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Monty Python ou Adorno? A dialética dos direitos no Brasil

Rafael Carneiro

Se você já assistiu à legendária Partida de futebol dos filósofos, do Monty Python, certamente não achará menos emocionante nem erudita a sessão da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) sobre a mais nova proposta de emenda constitucional em curso na Câmara dos Deputados. O texto pretende modificar um trecho da Constituição que, desde o ano passado, obriga os partidos a alocarem proporcionalmente seus recursos financeiros em candidaturas de mulheres e negros para cargos legislativos. A nova emenda anula a cobrança de multas aos que violaram a Constituição. E não é para menos. Com a tinta ainda fresca das canetas do TSE, o atual cálculo das multas eleitorais aos partidos já bate no alto dos R$ 40 milhões.

Na partida do Monty Python, Hegel organiza o escrete alemão e Marx corre de afogadilho para dar uma eletrizada no time. Do outro lado, os gregos são comandados por Platão, Arquimedes, Epicuro e Sócrates, para ficar só nos GOATs. Vai lá no vídeo da CCJ (sessão de 16 de maio), e você verá que as maiores correntes da filosofia prestam seu serviço não só ao futebol, mas também à política. Até porque futebol é política, e política, futebol.

A avaliação da emenda começa com uma ponderação de Eder Mauro (PL), alma gêmea do frade dominicano e filósofo neoescolástico Bartolomeu de Medina (o cabelo tigelinha de Mauro lembra as melhores tonsuras da perucaria tardo-medieval). Medina criou o casuísmo, aquele ramo da filosofia que, em vez de analisar os casos de consciência segundo os rigores de uma lei, que poderia ser abstrata ou confusa, flexibiliza a aplicação da lei ao sabor dos casos e acasos. Um ensinamento pio que respeitava a fragilidade do nosso barro: por que o humano não pode defender ora A, ora o contrário de A, se as circunstâncias ou o entendimento das coisas mudam da água para o vinho, e vice-versa?

E assim fez Mauro, nosso neoneoescolástico. Em 2022, o deputado tinha votado pela emenda constitucional que impõe a alocação proporcional de recursos partidários conforme cotas de gênero e raça. Em 2023, quando as sombras das multas assomaram no horizonte, Mauro bandeou para o outro lado dizendo que a emenda tinha de ser emendada. O deputado alega que o texto vigente não define se a alocação dos recursos deve ser proporcional no nível regional ou nacional. Como ensinara Medina, é sempre bom passar por cima da lei quando o assim o quer a justiça. “Lex dubia non obligat”.

No outro extremo do espectro político, a bancada do PT defende a mesma posição que o PL, valendo-se não do casuísmo mas da dualidade kantiana entre categorias puras e conteúdo. A forma (aplicar multas abusivas aos partidos) não teria relação com o conteúdo da experiência política (representação política de negros e mulheres). Seria perfeitamente possível acabar com uma (multas) sem prejudicar o outro (representação).

O time kantiano-neoescolástico do PT e PL enfrentou os aristotélicos formados por Psol e Novo. Seja porque respeitaram as regras ou por outra causa incidente, esses se opõem à emenda da emenda evocando o melhor do mestre estagirita. Alegam que os juízos sobre a realidade seguem axiomas elementares, como os princípios da identidade e da não-contradição (se A é A, então A não pode ser não-A). Dizem eles: se PT e PL votaram sim em 2022 (A), então devem manter sua opinião (A é A). Se defendem o contrário (não-A), então não são o que dizem ser (A).

A melhor forma de interpretar a rica tradição da filosofia no jogo jogado do nosso Parlamento é recorrendo à dialética adorniana. Como dialética supõe história, é a ela que recorro.

O conceito de cotas para representação política circula em Brasília há três décadas. Em 1997, o Congresso passou uma lei para a presença de ao menos 30% de mulheres nas candidaturas das coligações nas eleições proporcionais. Ao longo dos anos, os partidos aprenderam o uso da catimba. A prática mais comum era lançar candidaturas-laranja nas quais as mulheres não recebiam verba para a disputa eleitoral.

Tudo ia bem até que em 2018 o STF instituiu o VAR, dizendo que a regra dos 30% implicava que cada partido alocasse ao menos 30% do Fundo Eleitoral às candidatas. Dois anos depois, o STF estendeu a cota de gênero a pessoas negras.

Os partidos resolveram então recomeçar o jogo. Alegaram que a cota de gênero era matéria nobre demais para decisões do STF. Merecia entrar na Constituição com uma PEC, como de fato aconteceria em 2022. A pegadinha é que a PEC trazia um artigo perdoando os partidos que tinham violado a legislação anterior sobre cotas de gênero e raça.

Em 2023, a mesma sequência. Novas faltas, novo VAR, nova vontade de zerar o jogo. Agora uma das desculpas é que “candidaturas negras” são direitos frágeis pois só estão previstas na decisão do STF de 2020. Mantendo a coerência, a nova PEC perdoa não só os que deixaram de cumprir o repasse para mulheres e negros, como também os que se enroscaram em quaisquer prestações de contas de quaisquer eleições anteriores. Ou seja, passou uma esponja na ficha de corrupção eleitoral de todos os partidos.

Eis a dialética. Cerca de 130 países ao redor do mundo adotam cotas de gênero e 30 usam cotas étnicas. O Brasil está prestes a fazer história combinando os dois recortes no nível superior da Constituição. Mas enquanto a maior parte amplia a representação de minorias para aumentar a legitimidade da democracia, aqui os partidos ampliam-na para lavar seus próprios crimes. A inclusão está a serviço de privilégios, como se algo tivesse de mudar para tudo continuar igual. Uma pérola que não lembro se vi nas Fragen der Dialektik do Adorno ou na releitura de Lampedusa em algum episódio obscuro do Monty Python.