentamos do mito e em nada nos ajuda, agora, a atravessar as imagens e espelhos propostos pelo artista. Já a outra categoria freudiana, o narcisismo primário, será capaz de nos auxiliar a dar novo sentido a esse reflexo de corpo fragmentado.

Para Freud o narcisismo primário é um momento fundamental na formação da psique do sujeito moderno, sendo ele o estágio que promove a constituição de uma imagem de si unificada, coesa e inteira. Nos estágios mais iniciais da vida de um bebê ainda não existe uma consciência que o separe das coisas, pois ainda não é capaz de produzir um contorno que o delimite em relação ao mundo; o seu corpo não é uma unidade, ele sequer existe para si, mas possui uma indiferenciação em relação ao mundo e ao corpo da mãe. O narcisismo primário vem a ser justamente a passagem a um estado em que, através do autoerotismo, o sujeito volta-se finalmente para si e se distingue do outro. O narcisismo seria o primeiro momento em que o sujeito é capaz de contemplar a si mesmo, produzindo uma consciência de que existe enquanto uma unidade, enquanto um corpo. Surge a consciência como um duplo do corpo capaz de identificar esse corpo com um algo, com um objeto único. O narcisismo primário seria integrador da imagem corporal, ele investe no corpo e lhe dá dimensões, proporções e a possibilidade de uma identidade, de um Eu.

O narcisismo primário, também, simultaneamente, ultrapassa o autoerotismo fechado em si, pois, ao fornecer a integração de uma figura positiva e diferenciada de si, ele nos fornece a capacidade de auto-observação, de autoconsideração e somente a partir dessa consciência de um eu que é, simultaneamente, surge a consciência de que existe o outro. É preciso me constituir como um eu para que também exista a integração de uma figuração positiva e diferenciada do outro, e, sobretudo, do outro em um estatuto sexuado, do outro como um objeto de desejo.

A própria psicanálise irá encontrar um outro para “Introdução ao narcisismo” de Freud, um duplo de sua teoria. Em 1949, Jacques Lacan coloca a introdução freudiana ao narcisismo em um palco repleto de espelhos. Um palco, um anfiteatro, um estádio: “O estádio do espelho como formador da função do eu” para que a teoria de Narciso seja duplicada e vista através de um espelho.

Para Lacan, há um narcisismo originário que amplia e, simultaneamente, reverte a teoria da consciência narcísica de Freud em alienação, um narciso que se dá a partir da transformação produzida no momento em que a criança pela primeira vez observa a sua imagem no espelho e passa assumir tal imagem como o eu que a constitui. O período corresponde à fase da primeira infância onde ocorre a passagem das fantasias de um corpo fragmentado ou despedaçado para formar pela primeira vez uma unidade a partir da imagem total do corpo encontrado no espelho. A visão do corpo inteiro desperta manifestações de júbilo na criança que, contudo, imediatamente, precisa olhar para o adulto para encontrar, no olhar do outro, a confirmação do que vê no espelho como sendo ela. Através do olhar do outro, a criança precisa confirmar o que seu próprio olhar lhe mostra e esse jogo de olhares e reflexões a define e, ao mesmo tempo, a aliena de seu próprio corpo.

Uma primeira associação possível das obras de Espelho no espelho ao Narciso psicanalítico vem da interpretação de que as fragmentárias imagens eróticas estampadas nas fotos na parede seriam da ordem de uma perda da consciência do sujeito enquanto um corpo unificado. Teríamos nas imagens a fragmentação, ou melhor, a diluição da experiência de um corpo que no momento de gozo erótico já não mais se constitui como um. Tais imagens estariam numa expressão erótica de dissolução do sujeito aquém ou além tanto da constituição do eu, como da separação entre eu e o próximo amado, ou seja, aquém ou além do narcisismo primário, portanto são logicamente distintos da contemplação do sujeito ao ver a unidade de si em seu duplo no espelho. Já afirmamos algo do gênero ao analisar eroticamente a qualidade das imagens fotográficas, porém, cremos que esta é apenas a associação mais superficial da obra de Fajardo ao narcisismo dos psicanalistas. Há, então, uma segunda associação, bem mais profunda, ligada à duplicação subjetiva e estética pelas imagens nos espelhos, uma contraditória relação entre a identidade da autoimagem e alienação de si mesmo.

foto: Marília Pisani

Para Lacan, o estádio do espelho ao formar o sujeito leva, contraditoriamente, a uma dupla alienação que o constituirá para o resto de sua vida. A dupla se dá, em primeiro lugar, pela fantasia especular de um sujeito que não pode reconhecer a si mesmo, mas precisa, fora de si, da imagem virtual de um espelho; e, em segundo lugar, a alienação se dá pela necessidade da confirmação do olhar de um estrangeiro. Vejamos, a alienação constitutiva nos sujeitos é dada a partir de um outro de si imaginário que irá constituir a própria identidade do sujeito não a partir de sua consciência, mas partir de uma ilusão, uma imagem, uma ficção de si, uma Imago. Além disso, a alienação se encontra na dependência desse olhar sempre de fora, da constituição de nós mesmos, sempre a partir de um outro. Formar-se em outro e não na consciência de si é uma alienação necessária, no latim alio quer dizer “outro” e também provém o nosso termo “alienação”.

Vejamos como os espelhos de Fajardo lidam com essa dupla alienação. Você caminha na exposição e, do lado direito da rubra caixa no chão, vê uma grande superfície reflexiva de vidros sem cor e com diferentes níveis de espelhamentos e transparências. Grandes placas reflexivas inclinadas, escoradas no chão e na parede, ficam quase paralelas a você, como se estivessem de pé a sua frente. Da esquerda para direita temos que a primeira grande placa é de tom cinza escuro; a segunda, de um prata semiespelhado; a terceira é um vidro por completo transparente e a quarta e última superfície apresenta um tom leitoso esbranquiçado. Porém, tais placas se entrelaçam, estando apoiadas não apenas na parede, mas umas sobre as outras, quase que metade da superfície de cada placa é sobreposta pela placa consecutiva fazendo com que passemos de quatro tipos de reflexão e transparência para sete tipos. Por exemplo, a superfície cinza escura ao ser sobreposta pela prateada semiespelhada produz uma superfície 100% espelhada e nada transparente, ou seja, um verdadeiro espelho. Já as outras combinações entre as placas consecutivas produzem espelhamentos e transparências variadas. Além disso, há um segundo fenômeno, pois as placas ao serem sobrepostas formam entre si leves ângulos e seus reflexos ao se sobreporem geram um descasamento entre as imagens refletidas.

O que tudo isso tem a ver com alienação da imagem de Narciso em Lacan? A ausência de cor na obra somada às subdivisões das placas apoiadas umas sobre as outras fazem com que ela produza algo como sete diferentes espelhos verticais todos com a proporção próxima a um corpo humano. Diante da obra temos devolvido para nós sete tipos diferentes de reflexos de nosso corpo por inteiro e, mais ainda, cada vez que as placas se sobrepõem, a duplicação de nosso corpo ocorre duas vezes, reduplica-se, acumulando sobre si mesma duas figuras deslocadas uma em relação a outra.

foto: Henrique Xavier

Ao percorrer a obra, andando à sua frente vemos ser formado uma espécie de estranho ritmo de construção e desconstrução dessa imagem identificadora de nosso corpo e de nós mesmos. A cada término e sobreposição de placas um diferente tipo de reflexo e imagem de nós mesmo é formado. Da sombra cinza escura de nosso contorno, passamos a um espelhamento total e cristalino, então nos tornamos um tênue reflexo quase invisível sobre o vidro transparente, para por fim sermos cobertos por um opaco reflexo leitoso. As reflexões nos devolvem a nós mesmos tal qual somos? Nos devolvem uma imagem na qual podemos nos identificar? Contudo, temos distintas reflexões de nós mesmos, desde uma sombra a um tênue fantasma, passando por uma imagem quase imperceptível até a mais realista projeção especular de nós mesmos, ou somos cobertos por um leito branco que praticamente nos apaga. A experiência estética da obra produz um conjunto que evidencia o caráter ficcional dessas imagens que aparece no outro lado do vidro, não nós mesmos, mas apenas uma imagem distinta de nós mesmos, uma imago como salientou Lacan.

Mais ainda, entre cada uma dessas passagens entre as imagens se sobrepõem duplos efeitos em duplos de duplos de nós mesmos, no acúmulo de dois reflexos em ângulos distintos na sobreposição das placas: somos um, somos dois, somos três e, novamente, somos um somos dois somos três assim por diante ao percorrer reflexos na obra. É uma sensação bela e estranha ao mesmo tempo, há um ritmo de tons de cinzas e de transparências, de um e de múltiplos nós mesmos nas superfícies espelhadas. Um ritmo de imagens que rapidamente se estilhaça, pois cada novo conjunto de imagens é formado em um ângulo distinto do anterior, fazendo com que suas fronteiras imagéticas não se encontrem nesse contínuo de reflexões. Algo como se a bela e grande superfície reflexiva de Fajardo funcionasse como um espelho quebrado, fazendo com que em seus estilhaços nos sejam, simultaneamente, devolvidas à mesma e outra imagem de nós mesmos, evidenciando não a identidade, não o realismo, mas a imago, a alienação, própria e bela ficção de um e todo espelho.

Você admira a grande obra de espelhos sem cor diante de você e inelutavelmente, também, contempla através do reflexo a obra colorida que se encontra a suas costas, uma colorida obra espelhada que reciprocamente espelha a obra sem cor à sua frente; as obras encaram-se, refletem-se, olham-se uma para a outra. As dimensões e forma com que as diferentes obras de espelhos são dispostas no espaço da galeria necessariamente são pensadas para que através de seus reflexos uma dialogue, ou melhor, esteja refletida em outra e, no caso, temos uma das montagens privilegiadas por Fajardo em que duas obras são postas face a face, como dois espelhos a se olharem, espelhando-se ao infinito. E já estamos na experiência da alienação presente na obra que associamos à segunda alienação do Narciso de Lacan, dada pela necessidade de se formar pelo olhar do outro, pela necessidade de se completar não em si, mas sempre em outro.

A nova obra, ainda que também realizada com vidros reflexivos escorados por seu peso no chão e na parede, em muito dista da obra incolor em que você se contemplava. Agora ela se dá por uma vasta área de cor que chama a sua atenção por trabalhar com algo que lhe recorda a uma das mais tradicionais técnicas da pintura: a velatura. A velatura é uma técnica em que o pintor sobrepõe camadas de tinta semitransparentes. Nessa técnica, espera-se que uma camada de cor se torne seca para em seguida aplicar sobre ela mais uma fina camada translúcida ou quase transparente de tinta, aplicam-se camadas, uma sobre a outra, deixando ver através das transparências os tênues “véus” de tinta que foram sobrepostos. A velatura é uma técnica da pintura realizada por um acúmulo de véus transparentes de tinta. A obra de Fajardo com vidros produz algo do gênero: a sua extensa superfície reflexiva de cor azul é acompanhada das cores amarelo, verde, laranja e roxo que não existem por si, mas são o resultado de camadas, ou melhor, “véus” de transparências de cores em vidro que, sobrepostas, alteram a profundidade do belo matiz das cores envolvidas. A grande área azul é assim formalmente emoldurada pelo excesso de vidro das placas que escapam pelas laterais, faixas de cores em vidro, as mesmas que sustentam e constituem a profundidade do peculiar azul: verde e amarelo e, pela direita; roxo e laranja, pela esquerda. A obra desse modo, por um lado, constitui-se simplesmente de grandes e belas áreas de cor em vidro, trazendo características estéticas de superfícies de cor uniforme como pinturas abstratas. De fato, podemos dizer que o seu assunto é cor, tal qual nas obras de pintores contemporâneos e admirados por Fajardo, como seus colegas e amigos, Eduardo Sued e Paulo Pasta.

foto: Fábio Del Re

Porém, a perfeição do vidro longe de toda dimensão expressiva gestual em sua lisa superfície produz algo contrário à abstração da cor, pois a obra, simultaneamente, torna-se um universo de imagens coloridas. A sobreposição dos vidros forma imagens de um modo muito especial, pois os reflexos não apenas são tingidos pelos brilhantes matizes, mas os diferentes ângulos em que os vidros estão apoiados na parede, produzem o descasamento entre os traços e as áreas de cor das imagens, produzindo uma espécie de fantasmagoria em que o corpo das imagens não consegue se estabilizar em um único corpo, pairando aquém ou além de si mesmo.

De modo superficial, pois aqui tudo se trata da profundidade de superfícies descasadas, as imagens nos espelhos coloridos remontam com grande intensidade às célebres imagem de um dos artistas mais narcisistas da arte contemporânea, o mesmo capaz de reproduzir clones de si próprio e de literalmente estampar o seu autorretrato em uma miríade de imagens, nos referimos aos fantasmas de Andy Warhol e suas fotográficas-pinturas-serigráficas, como sua Marilyn mecanicamente multiplicada incontáveis vezes e incontáveis vezes sempre fora do eixo, o glamour de sua face choca-se com as chapadas cores artificiais dos lábios, dos cabelos, da sombra dos olhos, dos olhos, e do próprio rosto que jamais ocupam as precisas regiões que deveriam preencher em seu rosto. As cores vivas e chocantes ganham liberdade e entrecruzam-se em imagens, ocupando lugares que não lhes correspondem, algo muito similar também ocorre no colorido e quebrado espelho de Fajardo que, de forma mecânica, perfeitamente, duplica tudo com brilho e enorme beleza, mas o multiplicado sempre se encontra um pouco fora do eixo e fora de si.

Diante de tais obras de Fajardo sentimos um estranho glamour, sentimos nossos desejos mais narcisistas parcialmente preenchidos, a irônica democracia dos “quinze minutos de fama” proclamada por Warhol, pois somos trazidos para dentro da arte, nossas imagens instantaneamente são transformadas em arte, multiplicadas e cobertas por belíssimas e reluzentes cores, podemos dizer que somos o próprio centro de Espelho no espelho; e você percebe que a iluminação da galeria não está voltada para as obras, mas, sim, para o espaço vazio entre as obras, para o espaço de deslocamento do público, para o lugar onde você se encontra.

A experiência do deslocamento produzida pela multiplicação de imagens, no peculiar jogo de espelhos que envolvem nossa imagem, nossos corpos e desejos, simultaneamente, exige que nos debrucemos criticamente sobre nós, pois, ao nos depararmos com tais imagens fora de si nos perguntamos se não apenas a nossa imagem foi deslocada, mas, principalmente, algo em nós mesmos?

Resta ainda a mais solitária e mesmo ensimesmada obra da exposição, a única que talvez, realmente, deveria receber o epíteto grego de narcísica. Tal como o olhar de Narciso que, sem cansaço, volta-se apenas para si mesmo, a própria imagem na obra volta a sua face a si mesma; assim como o belíssimo olhar do mito prende-se a um ciclo de repetição ao se perder em sua infinita beleza, a imagem da imagem na obra se perde no interior de uma pequena caixa que por dentro de si é uma prisão infinita de reflexos.

Uma caixa capaz de realizar uma alegoria da exposição como um todo, ainda que a obra não opere como uma ilusória poça líquida sobre o chão, nem mesmo assuma a produção de fantasmas a tomar a integridade de nossos corpos ou sequer realize o tingimento da realidade em arte por meio de véus de cores.

É uma caixa, até certo sentido, similar à caixa rubra de reflexos líquidos sobre chão. Porém é uma caixa pequena, com apenas 1m de largura por 0,50m de altura e 12cm de profundidade. Encontra-se pendurada na parede à altura do rosto de uma pessoa de estatura média. À primeira vista, tem-se uma caixa quase que inteiramente negra, com suas laterais fechadas por madeira pintada de preto.

Uma caixa solitária, contendo uma dimensão muitíssimo inferior às demais obras reflexivas da exposição e, ao mesmo tempo, ela é a obra que recebeu o maior espaço de parede branca da galeria. Há um enorme vazio entre essa pequena obra e as demais obras que a cercam. A sua moderada dimensão nesse amplo vazio convida a nos aproximarmos da caixa, preparando-nos para adentrarmos em uma reflexão mais íntima, da ordem de um retrato.

foto: Maciel Goelzer

Claro que, se quisermos, podemos ver a exposição e o espaço do Instituto Ling refletidos na superfície, mas a imagem do meu próprio rosto em uma espécie de autorretrato, é o que se configura com maior intensidade na superfície reflexiva. Todas as outras obras envolvem uma dimensão muito mais corporal e arquitetônica, já a caixa está na proporção e altura para a reflexão exata de uma cabeça, um pescoço, ombros, parte do torso e, sobretudo, o rosto. A estranha reflexão da caixa nitidamente multiplica, torce e perde os contornos do meu olhar, das linhas em minha face, meus lábios, nariz; fazendo isso de um modo similar e, ao mesmo tempo, bem distinto dos demais reflexos da exposição. Pois, agora, além da bela multiplicação líquida, há um embaralhamento da imagem pela multiplicação infinita, infinitesimal, da mesma, em um realismo desprovido de contornos.

Como na rasa e líquida caixa vermelha, há três reflexos principais que deslocam a imagem de si e que são percebidos de forma mais imediata; porém há micros e infinitos reflexos que entram nos vãos entre as três imagens e exigem uma atenção mais detida. A construção dessa nova obra é similar à caixa vermelha; formando a ilusão de serem uma única superfície reflexiva, temos três planos reflexivos que se sobrepõe: um vidro transparente na superfície externa, um espelho no fundo da caixa e um plano de vidro laminado cinza escuro posto em diagonal do fundo até a superfície externa da caixa. Há algo muito singular no vidro inclinado, essa placa da cor cinza escura foi especialmente elaborada para realizar a tarefa de deixar que a mesma quantidade de luz que a atravessa também seja devolvida pela reflexão. Ou seja, a placa possui 50% de transparência e 50% de reflexão, aí se encontra o caminho para a curiosa multiplicação infinita e infinitesimal que faz com que eu, minha face, seja um espectador perdido na imagem de si mesmo.

foto: Maciel Goelzer

Vejamos, da luz total que provém da imagem da minha face e que chega à obra, uma porção pequena é de imediato refletida pela superfície transparente do vidro externo, formando a primeira imagem fantasmática de meu rosto; grande parte da luz irá atravessar o primeiro vidro, passando pelo primeiro vazio na caixa até alcançar a superfície inclinada de vidro cinza laminado onde, por um lado, metade da luz será refletida, formando uma segunda imagem deslocada da primeira que voltará em um ângulo diferente da anterior atravessando o mesmo espaço vazio e a superfície de vidro transparente, dirigindo-se aos olhos do espectador, eu mesmo. Por outro lado, metade da luz não reflete e atravessa o plano cinza inclinado, passando por um segundo vazio no interior da caixa, indo em direção ao espelho no fundo da caixa que irá refletir essa luz em sua integridade, constituindo a terceira imagem refletida de mim mesmo. A luz refletida no espelho volta pelo mesmo percurso atravessando o segundo vazio, o plano cinza inclinado, o primeiro vazio e o vidro transparente externo, indo em direção aos olhos do espectador, eu mesmo. Até aqui, tudo que descrevemos corresponde apenas à figura 01.

Figura 01.

Figura 02.

Em meio a essas três primeiras, começam os problemas das infinitas outras imagens. Como havíamos dito, o laminado cinza inclinado deixa que a mesma quantidade de luz que o atravessa também seja devolvida pela reflexão. Isso faz com que o trajeto da luz mais uma vez se duplique no interior da caixa — como está esquematizado na figura 02 —, pois a luz que forma a terceira imagem e que está sendo refletida no espelho no fundo da caixa, essa luz passa pelo segundo vazio para chegar ao laminado, apenas metade dela irá atravessar o laminado cinza para o primeiro vazio, passando pelo vidro transparente para, por fim, chegar aos meus olhos; a outra metade da luz irá se voltar mais uma vez para o segundo vazio e de volta para o espelho o qual, como sempre, irá refleti-la reciprocamente de volta em direção ao laminado onde novamente apenas metade da luz irá atravessar o laminado para o primeiro vazio, para o vidro transparente e para os meus olhos, a outra metade irá voltar para o espelho que novamente recomeçará o ciclo ad infinitum…

Tudo isso ocorre na velocidade da luz, em um intervalo de 12 cm de vazio no interior da caixa e com uma intensidade de luz cada vez mais fraca que, contudo, continua ao infinito infinitesimal. A imagem virtual é formada nas multiplicações de si em tais jogos de reflexos que tornam a imagem gradualmente cada vez menor e deslocada de si, dado a distância e angulação em que os reflexos são projetados na diferença espacial entre as três placas de vidro que bipartem o vazio da caixa em dois sistemas de espelhamento recíprocos. Sem descanso, a luz vai e volta, penetrando e se refletindo nos vidros incontáveis vezes. As imagens formadas pelos reflexos são jogadas umas sobre as outras e interpenetram-se nesse duplo espaço vazio, invisível, semitransparente e espelhado. Quase podemos imaginar a impossível fricção entre infinitos raios de luz se esbarrando em trajetórias cruzadas que estão presas a um perpétuo movimento de vai e vem, vêm e vão.

Temos a possibilidade de enxergar do exterior da caixa a nossa face de luz no interior de dois conjuntos simultâneos de jogos de espelhos que estão sobrepostos e cuja multiplicação infinitesimal da imagem produz um novo corpo cujo realismo espectral dilui seus contornos, uma espécie de desfoque é realizado pela sobreposição das infinitas imagens em que o espectador se vê na profundidade sem limites em um espectro que se dilui entre muitos e infinitos espectros. Tem-se diante de si uma imensa fantasmagoria de imagens de si mesmo que o miram de volta na multiplicação de um olhar abismal que vai em direção à interioridade daquele que nela se contempla. A pequena distância de 10cm do interior da caixa torna-se uma profundidade cinza e sem fim em que as imagens se perdem ao prender-se no interior de uma infinita prisão de luz.

A obra ganha vida própria: a face de um Espelho voltada para a face de um Espelho, tal como Narciso, contempla-se em uma imagem que ecoa mortalmente sua própria beleza em uma cena de horror. Não apenas as lágrimas salgadas partem de seus olhos em direção ao espelho de água, mas o mito dilacera o próprio peito para que seu sangue se misture ao cristal que o reflete. Se vivo não é capaz de acariciar a ilusória imagem, seu sangue por onde sua vida se esvai pode-se diluir na fluida imagem e Narciso finda-se na imagem da morte.

Narciso repousa a branca e cansada face na relva ainda úmida pelos respingos do sangue no espelho d’água e, por fim, a morte, admirando a sua beleza, vem lhe cerrar os olhos. Mas na relva verde corpo não há. Em seu lugar, floresce um delicado perfume por entre seis pétalas brancas e um funil central na cor de açafrão. A mais perfeita encarnação do amor por uma imagem, a intocável e sempre jovem beleza não se metamorfosearia em um cadáver. As lágrimas que aos incontáveis admiradores, agora, umedecem o olhar; essas salgadas gotas jamais irão se misturar à visão da decrepitude de um corpo. Pois Narciso morto é uma bela e perfumada flor. A flor que brota à beira das fontes e cujo caule possui uma curiosa curvatura, fazendo com que flor penda de modo que fique sempre virada para baixo, admirando-se a si mesma no cristalino das águas. Flor que recebera, em um eco à sua mítica e inalcançável beleza, o seu mesmo nome: flor de narciso.

Você sente um sutil odor ao caminhar pela exposição, ainda que muito delicado, certamente percebe o odor de uma planta. Mas seria o perfume da flor de narciso? Os vidros possuem imagens, mas não cheiro, você observa pelos reflexos a multiplicação de uma verde esfera que está posicionada no chão, a única obra que ainda não lhe havia tomado a atenção.

foto: Marília Pisani e Henrique Xavier

Ao se aproximar, torna-se nítido que ela tinge o ar com o delicado perfume vegetal. Você sente uma presença, ainda que muito leve, estabelecer um espaço ao redor da esfera, um perímetro que também circunda o seu corpo. A invisível presença no ar em torno de você lhe conduz à experiência estética: a arte de uma presença não vista é, mais uma vez, trabalhada por Fajardo, assim como as invisíveis trajetórias da luz foram cuidadosamente manipuladas pelas superfícies reflexivas; agora, é o tênue lugar marcado por um aroma que repousa em pleno ar aquilo que vem a ser manipulado por sua arte. Não percebido ao olho humano, esse corpo de cheiro, também, não possui tato, tal como o corpo sem corpo de Narciso, o mito de uma beleza ideal estampada em uma imagem inacessível, jamais tocada pelo desejo dos amantes.

Uma tênue presença quase fantasmática emana de uma esfera postada sobre o chão. Quarenta centímetros é o diâmetro do perfeito globo formado por glicerina verde em um tom esmeralda translúcido, ela é quase transparente nas bordas, mas sua cor se adensa em direção ao centro. Uma bola verde que por sua translúcida transparência se faz visualmente leve. Há uma relação precisa entre a leveza da cor e o odor da esfera que paira no ar; pois, em sua feitura, a incolor e inodora glicerina ganha seu perfume ao ser misturada ao óleo essencial, o seu aroma vegetal é proveniente de um óleo que possui a cor verde. Outras esferas de outros odores teriam outras cores? Sim. Fajardo não escolhe a cor, mas o perfume que irá tingi-la em seu próprio matiz. Há uma sinestesia entre a visão e o odor que nos faz ver o verde aroma vegetal.

Imperceptível ao olho nu, a outra qualidade presente na obra é a sua lenta eflorescência, ou seja, a sua delicada ação de, como uma flor, dialogar com a água que paira no ar. A obra transpira liberando água quando a umidade do ambiente é menor que a sua própria. Ao sair do molde em que foi fabricada, a esfera está originalmente muito hidratada e assim que ela vem a ser exposta à ação atmosférica, de imediato começa a perder significativa parte de sua massa devido a evaporação de água. Esse movimento de perda de água persiste até alcançar um primeiro equilíbrio precário quando a taxa de líquido no ar vem a ser igual à taxa de líquido condensado na esfera.

A partir desse momento, a esfera verde começa um constante e variável diálogo com a água que se encontra no ar, ora liberando umidade, ora absorvendo. A tendência eflorescente é a de transpirar até atingir o equilíbrio com o ar, mas, simetricamente, quando a umidade do ambiente é maior que a da glicerina, dá-se então a sua tendência higroscópica, que é a absorção da água do ambiente até o ponto da máxima hidratação da esfera. Em casos limites de saturação hídrica, ela passa a produzir pequenas gotas em sua superfície, como uma flor orvalhada. O termo higroscopia que designa a propriedade que certas substâncias possuem de absorver água, tem sua etimologia proveniente dos radicais gregos “higro” que quer dizer “úmido” ou “molhado” e “scopia” que significa “ato de ver”. Porém tais ações internas da esfera são tão lentas que se tornam praticamente imperceptíveis a olho nu, sendo necessário tempo, muito tempo para que elas ocorram.

Leva no mínimo anos para que na obra comece a maturar certas transformações notáveis a olho nu, tais como o craquelar de rachaduras em sua superfície ressecada. As rachaduras advêm do lento e necessário processo de eflorescência. A camada superficial que está exposta ao ar é a que mais perde água e simultaneamente diminui o seu volume, ou seja, a evaporação afeta diretamente apenas a superfície exposta, havendo pouquíssima perda de água no centro da esfera. Isso faz com que o centro se torne inchado em relação à superfície, o encolhimento desigual do volume exerce uma pressão mecânica de dentro para fora e como a superfície da esfera não pode se esticar uniformemente, inclusive porque está seca e frágil, então nela começam a se dar as rachaduras. Como a umidade da esfera é quase sempre superior ao ambiente em que vivemos, podemos dizer que a eflorescência é mais usual que a higroscopia e, portanto, vem a ser quase constante essa pressão interna que vai desde o centro da esfera em direção à sua superfície. Porém são necessários inúmeros anos para que a tensão seja capaz de começar a produzir uma erupção na lisa superfície verde.

Há atualmente quatro esferas, todas provindas de um mesmo e único molde, a última delas foi realizada em 2017 para exposição Espelho no espelho, a primeira foi realizada em 1987. Nesse ínterim de trinta anos, apenas uma, e não a mais antiga dentre as quatro esferas, teve sua superfície e forma desfiguradas pelo ressecamento. Isso ocorreu, pois, a instituição que a adquiriu no início da década de 1990 realizou a equivocada ação de deixar a obra em uma reserva técnica sob o efeito de um forte desumidificador e a umidade baixíssima própria à conservação de pinturas e gravuras, no caso da esfera, produziu o efeito contrário. O desumidificador acelerou de maneira irreversível o craquelamento da esfera e, como uma planta completamente ressecada, a esfera também morre. Porém, uma vez que profundos cortes produzam a descaracterização da forma circular da esfera, há um combinado entre o artista e o responsável pela coleção que a adquiriu para que seja produzida uma nova esfera a partir do primeiro e único molde, vindo a substituir o objeto desfigurado, mantendo intacta a proposta estética original. Como Narciso, não há cadáveres decrépitos, mas a manutenção da mesma, bela e perfeita forma.

Assim, Fajardo mantém o esparso número de quatro obras, somente quando e se uma antiga esfera se desfigurar é que ele realizará uma nova tiragem. Isso ocorreu apenas uma única vez em 35 anos; ainda que a esfera porte um delicado e constante movimento de transformação, ela é extremante longeva. Ela não precisa de muito para existir, apenas ficar no mesmo ambiente que você e eu ficamos, um ambiente que poderíamos chamar de “normal”, com a variação de umidade tolerável a um humano, às vezes ressecar um pouco e às vezes suar em um dia muito úmido. É uma obra que não pode ser conservada em uma geladeira isolada do mundo, ela precisa viver no mesmo ambiente que nós; é como se ela precisasse da ou pedisse a nossa companhia para existir.

E, de fato, há vida como a nossa nas ações internas da esfera, com o passar dos anos é possível notar delicados pontos esbranquiçados começando a surgir em sua superfície, tal qual manchas de envelhecimento na pele humana. Os radicais livres são responsáveis pelo nosso envelhecimento, eles são produzidos nas células e moléculas durante o processo de combustão do oxigênio, algo muito similar irá ocorrer na esfera. O contato com a luz e com o ar faz com que se inicie um processo de oxidação em cadeia nas moléculas dos óleos essenciais presentes na esfera. Esse processo de oxidação libera os radicais livres que progressivamente se multiplicam, acarretando na rancificação do óleo essencial, o que produz pintas brancas na superfície da esfera. Isto é o mesmo que ocorre com frequência em sabonetes de glicerina, nos quais, para combater esse processo, são usualmente injetados em suas fórmulas antioxidantes como a vitamina E (do alecrim), a mesma vitamina que os nutricionistas prescrevem a nosso organismo para neutralizar os radicais livres.

No caso da esfera, a palavra “envelhecimento” é forte demais, talvez, “maturação” seja o termo mais adequado para dar conta dessa vida interior em que se denota uma lentíssima passagem do tempo que está na contramão da instantânea velocidade dos espelhos que sempre marcam o tempo presente. Faz parte da experiência estética da obra em glicerina a observação dessa quase imperceptível transformação; e, talvez, os meses de uma única exposição temporária não sejam o suficiente para que ela seja claramente notada, mas o hábito de voltar à obra com o passar de semanas, meses e anos é extremante significativo.

Diferente da perfeição imaculada da esfera verde presente em Espelho no espelho — a qual fora cuidadosamente alisada pela mão de uma ceramista cujo delicado toque procurou retirar todas e quaisquer marcas ou cicatrizes que pudesse advir do seu processo de fabricação, deixando sua superfície circular lisa, contínua e perfeita — , a cidade de Porto Alegre, onde se encontra a exposição de Fajardo, possui uma segunda esfera realizada no começo dos anos 1990 que denota em sua superfície as marcas da longa passagem do tempo, a obra se encontra na coleção do Museu de Arte do Rio Grande do Sul — Margs. Os 29 anos de vida dessa segunda esfera sobrepõem uma outra beleza ao acabamento perfeito idealizado por Fajardo. A beleza daqueles que existem no tempo, o craquelar dos pequenos cortes na parte de cima da esfera fazem com que possamos notar como a glicerina é, de fato, diáfana, tais cortes dão-nos a medida de sua tênue translucidez; já os pontos brancos do efeito dos radicais livres presentes nos óleos essenciais concentram-se na parte que toca o chão, ou seja, na parte inferior da esfera, estes surgem como pequenas bolhas brancas, as quais também evidenciam um diálogo com a consistência diáfana da glicerina. São afeições do tempo, certos sinais de haverem de durar, expondo a invisível tensão que existe por dentro da obra e que transparece com o passar do tempo: a beleza daquilo em que se transparece o e no tempo.

Narciso para além da reflexiva morte é, também, e, antes de tudo, a encarnação da paixão e da mais perfeita beleza. Fatidicamente, é certo que os pretendentes a seu amor possuem destinos trágicos: a ninfa Eco é dilacerada, desprovida do corpo, resta-lhe apenas uma voz a ecoar entre as árvores nos bosques; o jovem Amínias, com a espada presenteada pelo próprio ser desejado, é levado pela paixão a tirar a própria vida; e Narciso, a ele mesmo, não faz algo distinto, sangra o peito diante do inalcançável reflexo amado.

Em seu berço, Narciso fora profetizado que chegaria aos longos anos da velhice caso “não conhecesse a si próprio”. Mas viver sem conhecer a verdadeira beleza seria viver? Viver sem conhecer que há, por dentro, algo que nos destrói? Em seus 16 curtos anos, o jovem apenas vive nos derradeiros instantes em que é capaz de olhar para si e encarar sua morte. A verdadeira beleza não se encontra em um agrado formal à nossa sensibilidade e ao nosso “bom” juízo de gosto, mas na contemplação disto que nos mostra um outro trágico de e em nós mesmos. A verdadeira beleza nos fere mortalmente. É um espelho que nos devolve muito mais belos e, ao mesmo tempo, estilhaçados. Essa é a experiência estética apresentada pela paixão de Narciso através dos jogos de reflexos na obra de Fajardo. Um outro sentido para a clássica expressão grega, kalos thanatos, ou seja, a bela morte. Uma beleza que faz com que percamos os limites dos corpos, que nos percamos de nós mesmos em nossas imagens e que nos prendamos a um duplo de nós diante dos olhos de uma terrível e bela morte para sempre contida em nosso próprio e mesmo olhar.

foto: Henrique Xavier