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Justiça feminista

Introdução

Em junho de 2021, Miriam Lang e Rita Segato inauguraram um debate sobre o que deveria ser a justiça feminista diante de um estado violento, patriarcal e ausente.1 Com trajetórias estelares na academia — Segato é professora titular de antropologia na Universidade de Brasília, e Lang dá aulas de economia política e ecologia política na Universidad Andina Simón Bolívar, no Equador —, ambas são também notórias feministas. Sua militância é voltada para questões decoloniais e atenta à interseccionalidade, quer dizer, às diversas maneiras em que as relações de dominação e violência se superpõem.

Em seu texto, que traduzimos aqui para o português, as autoras reconhecem as conquistas dos feminismos, que, sobretudo na América Latina, não apenas iluminaram as formas como a desigualdade e a violência de gênero se cruzam com a econômica, racial e tantas outras, mas também criaram espaços de proteção e resistência. No entanto, elas também se preocupam com o efeito que os “justiçamentos sumários” podem ter para o destino das “comunidades transformadoras,” ou seja, os espaços de militância mistos, em que homens e mulheres se unem em torno a objetivos comuns.

Lang e Segato defendem que é preciso abolir a “razão punitivista” dentro dos feminismos. Os justiçamentos sumários e o punitivismo, afinal, reproduziriam a lógica do estado patriarcal. Diversas questões atravessam o debate: como eliminar a violência patriarcal sem uma profunda transformação do capitalismo colonial, racista, ecocida, etc.? Como alcançar formas de justiça comunitária e coletiva, que as autoras encontram em comunidades indígenas? Como curar os espaços coletivos e mistos sem abrir mão da colaboração entre homens e mulheres? Para Segato e Lang, é preciso também atentar para o funcionamento das redes sociais e da “cultura do cancelamento,” forjados a partir de um modelo que visa o lucro às custas de nossa saúde mental e da polarização da sociedade. (Neste sentido, ver também o texto de Bernadette Wegenstein neste número, que reflete sobre as contradições do #metoo).

Muitas feministas reagiram ao convite feito por Lang e Segato para debater os rumos do feminismo, e Rosa publica aqui três dessas intervenções: duas (Eliza Fuenzalida e Raquel Gutiérrez Aguilar), já faziam parte da mencionada compilação em que foi publicado originalmente o texto de Lang e Segato, e uma, de Fernanda Martins, a convite da Revista Rosa, marcando uma recepção brasileira ao texto. A escritora, pesquisadora e ativista Eliza Fuenzalida reflete, a partir de sua própria experiência como imigrante latino-americana na Europa, em que constantemente tem que negociar marcadores de gênero, raça e classe, sobre o quanto a questão da segurança se ampara, muitas vezes, numa sociedade da vigilância. Fuenzalida propõe que se passe a pensar em cuidado, mais do que em segurança, tema que tem recebido cada vez mais atenção num momento em que as relações laborais e sociais se encontram precarizadas. Sob esse prisma, a vulnerabilidade é relativizada e faz-se necessário pensar em formas amplas de lidar com o trauma.

A seguir, Raquel Gutiérrez Aguilar, socióloga mexicana, discorda das autoras e celebra a crise dos “espaços mistos,” porque vê nela a oportunidade de desarmar a permanência de traços patriarcais. Ela defende certa intransigência da geração mais jovem e uma demarcação clara do que é admissível. Fernanda Martins, pesquisadora e professora na área de ciências criminais e direitos humanos, questiona “quão transformadores podem ser espaços que seguem admitindo a violência e dúvida sobre a palavra da vítima”, propondo formas radicais de agir “desde baixo”2 contra o punitivismo e, em última instância, o Estado.

As leitoras e leitores interessados em se aprofundar no debate podem ler outras respostas à provocação de Segato e Lang na revista Bravas ou assistir à Roda da Rosa que organizamos em torno do podcast Praia dos Ossos. Na ocasião, Martins, na companhia de Branca Vianna, uma das idealizadoras do podcast, e a socióloga Jacqueline Pitanguy, coordenadora executiva da organização Cepia, discutiram a eficácia do direito penal para as reivindicações feministas.

No fim, essa pergunta ecoa outra, mais geral, mas não menos importante, que alimenta nosso projeto editorial desde o princípio: como privilegiar estratégias de não-violência na resolução de conflitos? A conversa continua já em nossa Roda Judith Butler e sua atualidade a respeito do trabalho da filósofa feminista Judith Butler, que recentemente lançou o livro A força da não-violência: um vínculo ético-político.