3

I’ve Got a Secret: as performances televisivas de John Cage

Fig. 1: John Cage, execução de Water Walk, peça para o programa televisivo I’ve Got A Secret, CBS, Janeiro 1960.

Em 1951, John Cage descreve assim a sua experiência em uma câmara anecoica:

Para certos propósitos de engenharia, é desejável ter um ambiente o mais silencioso possível. Um espaço assim é chamado de câmara anecoica, suas seis paredes são feitas de um material especial, uma sala sem ecos. Há muitos anos entrei em uma na Universidade de Harvard e ouvi dois sons, um agudo, outro grave. Quando eu os descrevi para o engenheiro do local, ele me explicou que o som agudo era o sistema nervoso funcionando; o grave, o meu sangue circulando.1

Esses sons, que John Cage define como sendo “built into the listener”, algo como incorporados, como os sons da circulação da corrente sanguínea e do sistema nervoso em operação, não podem ser interrompidos e são absolutamente não intencionais. Por isso, continua Cage em uma entrevista, “cheguei à conclusão que o silêncio também devia ser considerado como algo não intencional”.2 Essa pequena epifania na câmara anecoica introduz temas fundamentais para a segunda parte de seu percurso, a partir dos anos 1950, como a busca pela experiência direta da materialidade do som e por uma escuta idealmente liberta dos processos de racionalização da música tonal, através de estratégias que permitissem suspender o controle, ou a intencionalidade, sobre a composição.3 Em seus laboratórios acústicos, Cage simula os estímulos caóticos da cidade, fragmentados em parcelas, combinados em grandes acúmulos, ou reduzidos à experiência dos sons residuais na peça 4’33’’. Três atos de silêncio ininterrupto, descritos por um único imperativo em latim: “tacet”, referência da notação musical tradicional à ausência de instruções durante o movimento inteiro. Enquanto a peça é executada pela primeira vez em agosto de 1952 no Maverick Concert Hall da cidade de Woodstock, pelo pianista virtuoso David Tudor, como parte de um recital de música contemporânea para piano, a experimentação de John Cage tem como cenário intelectual o debate interdisciplinar da Escola de Nova York. Aqui atuam músicos como o próprio David Tudor, Morton Feldman e Christian Wolff, o coreógrafo Merce Cunnigham, o poeta Frank O’Hara, e os pintores de vanguarda da época, que se tornarão mais conhecidos como “expressionistas abstratos”.4

É importante lembrar que as reflexões sobre a impossibilidade do silêncio de Cage se dão na Nova York dos anos 1950, enorme caixa de ressonância que produz, amplia e refrata um repertório de ruídos de fundo de recente formação, onde os choques e as velocidades da mecânica se somam às matérias fluidas e invisíveis da era da eletrônica.5 A câmara anecoica, inicialmente desenvolvida como uma tecnologia vinculada ao campo da pesquisa espacial, torna-se parte dos maciços investimentos no campo da engenharia acústica da época, que tem como objetivo produzir ilhas de silêncio artificial isolando interiores domésticos e comerciais do barulho constante da cidade. Valorizando a privacidade e a escuta individualizada, o isolamento acústico complementa o reino de consumos hedonistas com uma nova gama de escolhas musicais e opções cada vez mais sofisticadas.6 A experiência de imersão na música desvincula-se assim da exclusividade dos teatros para alcançar a esfera privada via aparelhos de reprodução hi-fi ― altamente fieis ao original ― e pela multiplicação de canais de rádio e de gravadoras de música pop, jazz e erudita. Como argumenta Sara Dalnius, o isolamento acústico é parte da segmentação modernista dos sentidos e de uma estética que internaliza progressivamente as matrizes tecnológicas da percepção, em uma relação cada vez mais estreita entre o sensível e o tecnológico.7 No mesmo contexto, a atualização das tecnologias de transmissão rádio-televisivas concorre à dispersão do público do cinema comercial nos núcleos domésticos, onde aparelhos de rádio e TV modulam as frequências de programas de entretenimento produzidos em um fluxo constante. O cinema, que antes da guerra ainda era tido como espaço das qualidades singularmente imersivas, configura-se como um refúgio no território atravessado por luzes, imagens e mensagens da cidade.

No circuito das artes, esse panorama convida à definição de barreiras arquitetônicas e simbólicas em torno das obras, para a preservação de perímetros neutros de contemplação. É o momento da afirmação dos expressionistas abstratos, integrantes da Escola de Nova York, que ganham destaque como a primeira geração de artistas a trabalhar uma síntese norte-americana de questões do modernismo europeu em um momento crucial da relação entre arte e modernidade. A galeria Betty Parsons, fundada em 1946, adquire notoriedade por representar e expor as pinturas em grande formato de alguns deles, configurando plenamente aquela modalidade expositiva asséptica como o espaço simbólico da especialização da arte. Em 1950 Jackson Pollock expõe aqui algumas das obras mais representativas da fase do dripping, Number 28 (1950), Number 17 (1948) e Number 1 (1950). A mostra configura o clímax da abstração tanto para a pintura de Pollock quanto para o expressionismo abstrato. As telas, que suspendem qualquer relação com a representação do mundo, são expostas justo na galeria Betty Parsons, considerada como o primeiro exemplo de cubo branco, duas afirmações estéticas que se reforçam mutuamente.8 A obra afirma sua autonomia em relação ao espaço e este, por sua vez, reitera a autonomia da experiência óptica da arte em relação ao mundo que a rodeia. Porém, a construção de um ambiente específico para preservar a contemplação como canal de acesso à potência visual das obras logo aponta para uma contradição: o silêncio e a neutralidade arquitetônica tornam-se condições ambientais específicas, como se a obra ― ou a experiência da obra ― não pudesse resistir aos efeitos da modernidade sem esse vácuo similarmente artificial em volta. Trata-se de uma fase de transição em que as fronteiras entre o campo da arte, a sociedade e o mercado são muito fluidas e instáveis. A retórica formalista de Clement Greenberg, que norteia a crítica do grupo naquele momento, separa o momento criativo de produção artística, governado pela intuição, da crítica de suas características formais, que seria necessariamente desinteressada. Essa relação entre a arte e a sua interpretação protege o valor da obra de qualquer mediação ideológica, naturalizando suas qualidades formais como características “objetivas” por meio de um discurso alicerçado na defesa da purificação dos recursos de expressão e na possibilidade de maior espontaneidade e imediatismo na pintura.9 Essa perspectiva associa o modernismo artístico à “liberdade” da imaginação sem considerar sua inscrição em uma retórica mais ampla da modernidade, na qual a autonomia individual e o próprio individualismo eram bandeiras de uma política e de relações produtivas específicas, e os conceitos de “criatividade”, “expressividade” e “espontaneidade” vinham sofrendo certa dogmatização. A obra pouco domesticável do próprio Pollock se tornará uma espécie de confirmação da realização estética desse paradigma, mesmo admitindo questões de ordem muito mais ampla do que as contempladas pelo aparato institucional.

Se a leitura formalista nos seduz ainda hoje por sua coerência e consistência interpretativas, naqueles mesmos anos a naturalização de seus parâmetros críticos começa a revelar certo teor ficcional.10 É nesse contexto que se faz crucial a mediação da figura de John Cage. Se, por um lado, o compositor torna-se porta-voz das poéticas antiautorais de Marcel Duchamp, na busca por uma experiência autêntica, não mediada, e das sensações do corpo de matriz zen-budista, sua poética ainda traz as marcas de certo idealismo. Elas aparecem tanto em suas tentativas de desconstruir os condicionamentos culturais, como se fosse possível prescindir, na recepção de suas obras, a mediação de um contexto específico (o concerto, a galeria), quanto na possibilidade de uma recepção intuitiva da mesma. Hipóteses que, como veremos, serão tencionadas pelo público de I’ve Got a Secret, programa da televisão aberta no qual Cage apresenta a performance Water Walk, em 1960.

O Duchamp de John Cage

Como já mencionado no começo, nos anos 1950 Cage estava procurando estratégias para suspender o controle sobre a estrutura da composição, pensando na composição nos termos de um retorno à “origem” anterior aos processos de estruturação simbólica da cultura e da individuação.11 Um regresso ao conceito de arte como “imitação da natureza em seus modos de operação”, para deslocar o sentido representacional da mimese, enquanto cópia de sons “naturais”, para a possibilidade de uma relação entrópica ― e não mais relacional ou compositiva ― entre as notas, o silêncio e o ruído.12 Esse é um ponto fundamental, pois, no limite, anularia a delimitação do campo musical, agora aberto à imanência de um som qualquer, minimizando a mediação das faculdades de síntese do Eu. Em uma declaração romântica do próprio Cage: “O objetivo maior é não ter nenhum objetivo. Isso nos coloca em consonância com o modo de operar da natureza.” 13

A aproximação da retórica do zen-budismo como estratégia de expansão da percepção será um dos meios utilizados pelo compositor para atenuar a atividade discriminativa do Eu e de suas intenções, abrindo espaço para a apreciação dos sons e das situações de silêncio “não intencional” do cotidiano. Outra referência fundamental para alcançar essa qualidade da escuta, segundo o compositor, seria uma aproximação ao uso duchampiano do paradoxo, do acaso, na indistinção entre os sons estruturados e os barulhos contingentes, encontrados no dia a dia. Seria exatamente essa indistinção, segundo Cage, que poderia trazer diferenças sensíveis para a nossa percepção, chegando a transformar a nossa atividade mental: “Eu pensei na música como um meio de mudar a mente… uma atividade dos sons em que o artista encontre uma maneira de deixá-los serem eles mesmos.”14

Trata-se da junção entre expectativas vanguardistas e tentativas de espiritualização do cotidiano, já que, como comenta Vladimir Safatle, através da arbitrariedade do acaso, Cage “procurava abrir espaço para o retorno de um ser que ‘se deixaria estar’ na imanência do sonoro”.15 Um retorno, ou transcendência, para uma suposta condição originária, que Theodor Adorno, no início dos anos 1960, descreve imputando a Cage uma atitude que atribui aos sons qualidades que alternam entre a pura imediatez e o poder metafísico do “som em si”:

A hipótese de que a nota “exista”, e não de que ela “funcione”, é ou ideológica ou um positivismo equivocado. Cage, por exemplo, talvez por causa de seu envolvimento com o zen-budismo, parece atribuir poderes metafísicos à nota, quando liberada de toda sua suposta bagagem superestrutural.16

A busca pela essência autêntica do som parece distanciar-se também da indiferença que funda as escolhas dos ready-mades de Duchamp, cujos deslocamentos, da ordem do sarcasmo e da ironia, causam pequenas “iluminações profanas”.17 Em uma entrevista concedida por Cage a Moira e William Roth, quando lhe perguntam se haveria alguma diferença entre o seu uso do acaso e o de Duchamp, Cage reconhece algumas distinções essenciais. Responde dizendo ter escutado “de quem estuda a obra de Duchamp” ― distanciando-se assim de uma aproximação intelectual à sua obra ― “que ele sempre escolhia com cuidado o método mais simples de solucionar os problemas”.18 No caso de Erratum Musical, por exemplo, continua Cage, Duchamp colocava as notas em um chapéu e as extraía de lá aleatoriamente, enquanto essa não seria uma solução complexa o suficiente para Cage: “Tem muitas coisas [nessa obra] que não me interessam, como os pedacinhos colados de papel e o ato de sacudir o chapéu. Isso simplesmente não me atrai. Nasci em um mês diferente do Marcel. Gosto de detalhes e gosto de que as coisas sejam mais complicadas.”19

Em outro trecho da entrevista, Cage aprofunda esse aspecto aludindo a uma maior complexidade da linguagem musical em relação à linguagem pictórica e dizendo que, em razão disso, as operações casuais na música ― o marco de ruptura sendo Music of Changes, de 1951, que apresenta processos baseados no livro chinês do I-Ching (o livro das mutações) ― se tornariam inevitavelmente mais articuladas do que na pintura. Quando o entrevistador pergunta se ele acha que precisaria de muito estudo para entender o trabalho de Duchamp, Cage responde no mesmo tom:

― Eu não sinto que preciso de muita erudição para gostar de Duchamp da forma que eu gosto.

― Como você gosta dele?

― Do meu jeito. Não tenho como saber se o jeito que eu gosto dele é como ele pretendia. Eu poderia ter feito perguntas sobre isso, mas preferi não as fazer.20

Ou seja, o empirismo radical de Cage sustenta-se a partir de operações complexas, mas utiliza como interface para o diálogo no campo da arte uma leitura intuitiva da obra de Duchamp. De modo análogo, as formas do Zen, que, segundo Cage, seriam o veículo para transformar o que Adorno chama de “poder metafísico das notas” na contemplação de sua pura presença acústica, não são introduzidas nos termos de uma prática, mas a partir de apropriação em certa medida dogmática de seus mantras, ou princípios fundamentais. Em uma entrevista a Pierre Cabanne, Duchamp não hesita em propor um deslocamento: “Fazer algo para entediar as pessoas é algo que eu nunca havia imaginado, e é uma pena, pois é uma ideia maravilhosa. Fundamentalmente, é a mesma ideia que o silêncio de John Cage na música.”21 Isso, continua Duchamp, é algo “impensável em termos pictóricos”. Uma pintura pode ser intelectualmente entediante, mas o observador não é forçado a permanecer na sua frente.

Ao invés de reforçar a ideia de “presença”, a proposta de Cage poderia aproximar o público dessa interpretação mais leve da experiência, que se afasta da contemplação para incluir uma vasta gama de estados. Ou seja, enquanto a unidade ideal do corpo desmancha-se na câmara anecoica, a experiência contemplativa (aqui em uma acepção oriental) se desfaz no intervalo pontuado pelos pequenos barulhos e pensamentos randômicos que permeiam os 4’33’’ de silêncio.22 São episódios em que a aproximação de uma versão idealmente mais autêntica da experiência ― de nossos corpos ou do espaço ao redor ― através da redução dos estímulos, não se sustenta, pois tende a desmoronar em um conjunto híbrido de reações que podemos definir a partir do conceito de “distração”, ou de “tédio”, que dissolvem os limites muito definidos entre interior e exterior.23 Se a linguagem de Cage chama a atenção para esse aspecto de modo muito instigante, por vezes ela recalca a sutileza dessa modulação da experiência. Como vimos, o compositor nunca qualifica a dimensão projetiva instada pelo silêncio como resultado do “tédio” ― possível reação citada, por Duchamp, e a única vez que a palavra “distração” aparece em Silêncio, coletânea de conferências e escritos de Cage, é usada nestes termos: “É melhor compor uma peça musical do que executá-la, é melhor executar uma do que ouvir uma, é melhor ouvir uma do que usá-la erroneamente como meio de distração, entretenimento, ou aquisição de ‘cultura’.”24 Isso trai certa falta de autoironia, fundamental nas primeiras vanguardas, em particular na poética do próprio Duchamp. Ao contrário, a posição antiteleológica (sem finalidade) de Cage, com sua ênfase no valor da experiência direta e na bondade intrínseca ao homem, como nota Leonard Meyer, parece ancorar-se em uma tradição literária e filosófica tipicamente norte-americana, com inflexões utópicas afins à poética transcendentalista de nas caminhadas de Henry David Thoreau nas florestas incontaminadas do Massachusetts.25

O que resta perguntar é em que lugar Cage caracterizaria a recepção de sua obra, especialmente as composições mais articuladas: seria dado ao espectador comum entender escolhas e soluções, como ele mesmo afirma, musicalmente complexas? Essas peças oferecem a base para uma escuta intuitiva ― como a sua leitura do Zen ou da obra de Duchamp ― ou é preciso ter algum conhecimento, prática ou erudição musical para apreciar todas as suas nuances e dimensões? Cage provavelmente estava tentando propor vários níveis de leitura, com o objetivo de expandir o alcance dos efeitos da arte na vida das pessoas sem, com isso, abdicar de sua contribuição para a discussão no campo da música erudita. Pode ser interessante trazer de novo a voz crítica de Adorno, atento ao contexto social e econômico em que Cage opera:

Os compositores tendem a reagir à antropologia da era atual, renunciando a qualquer controle de sua música pelo ego. Eles preferem ficar à deriva e abster — se de intervir, na esperança de que, como no bon mot de Cage, não seja Webern falando, mas a própria música. Seu objetivo é transformar a fraqueza do ego em força estética.26

Na visão pouco simpática de Adorno, a estética de Cage levaria a não muito mais do que um renascimento pouco eficaz do dadaísmo. “Ao contrário de seus antepassados dadaístas, a sua obra degenera na cultura e não pode não ser afetada por isso”. Olhar de perto os momentos em que a obra de Cage mergulha mais profundamente, ou se degenera, na indústria cultural, como sugere Adorno, pode revelar de que maneiras a poética do silêncio de Cage transcende o choque dadaísta e, ao mesmo tempo, quais diferenças significativas introduz para as segundas vanguardas. Casos interessantes são as participações de Cage em dois programas televisivos muito populares: cinco aparições em Lascia o Raddoppia (Larga ou redobra), show de perguntas e respostas italiano, em 1959, e, no ano seguinte, sua participação em I’ve got a secret (Tenho um segredo), transmitido pela CBS de 1952 a 1967.

Cavaleiros do apocalipse

Em 1959, Cage encontra-se em visita na Itália, a convite do compositor de vanguarda Luciano Bério, que o acompanha como coadjuvante de uma performance com dois pianos preparados, em cartaz na Academia Filarmônica Romana. O instrumento concebido por Cage consiste em um piano de cauda, o símbolo mais elevado da música erudita, em cujas cordas ou caixa de ressonância são depositados objetos ― moedas, parafusos, tarraxas e suportes de borracha ―, de modo a abafar ou distorcer o som. Umberto Eco, notoriamente sensível à dialética entre alta cultura e cultura de massa a partir da publicação, em 1964, da coletânea de textos Apocalípticos e integrados, em uma matéria sobre o evento, recupera o comentário de Fedele D’Amico, crítico de música erudita que descreve assim a performance para um periódico nacional:

Os dois estavam sentados, cada um na frente do respectivo piano, e ocasionalmente remexiam nas entranhas do instrumento. Outros sons, sempre intercalados a longas pausas, alternavam-se aos primeiros: golpes de madeira, apitos, ajustes nas cordas, tapas do lado de fora do piano. Uma hora, o famoso compositor levantou- se e ligou um aparelho de rádio por algumas dezenas de segundos. 27

D’Amico não fica surpreso pela performance de Cage, diz Eco, mas define a atitude do compositor com a expressão “astuta ebetudine” ― de difícil tradução para o português, referindo-se a certa esperteza com a qual o crítico evidentemente refere-se ironicamente ao olhar vazio do meditante. Eco, por sua vez, chega à conclusão de que “tudo tende a sempre terminar bem com John Cage, graças a seu ar de cowboy de coração puro e de olhos azuis, em paz com o mundo e com o Absurdo”.28 Não se trata, continua adiante, de analisar uma disciplina antiquíssima como o Zen e nem de determinar se John Cage seria um “seguidor ortodoxo ou apenas um para-raios receptivo e vibrátil, que captou e usou as dicas da sabedoria oriental”, pois uma reflexão sobre sua figura, segundo Eco, não deveria “qualificar a sua mensagem, como se estivéssemos na frente de um profeta religioso, mas estabelecer a sua influência no discurso conduzido pela música” e, vale complementar, pelas artes visuais de seu tempo.29 Ou seja, Eco capta o poder das formas do zen e da vanguarda utilizadas por Cage quase como slogans e sugere não focarmos na autenticidade de seu conteúdo, mas em seu papel na formação discursiva em que ganhavam relevo.

Para esse fim, ou seja, na tentativa de posicionar Cage no momento em que se torna catalisador das segundas vanguardas, é importante notar que a sua personagem, assim como a de Pollock, é imediatamente reconduzida a um estereótipo norte- americano, sendo assim caracterizada em termos nacionais. Ambos “cowboys”, convocados pela cena midiática desde muito cedo, mas ambos acolhidos com certa suspeita, como se seus gestos um tanto excessivos de segunda vanguarda tendessem a ser atacados tanto pelas massas (“seria mesmo Pollock o maior artista norte-americano?”) quanto pelos eruditos (veja-se a atribuição a Cage, por d’Amico, de “certa esperteza”).30 Porém, uma grande distância os separa, já que, no caso de Pollock, a figura do cowboy é complementada pelas conotações de artista herói, maldito e conturbado, aflito por dramas interiores que encontram formalização na intensidade da tela, enquanto, no caso de Cage, remete a um cowboy tímido e afável, impassível e formal, sempre elegante em seu terno e gravata ― uniforme do músico erudito ―, com uma sobriedade que beira a rigidez e tratos vagamente efeminados. Ao confrontar- se com a câmera no ato de pintar, Pollock, filmado por Hans Namuth, preocupado com a sua autoimagem, não sustenta a personagem, e sua fala revela certa falta de espontaneidade.31 A relação de Cage com o público e as câmeras do palco televisivo, por sua vez, carrega marcas bem diferentes. Se, por um lado, a configuração arquitetônica do estúdio onde o programa era transmitido ao vivo, em um fluxo temporal sem cortes, aproxima a TV do contexto teatral, com o qual Cage era familiarizado, por outro, a transmissão das imagens em tempo real para o vasto e indiferenciado público da televisão aberta inaugurava a dinâmica cultural da celebridade instantânea e universal, alicerce da obra de Andy Warhol.32

Tenho um segredo

Quando aparece, alto e esgalgado, por trás das cortinas do palco de I’ve got a secret, o compositor, então com 48 anos de idade, deixa entrever alguma timidez (Fig. 1). Ele se posiciona ao lado do apresentador, Gary Moore, fechando as mãos atrás das costas e encurvando um pouco a cabeça para a frente, como que para se fazer menor. Moore o qualifica, de forma anódina, como “o próximo concorrente”, e Cage, ao se apresentar ― “O meu nome é John Cage e moro em Stony Point, Nova York” ―, desvia timidamente o olhar do público e das câmeras.33 Moore, então, pergunta-lhe teatralmente qual seria o seu segredo, e Cage lhe sussurra algo que nos é revelado por uma legenda na tela: “Vou performar uma das minhas composições musicais”. O público aplaude educadamente, mas Moore continua: “Tem de haver algo mais”. Cage então passa a listar os instrumentos utilizados para Water Walk, composição dividida em quatro partes e pensada especificamente para programas televisivos:

Vou utilizar um jarro de água, um cano de ferro, um ganso, uma garrafa de vinho, uma batedeira, um apito, uma lata, alguns cubos de gelo, dois pratos, um peixe mecânico, um pato de borracha, um gravador, um vaso de rosas, um Seltzer, cinco rádios, uma banheira e um piano de cauda.

Enquanto Cage sussurra essas palavras no ouvido do apresentador e corre no monitor a lista interminável de instrumentos, a plateia do teatro começa a manifestar certa surpresa. São reações pontuais, entre a incredulidade e algum entusiasmo, em um crescendo que culmina em um aplauso final, dessa vez unânime, quando “piano de cauda” finalmente aparece, dando algum sentido à lista absurda de materiais utilizados na composição. Esse sim parece um segredo de bom tamanho, um desafio para o grupo de celebridades que devem adivinhar a ação “secreta” que Cage vai performar em frente às câmeras. Afinal, mesmo tendo alguma finalidade pedagógica, a premissa desses programas era o entretenimento. É importante ressaltar a modalidade de participação do público, que caracterizará, dali em diante, muitos programas televisivos. Trata-se de uma coletividade que raramente aparece na tela, para reforçar a sensação de que nós, de casa, somos parte dela. As risadas ou os aplausos dessa multidão invisível são introduzidos para tranquilizar os espectadores de que eles não estão rindo sozinhos na frente do monitor. Isso alcança o paroxismo com as risadas gravadas, que ritmam a comicidade de algumas séries a partir dos anos 1970, sempre iguais a si mesmas, rapidamente naturalizadas como reconfortantes e familiares. Essas risadas coletivas, que ecoam sempre iguais, aproximam-se muito da definição de riso dada por Bergson, cujo objetivo principal seria punir qualquer forma de rigidez ou excentricidade em relação à regra coletiva.34

A plateia de massa, naqueles anos em rápida expansão ― note-se que a televisão já estava presente em 70% das casas, chegando a 95% no final da década de 1960 ―, aprende a reconhecer, nessas risadas, distribuídas em território nacional, o fundamento de novos códigos coletivos. Ou seja, assim como Pollock nas páginas da revista Life, Cage está indo ao encontro daquele que sempre fora o maior adversário da vanguarda: o gosto pequeno-burguês. Faz isso antes de sua domesticação pela arte pop, que faz dele um de seus temas principais, e das experiências em vídeo como as de Chris Burden, que insere intervenções não mediadas no fluxo televisivo ininterrupto, operando uma justaposição da ordem da colagem. Em vez disso, Cage atua a partir das premissas descritas, ou seja, de uma missão quase pedagógica que, pretensamente, não visa a chocar, mas a educar o público a outra escuta, função que estava sendo limitada pelos estímulos e pelas mediações da sociedade de massa. Uma operação sem dúvida bastante arriscada, pois trata-se dos primeiros contatos entre os dois mundos, da vanguarda e da cultura de massa. Arriscada, também, porque, como Cage declara em relação aos expressionistas abstratos, ele não acredita que a arte deva causar impacto emotivo, ou afetar “as sensações” do público.

Assim, em I’ve got a secret, Cage sobe no palco aberto da indústria cultural, enfrentando a convergência tão temida por Adorno. Procura manter uma postura bastante neutra, com seu trato gentil e jovial, mas, ao mesmo tempo, permanece distante e impassível, como ao corrigir o apresentador dizendo que ele ensina “música experimental” e não “som experimental”. Quando Moore lhe pergunta se ele acha “seriamente” ― ele usa a expressão “no tongue in cheek”, que significa algo como “sem ironia”, citando involuntariamente o título da obra de Duchamp de 1959 ― que o público escutará algum tipo de música, Cage continua respondendo com postura didática: “[…] considero música a produção de sons. E, como produzo sons na peça que vocês irão ouvir, eu a chamaria de música”. O público não reage, e, para validar as credenciais de Cage como músico e compositor, Moore então tira do bolso uma resenha “não tão favorável”, porém do New York Herald Tribune:

Eu gostaria de mostrar pra vocês a resenha que apareceu no New York Herald Tribune de domingo passado de um novo álbum do senhor Cage. Não é totalmente favorável, mas diz: “[…] Certas composições suas são realmente um deleite para os ouvidos, mesmo que isso seja algo que não podemos afirmar de todas as obras de Cage”.

Enquanto Cage continua sorrindo educadamente, Moore traduz para o público, em poucas palavras, o sentido do que acabara de ler: “O Tribune leva a sério tanto Cage como compositor quanto isso…” acenando com um gesto à cortina que ainda esconde os instrumentos, “como uma nova forma de arte”. Em seguida, dirige-se a Cage, dessa vez mediando as possíveis reações do público: “Essas são boas pessoas, mas algumas delas darão risadas, tudo bem?”, e Cage, com seu ar indulgente: “Claro, considero o riso preferível às lágrimas”. Após essa estranha contratação dos termos de interação entre público e vanguarda, a plateia concede um aplauso generoso, encerrado pela afirmação conciliadora do apresentador: “Ele também é um bom homem”.

Fig. 2: John Cage, execução de Water Walk, peça para o programa televisivo I’ve Got A Secret, CBS, Janeiro 1960.

A mediação condescendente do apresentador coloca público e artista em seus devidos lugares e, somente então, as cortinas se abrem, revelando a instalação dos instrumentos de Water Walk, “que se chama assim porque contém água e porque eu vou andar durante a performance”, explica Cage, novamente, da forma mais literal possível. Cage começa a performar, com muita precisão e certa gravidade, a sequência de ações no palco, na qual as relações com a água se multiplicam, gerando barulhos comuns ou inusitados. Enquanto isso, o apresentador cronometra a performance e declara, pausadamente, como para reiterar as regras do jogo para o público descrente: “Ele leva isso a sério. Eu acho isso interessante. Se vocês acharem engraçado, podem dar risada; se gostarem, podem aplaudir”.

Cage é acompanhado pelas câmeras enquanto produz suas variações acústicas com gestos rápidos e precisos ― evidentemente muito ensaiados ―, movendo-se entre a banheira, o piano modificado e as mesas cheias de utensílios domésticos “modernos”, como uma panela de pressão e um liquidificador (Fig. 2). Trata-se de um cenário que introduz as novas ferramentas do universo feminino, onde os movimentos daquela figura de terno e gravata parecem ainda mais surreais. Ele modifica as notas do piano pousando um brinquedo em forma de peixe sobre as cordas, abre a válvula de uma panela de pressão, coloca algumas pedras de gelo em um copo e rega um vaso de flores na banheira. A cena das flores causa alguma reação na plateia, como quando apoia com força um címbalo na água, mas os momentos que suscitam mais respostas do público são aqueles em que Cage derruba algo, dá um tapa no rádio ou explode um foguete. Ou seja, cenas reconduzíveis a alguma trapalhada, nas quais o próprio autor assume mais enfaticamente uma posição cômica.

O encontro de Cage com as câmeras, então, provoca o riso do público, manobra tipicamente modernista, que aqui revela alguma especificidade. O riso é um dos leitmotivs mais reconhecíveis do modernismo literário e artístico europeu, mas, enquanto nas primeiras vanguardas artísticas, manifesta-se em sua declinação irônica, ou seja, como deviação sutil ― nos bigodes que Duchamp desenha na reprodução da Mona Lisa, por exemplo ―, no modernismo literário, a comicidade é mais utilizada, destacando-se figuras que suscitam o escárnio ou que são marginalizadas por suas anomalias ou sua falta de adequação. Existem muitos exemplos possíveis: eles aparecem em O pai Goriot ou O primo Pons, de Balzac, em O homem que ri ou O rei se diverte, de Victor Hugo, em O capote, de Nikolai Gogol; são os muitos “mártires bufões” que povoam os romances de Guy de Maupassant, ou mesmo o protagonista de O idiota, de Fiódor Dostoiévski, que fora definido pelo próprio autor como herdeiro de Dom Quixote, uma personagem do bem que é ridicularizada por quem não reconhece o seu valor.35 Todos eles são corpos estranhos que perturbam o sistema, causando o riso, que, voltando a Bergson, é precisamente a resposta do corpo social a algo que o perturba.36 Cage não é vítima do ridículo, mas se expõe e suscita voluntariamente o riso ― nesse caso, uma gargalhada coletiva ―, respondendo com sorrisos lacônicos, aludindo a seu posicionamento em um lugar que o público não alcança, enquanto artista e autor ainda marcado por forte subjetividade.

A frágil conexão que ainda existe entre as vanguardas e um hipotético público, presente e futuro, possível através da ironia, sofre aqui um corte. Cage suscita reações involuntárias e desenfreadas, fruto de certo contágio emotivo a partir de um mal entendido. Ou seja, o público mal compreende a sua obra, o que é evidenciado pela necessidade de mediação do apresentador, que anuncia que a performance poderá suscitar risadas, condição que Cage, por ser “um bom homem” (típico dos mártires bufões), aceita de bom grado, por preferir o riso às lágrimas. A negociação das regras do riso entre público e artista aponta para esses espaços como incomunicáveis: a tentativa de contato engendrada por Cage e carregada de ambivalências revela a distância intransponível que separa o que acontece no palco dessa multidão virtual. A origem da comicidade, desde o teatro grego, reside justamente em criar uma espécie de contraste, ou desigualdade, entre o sujeito em cena e o público, que, nesse caso, provoca intensas reações emotivas, apontadas criticamente pelo próprio Cage em relação aos expressionistas abstratos.

Water Walk provavelmente não resultaria em uma peça cômica para o público da Academia Filarmônica Romana, que a perceberia como sutilmente irônica. Isso trai o idealismo implícito tanto à pretensa abertura radical da obra quanto à possibilidade de sua recepção intuitiva. Falando, em 1965, a respeito de A noiva despida por seus celibatários, mesmo (O grande vidro, 1915–1922), de Duchamp, Calvin Tomkins alega que a noiva, assim como a própria vida, nunca pode ser completamente possuída, nem mesmo despida, e que esse pode ser o motivo pelo qual Duchamp, mestre da ironia, absteve-se de completar o seu Grande vidro.37 A participação de Cage no programa I’ve got a secret, por outro lado, parece forçar os limites entre arte e vida, transformando o dado irônico de Water Walk na comicidade compulsória que emerge das reações do público, perturbado pelo corpo estranho do artista.

A comicidade de Water Walk, no contexto do programa televisivo, desloca, então, o seu sentido original e aponta para o hermetismo das performances de Cage, que, por um lado, desconstroem a codificação do concerto, mas, por outro, parecem precisar de seus contornos: a sua sobrevida talvez se dê a partir da revelação dessa incomunicabilidade, que expõe claramente a dificuldade do contato entre cultura erudita e cultura de massa. A tentativa utópica de aproximar os mundos e os atritos revelados por essas performances, porém, talvez tenham marcado a sensibilidade dos artistas que se engajariam, logo em seguida, na apropriação de fórmulas comerciais, slogans publicitários e simulacros para revelar os espectros vazios em circulação no mundo das mercadorias: ao invés de tentar preencher essa distância, a superfície das obras da arte pop refletirá justamente o vácuo intransponível que existe entre eles. De forma análoga, se a busca de Cage por uma antiestética e pela supressão de marcas autorais mostra-se fundamentalmente idealista, outro paradigma, porém, emerge a partir dessa impossibilidade, no qual a experiência estética da atenção plena se desmancha em meio à distração. Ou seja, o que resulta da suposta desestetização da obra, como nos 4’33’’ de silêncio, não é tanto a experiência contemplativa dos sons residuais, mas o seu desmanche em meio a um fluxo de sensações, afetos e ruídos que existem na fronteira sempre móvel entre o interior e o exterior do campo constituído entre obra, espectador e contexto.