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O escravismo eterno

Rafael Carneiro

Quando o Brasil ainda digeria a notícia sobre as centenas de mortes dos yanomamis, o governador de Roraima, Antonio Denarium* (PP), deu uma entrevista espetacular à Folha de S. Paulo (29/01/2023). “Aqui em Roraima”, explicou, “80% dos indígenas já são aculturados, ou seja, têm um bom convívio e relacionamento com os brancos.” “Tenho 260 escolas em comunidades indígenas. Eles querem ser advogados, professores, médicos. Eu acho correto. Eles têm que se aculturar, não podem mais ficar no meio da mata, parecendo bicho.” Sua fala é digna de entrar nos livros didáticos como exemplo do nosso escravismo eterno.

Antes de mais nada, um simples exercício de interpretação de texto. Denarium chama de “aculturados” os indígenas que absorvem valores e práticas ocidentais na interação com não indígenas. Os aculturados, connaisseurs das regras do “bom convívio”, mantêm relação harmoniosa com os brancos. Os outros, infere-se, são incendiários e causadores de conflitos. Uma espécie de black blocs do mato. Note que “os brancos” formam o polo passivo da equação. Implicitamente, no melhor estilo de afirmar sem dizer, Denarium atribui a responsabilidade da violência na relação entre povos originários e outros povos aos… povos originários.

Mas Denarium não se aguenta. Como uma espécie de Penélope invertida, ou pouco virtuosa, o governador desfaz seu fio discursivo na trama seguinte. “Eles têm que se aculturar” é, por assim dizer, um arcabuz de mecha acesa. Não estamos diante de uma escolha: a paz dos aculturados repousa sobre um fundo de força, cerceamento e prepotência. Aqueles que recusam o Ocidente, diz Denarium, vegetam no estado de natureza (“no meio da mata, parecendo bicho”). A comparação desumaniza o humano como subespécie bestial. Somente os que renunciam a si mesmos são salvos e absolvidos de condenação moral.

Um último pormenor. O que transporta os povos originários da sub-humanidade, do estado de natureza e da violência em que jazem para o da civilização e da cidadania é o trabalho mediado pelo capital. O trabalho lato sensu, a atividade de transformar a natureza segundo um propósito autoconsciente, que define qualquer ser humano, não vale. O que conta é ser advogado, professor, médico, enfim, prestar serviço ou produzir mercadoria e viver da distribuição do mais-valor.

A fala de Denarium resume dois séculos de pensamento racial brasileiro. Ela podia ter saído da boca de qualquer um dos Constituintes brasileiros de 1823. Quando discutiram se a Constituição do novo país reconheceria os povos originários como sujeitos de direito, nossos legisladores verbalizaram, termo a termo, as mesmas ideias, os mesmos juízos, o mesmo estilo. “Os índios que vivem nos bosques são brasileiros, e contudo não são cidadãos brasileiros enquanto não abraçam a nossa civilização”; “vivem em guerra aberta conosco”; “não podem de forma alguma ter direitos porque não têm nem reconhecem deveres ainda os mais simples [como pagar impostos].”

Está tudo aí. Em 1823 ou em 2023, os indígenas são responsabilizados pelos conflitos entre eles e os não indígenas. Se, porém, entram na economia de mercado exercendo uma profissão (Denarium) ou pagando impostos (constituintes), tornam-se assimiláveis.

O raciocínio assimilacionista era o amálgama da ideologia da escravidão no Brasil. Ao contrário dos senhores norte-americanos, a elite brasileira recusava justificativas do cativeiro que retratavam os negros como inferiores raciais aos brancos. Seu raciocínio era de natureza cultural. Os africanos chegavam bárbaros e pagãos ao Brasil. Com o tempo, aprendiam ofícios, recebiam instrução, obtinham alforria e adquiriam seus merecidos direitos. A escravidão acabou. O império caiu. O raciocínio continua de pé.

O escravismo eterno no Brasil se baseia na ideia da cidadania como prêmio de quem adere à economia de mercado, na recusa generalizada do supremacismo branco e num viés culturalista que dissolve o racismo duro em afirmações pseudo-inclusivas. Sem fazer alardes, alguns de seus traços renascem em outros contextos, e seu insistente retorno revela a patologia de um país que não enfrenta suas heranças devidamente. É o seu legado, e não o racismo binário dos norte-americanos, que toda noite ainda dorme debaixo do teu travesseiro.


PS: Denarium não se chama Denarium. Antonio Oliverio Garcia de Almeida pescou no latim seu sobrenome de guerra. Denarius é uma moeda romana que, por séculos, valeu um dia de trabalho dos pobres. Era tão popular que, por metonímia, passou a significar dinheiro em português e outras línguas. No Evangelho de Matheus, Jesus usa a palavra quando compara o reino dos céus a uma vinha cujo proprietário recruta lavradores entre os ociosos. Lá diz que os que têm fé inabalável como os que trabalham com afinco serão salvos. Capital, trabalho, salvação. Encarnar o escravismo eterno no próprio nome: isso é invenção dos nossos tempos.