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A lei e a ordem, segundo Zizek

Berro, Renata Pedrosa

Ações policiais sangrentas se intensificam no Brasil, como se já não fosse bastante a rotina de terror que sempre se conhece.

Em São Paulo, o governo de Tarcísio de Freitas (Republicanos) não apenas segue um modelo consolidado há décadas, mas parece investir no vácuo político deixado por seu líder, Jair Bolsonaro.

É preciso ir pensando nas eleições — nas prefeituras, ano que vem, e para a presidência da República, mais adiante. Algumas das bandeiras ideológicas do bolsonarismo perderam, e perderão ainda mais, seu apelo.

A do combate à corrupção, por exemplo, tende a ser difícil de sustentar quando políticos de extrema direita deixam de ser “outsiders” do sistema e passam, como se viu, a beneficiar-se das vantagens e mimos do poder.

A bandeira do anticomunismo não sei se prossegue muito, quando aquela hipótese maluca se desmente pelo entusiasmo empresarial diante das políticas de Fernando Haddad.

Sobram, assim, as bandeiras do “mata-bandido” e dos “valores cristãos”. A popularidade desse tipo de coisa é enorme, e no caso das matanças policiais os políticos de esquerda sofrem para expressar algum tipo de condenação.

Lembro-me de quando, no desespero de um terceiro lugar nas pesquisas para governador do Estado, o petista José Genoino inventou de prometer que iria pôr de novo “a Rota na rua” caso fosse eleito.

Leio no Intercept que a Bahia, governada por um petista, é o segundo Estado do Brasil em matéria de mortes policiais, proporcionalmente à população. Uma ou duas matanças recentes, por lá, serão investigadas pelo Ministério Público Federal, enquanto a Secretaria de Segurança do Estado diz que os fuzilados eram “homicidas, traficantes, estupradores, assaltantes” ou qualquer outra coisa do gênero (a nota dizia: “entre outros criminosos”). No mínimo, os policiais assumiram o papel de juízes de direito e decidiram-se pela condenação sem processo.

A corrida pela popularidade se mede, em parte, pelo número de “bandidos” que a polícia conseguir matar.

As coisas estão nesse pé quando um luminar do pensamento de esquerda internacional, o prof. Slavoj Zizek, toma a palavra, e publica na revista semanal “New Statesman” um artigo intitulado “A era da anarquia”.

A esquerda, diz ele, “precisa adotar uma política de defesa da lei e da ordem”. Zizek se refere, principalmente, às revoltas na periferia francesa, com carros incendiados, saques e quebra-quebras.

O perigo, diz ele com razão, é que esse tipo de revolta fortaleça o discurso ultradireitista de Marine Le Pen e outros do mesmo tipo. Mas veja-se o que ele escreve.

“A narrativa de esquerda [sobre essas revoltas na França] é previsível: a polícia tem preconceitos raciais, a ‘égalité’ francesa é uma ficção, os jovens imigrantes se revoltam porque não têm futuro, e o modo de resolver essa crise não é o aumento da repressão mas sim uma transformação radical da sociedade francesa […] Os protestos violentos são reação a um problema, mas não o problema em si”.

Em seguida, Zizek afeta serenidade: “Há algo de verdadeiro nessa narrativa”. Hum! Hum! “There is some truth to this narrative”.

O leitor, no caso eu, fica no papel de Dr. Watson diante do nosso Sherlock esloveno. “Mas então, caro Zizek, se há algo de verdadeiro… o que haveria de errado? O que estaria faltando nessa, hãã… narrativa”?

O problema, prossegue Zizek, é quando se propõe uma transformação radical da sociedade para resolver o problema. Pois, diz ele com certa graça, trata-se de uma “solução bem problemática”. Assume-se um horizonte progressista, que nada garante irá se concretizar.

A partir daí, ele se anima: incendiando ônibus, os rebeldes destroem a infra-estrutura que atende a vida das pessoas comuns, e as vítimas da destruição são os pobres, não os ricos.

Faz falta a Zizek, imagino, certa experiência com o discurso da direita e da centro-direita brasileiras, que sempre condenaram quebra-quebras no metrô como atos que prejudicavam “os próprios” revoltados.

Daí ele parte, bem ao seu estilo, para relacionar os tumultos franceses com a insurgência do grupo Wagner na Rússia de Putin. Ambos seriam sintomas de uma tendência europeia para “o caos, a instabilidade e a desordem”. A esquerda, conclui, teria de assumir um discurso a favor da lei e da ordem — certamente adequado, por exemplo, no caso dos alucinados americanos que invadiram o Capitólio em janeiro deste ano.

No Brasil, alguns representantes da direita serelepe se animaram com o artigo de Zizek; não os cito.

Aponto brevemente o que vejo de mistificação e drible no raciocínio todo. A “narrativa de esquerda”, tal como Zizek a define, é fácil de contestar: se pensarmos que tudo só será resolvido com a transformação radical do capitalismo, a esquerda fica sem resposta para problemas imediatos.

Mas não é disso que se trata. Há questões de difícil solução, e de pouco impacto eleitoral, como a falta de perspectiva para os jovens da periferia.

Só que a revolta não explodiu por causa disso. Começou porque um policial matou um adolescente que não oferecia perigo nenhum.

Que tal resolver esse tipo de coisa, antes de criticar uma “narrativa” de esquerda que só existe, tendo a achar, na imaginação da direita?