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Racismo, nossa urbs eterna

Rafael Carneiro

Dizem que todas as épocas inventam seus mitos. Os gregos acreditavam que bateram Troia com ajuda do Olimpo; os romanos, que Roma era a Urbs Aeterna, talvez por causa do leite da loba; os chineses, que eram a Terra do Meio; os incas, que a bela Cuzco estava cravada no umbigo do universo abraçado pelo seu todo-poderoso império Tawantinsuyo; os britânicos esticaram a linha do primeiro meridiano, o de Greenwich, adivinha onde?, em Londres; e o Sport Club Corinthians Paulista canta que é o “campeão dos campeões”, não importando se pastou 23 anos na fila, despencou para a segunda divisão ou foi chutado da Copa do Brasil de 2023.

Embora sejam belíssimos, me dá certa preguiça acreditar nesses mitos, pois eles têm baixa aderência à realidade (salvo o Corinthians, maior campeão no… Paulistinha). Mas tem um tipo de pensamento que é muito mais poderoso porque não é uma forçação de barra; pelo contrário, ele tem tanta aderência à realidade que vivemos, é tão inescapável em sua presença maciça e envolvente, explica tão profunda e completamente nossas vidas, que tomamos sua verdade como a única da história; e generalizamos sua validade limitada como uma espécie de “universal abstrato” aplicável a qualquer época, a qualquer tempo, a qualquer espaço.

Nos séculos XVIII e XIX, por exemplo, ai de quem falasse que a “nação” não existia. O besta não só estaria frito e banido dos círculos sociais do seu tempo, como incorreria até mesmo num erro crasso. Pois a nação era uma realidade palpável como o trigo no campo. Justificava o injustificável aumento dos impostos, movia pessoas pacíficas para uma guerra apaixonada, criava uma sensação de pertencimento afetivo a um grupo, ao mesmo tempo que excluía sem dó nem piedade. Se a nação era uma comunidade imaginada, como quer o historiador e cientista político Benedict Anderson, ela estava longe de ser perfumaria ou autoengano. Tornou-se uma aparência necessária tão concreta e essencial como qualquer outra relação social poderosa: o trabalho abstrato, o valor, o dinheiro.

Pense por exemplo no Fingal, an Ancient Epic Poem, publicado em 1761. O livro saiu como se tivesse sido escrito por Ossian, um celta do século III d.C. (sim, quase da época dos evangelistas). Ele trazia um ciclo de poemas épicos que fazia o escocês se sentir mais escocês, e, o britânico, mais britânico. Ossian provavelmente nunca existiu, e os poemas são todos do escocesíssimo James Macpherson. Mas quase ninguém ousou duvidar de suas verdades na época. Napoleão o adorava; Voltaire o chamou de “Homero da Escócia”; Thomas Jefferson considerava Ossian o maior poeta de todos os tempos. E outro dia me deparei com textos do Henry Thoreau citando Ossian ao lado da Bíblia e John Milton.

Seria ingênuo dizer ex-cathedra que as melhores cabeças da época foram naïves. O nacionalismo era uma verdade do tempo, e as sociedades universalizam suas verdades.

Quem não se lembrará das verdades do materialismo histórico, quando o movimento operário tinha no horizonte do possível a subversão da ordem regida pelo capital? Marx e Engels não começam seu maior best-seller (O manifesto comunista) dizendo aquilo que alguns de nós sabemos de cor e salteado? “A história de todas as sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história das lutas de classes. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, mestre de corporação e companheiro, numa palavra, opressores e oprimidos, em constante oposição, têm vivido numa guerra ininterrupta.”

A dupla não está dizendo uma mentira. Está generalizando como universal uma profunda e respeitável verdade do seu tempo.

Hoje uma das verdades mais arraigadas do nosso tempo, aquela que nos explica, move e comove, é o racismo. Não importa para onde você olhe, quase todos os IBGEs do mundo mostram a mesma triste e massacrante realidade. Algumas vidas valem mais que outras, e essa diferença é facilmente debitada na conta dos recortes culturais, sendo a raça sempre um dos mais importantes deles.

E como toda verdade profunda, essa também vai construindo seus mitos. Na recente tradução para o português de Marxismo negro (Perspectiva, 2023), do estadunidense Cedric Robinson, aprendemos por exemplo que Aristóteles, na Grécia do século IV a.C., já “tinha articulado uma interpretação intransigentemente racista”. Na opinião de Robinson, não foi o racismo como o conhecemos que se formou dentro do capitalismo, mas o capitalismo é que se formou dentro de um atávico racismo europeu. E, como ele, há muitos pesquisadores dos Estados Unidos argumentando que os antigos romanos eram racistas, bem como os islâmicos pré-modernos, os chineses da dinastia Zhou (1.000 a.C.) e por aí afora. E ai de quem botar a cabeça para fora para discordar. As verdades de nosso tempo são como Roma: eternas.