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Zé Celso

Infernal 1, Renata Pedrosa

A primeira peça de Zé Celso a que assisti foi As Boas, em 1990, no Centro Cultural São Paulo. Durante as décadas anteriores, 1970 e 1980, ele tinha praticamente sumido dos olhos do público teatral.

Para mim, era principalmente um agitador cultural, envolvido na campanha para reviver o Teatro Oficina, autor de artigos em que sistematicamente substituía a letra I pela letra Y, e o S por Z, de modo que Brasil era Brazyl, e suas atividades faziam parte do Grupo Uzyna Uzona.

Aquele início dos anos 1990 estava marcado, na minha opinião, pela decrepitude de dois vanguardismos: de um lado, o tecnocratismo dos poetas concretos, que confundiam modernidade com aperfeiçoamento tecnológico, tipografia com literatura, e técnica com forma; de outro, a informalidade autocomplacente que surgia das ruínas do tropicalismo, da marginália e da psicodelia.

Com muito preconceito, para não dizer medo, fui entrevistar Zé Celso em seu apartamento, pouco antes da estreia de As boas. Eu esperava uma espécie de “performance”, com aquele simpático messianismo que o acompanharia durante toda a vida. Minha surpresa, naquele momento, pode resumir-se numa frase: ele não tinha nada de louco!

A “loucura”, o “teatro” da loucura, o “parti pris” do dionisismo, a cantoria xamânica, revelaram-se para mim como instrumentos, ferramentas estéticas e políticas, manejadas por alguém que (eu via naquele momento) sabia perfeitamente o que estava fazendo, e expunha com clareza e paciência a razão de suas opções na arte e na vida.

Sua montagem de As boas foi maravilhosa. Aprendi ali (e em outras peças dele) o que há de mais teatral, e de mais raro, no teatro: a arte de fazer o tempo parar. O fato de uma peça ser ao vivo, e não gravada, não traz, a meu ver, nenhuma vantagem se pensarmos apenas que estamos diante da “presença física” do ator. Ah, ver o ator na nossa frente é outra coisa! A possibilidade de erros, acidentes, tosses e vexames não torna a experiência mais interessante para mim.

A verdadeira experiência teatral, e acho que Zé Celso sabia fazer isso como ninguém, surge naqueles momentos em que tudo parece parar — a cena “congela”, não porque obedece a uma instrução do diretor para congelar, não porque os atores deixaram de falar ou se mover. Eles podem até estar se movendo e falando — mas o tempo da cena ficou de tal modo carregado de sentido, concentrou tanta expressão, que, sem saber, o nosso cérebro “fotografou”, “imobilizou” uma imagem, uma voz, uma frase do ator. Um instante depois, a peça continua, mas foi, digamos, abençoada pelo silêncio mental, pelo vazio temporal, pelo vácuo de uma respiração suspendida, que se criou no palco, na plateia e dentro de cada espectador.

A entrada de Raul Cortez em cena, no papel da Madame de As boas, foi um desses momentos. A peça de Jean Genet, como se sabe, começa com o diálogo de duas empregadas (eram Zé Celso e Marcelo Drummond), uma se fazendo de patroa, a outra de criada subserviente. Quando a verdadeira patroa aparece, toda a sua superioridade de classe se evidencia: ela é a patroa real, enquanto as duas empregadas estavam apenas representando a comédia da opressão.

Desse modo, Raul Cortez, esguio, num vestido longo, com cílios postiços sem fim, descia uma escada criando um “silêncio” cênico ao seu redor. Era a verdadeira patroa. Só que, obviamente, não era: a plateia sabia que era Raul Cortez, a personagem era uma caricatura de patroa, e ela seria assassinada pelas empregadas.

Onde estava a “loucurada”, o “tropicalismo”, o “desbunde” de Zé Celso? Pela minha descrição até agora, tudo poderia ser perfeitamente realista. Era e não era: o que as duas empregadas estavam fazendo, ao imitar a patroa, não era exatamente uma paródia, uma comédia, uma gozação crítica. Não sei se por causa da música, ou qualquer outra coisa de que não me lembro, Zé Celso e Marcelo Drummond estavam envolvidos numa espécie de vudu, de macumba, de ritual. Não se tratava de “encenar” Jean Genet, mas de “canibalizá-lo”. Só que não era o oba-oba da antropofagia, que tantas declarações de Zé Celso sempre faziam esperar.

As empregadas eram brasileiríssimas, tão brasileiras quanto a atrapalhada Denise Fraga de Trair e coçar. O ritual de As boas deveria ser levado a sério, porque envolvia sentimentos reais de opressão e de libertação. Mas também era “incompetente”, ridículo; a plateia burguesa do teatro não tinha como se ver “ameaçada”, no que seria apenas uma ficção boba e realista.

Em francês, a peça de Jean Genet se chama “Les Bonnes”; a tradução certa seria “As Criadas”. A “antropofagia” de Zé Celso era sutil: uma tradução “errada” do título, como se fosse um trabalhinho “mal-feito”, coisa de empregada sem treinamento adequado, era a tradução certa, naquele contexto.

Nos momentos mágicos em que o teto do teatro Oficina se abria, ou quando ele chamava os espectadores para dançar no terreno baldio de Silvio Santos, talvez Zé Celso acreditasse que a revolução pudesse ser conjurada através de meios rituais. Não sei. Mas o seu teatro bastava. Ninguém, no Brasil, foi tão longe nessa convicção.