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Sapere aude: os mandarins que não temos

Rafael Carneiro

Numa entrevista para Wang Guan, a versão de Lester Holt na estatal chinesa CMG, Lula explicou o que seu governo andava buscando em Pequim. Uma de suas metas seria criar instrumentos para entender esse grande fenômeno do século XXI, o despertar chinês que pôs o Ocidente no bolso. “A gente tem que estudar a China com muito carinho, com muito cuidado e com muita humildade.” “Cinquenta anos atrás ninguém acreditava que a China pudesse chegar em 2023 como a potência que é”. “É importante a gente saber o que foi feito, como foi feito e por que deu certo.”

A totalidade dos comentaristas ignorou esse aspecto da viagem de Lula. De Demétrio Magnoli a Pedro Doria, passando por Washington Post, Folha de S. Paulo e NY Times, todo mundo caiu em cima do mandatário por suas farpas sobre a Guerra da Ucrânia. O consenso fácil cheira a chance perdida. Cada brasileiro devia levar a sério o desafio de descobrir qual é a bossa da China no melhor espírito carmen-mirandiano de “o que é que o mandarim tem?”. Até porque, um dia, a China já estudou seriamente o Brasil.

Um dos segredos do milagre chinês, ainda mal entendido entre nós, está bem contado no livro How China Escaped Shock Therapy, da economista alemã Isabella Weber (Routledge, 2021). Weber explica como Pequim se safou da necroeconomia global que o neoliberalismo receitou para resgatar o capitalismo da estagflação no fim do século passado.

A tal da “terapia de choque” previa a rápida transição de economias planejadas ou parcialmente dirigidas para o livre mercado. Sua voltagem seria descarregada através de, por assim dizer, cinco eletrodos que ainda sentimos na pele: liberalização dos preços de uma só tacada, privatização, livre comércio, estabilidade monetária e austeridade fiscal. Quase todos os países do mundo tinham pessoas educadas para prever o sofrimento humano da terapia de choque. Poucos, pessoas capazes de encontrar alternativas. Quase nenhum, pessoas que, vendo alternativas, fossem levadas a sério pelo poder público.

A China tinha.

O que deu a Pequim meios para fazer diferente foi um quadro institucional específico, uma rede de relações na qual poder público e produção intelectual interagiram numa circulação permanente de saberes socioeconômicos complementares. O ambiente permitiu que políticos e pesquisadores estudassem a agenda neoliberal, sua adoção em diferentes países e seus efeitos colaterais. As histórias que Weber conta são saborosas.

Milton Friedman deu “lectures” na Academia Chinesa de Ciências Sociais, e não foram poucos os socialistas seduzidos por ele. Friedman dizia que o milagre alemão dos anos 1950 nascera de uma “terapia de choque” avant la lettre. Bastava a China imitar.

Em vez de engolir os abracadabras dos sabichões, burocratas e intelectuais chineses despacharam missões de pesquisa para estudar in loco casos de industrialização acelerada em contextos de montagem e desmontagem economias planificadas. Dos países visitados, destaco dois. Na Alemanha, viram que a liberação dos preços não tinha sido “overnight”, pois aqueles considerados “chave” na indústria de base continuaram politicamente determinados. Ou seja, Friedman não tinha ido a fundo no assunto e acabara vendendo teoria como história. No Brasil, ouviram um enfatuado Delfim Netto afirmar que qualquer industrialização rápida gerava grande pressão inflacionária. Convencidos no início, perceberam depois que Delfim estava generalizando como universal uma trajetória particular. Ao contrário de Friedman, estava vendendo história como teoria. Descontruir Delfim foi importante para a China encontrar um caminho próprio e original de industrialização não inflacionária.

No fim das contas, os chineses montaram um sistema duplo em que o preço da maioria dos bens flutuaria livremente, mas os de setores estratégicos seriam controlados. Aprenderam que na economia não existem modelos prontos, mas balizas de experiência a serem crítica e seletivamente assimiladas. Lula, anota aí: se o Brasil tem algo a aprender com a China, o segredo é montar um quadro no qual poder público e conhecimento formem uma pareceria de colaboração estratégica, intensa, coerentemente planejada e em grande escala contra algumas verdades bíblicas do nosso tempo. Quase tivemos isso com a Cepal no pós-Guerra, mas a ditadura militar nos fez o favor de aniquilar a experiência.

Um pormenor que ilustra tudo. A lei do valor — sim, ela, a Geni esfolada da filosofia! — jogou um papel importante na montagem do sistema de faixa dupla de preços da China, contra todas as boas lições do Ocidente. Nos anos 1980, quem não sabe?, os scholars dos EUA, da Grã-Bretanha e da França varreram a lei do valor para a lata de lixo, e o resto do mundo imitou. Hoje, eu soaria como um tiozão que fala parafrentex e ama Joy Division se caísse na pulsão explanatória de dizer que o valor é o tempo de trabalho socialmente necessário para a produção, circulação e distribuição do capital. Ou, dito de outra forma, que o valor é o centro de gravidade dos preços.

Neoliberais sempre alegaram que preços são voláteis e definidos pela especulação, pela oferta e pela demanda; logo, que a teoria do valor é inútil para iluminar a economia. Em contraste, chineses como Xue Muqiao levaram a teoria a sério. Xue, talvez o maior teórico das reformas de Deng Xiaoping (se você não ouviu falar dele no seu curso de economia ou ciências sociais, reflita sobre a miséria de sua educação), dizia que preço e valor são indissociáveis embora nunca coincidentes. O preço seria a variação viva, dionisíaca, desarmônica e inevitável do apolínio valor no capitalismo. Dessa perspectiva, encontrar o meio termo entre preços livres (como nos mercados neoliberais) e preços ancorados no valor (como nas economias planificadas) era a missão civilizatória do mandarinato de Pequim. Xue estava simplesmente sugerindo botar Marx e Smith no leme do mesmo navio, e o capitão do navio aceitou. A China chutou os eletrodos do neoliberalismo e escapou do anticrescimento rentista autoimposto do Ocidente. Sair dos consensos nunca é fácil. A China conseguiu. Sapere aude, ó brasileiros!