“Nós” contra “eles”? Isso mesmo. E por que não?

Gigantes por natureza V, Renata Pedrosa
De uma coisa o surto bolsonarista serviu: a esquerda vai perdendo, na minha opinião, o medo de se afirmar com mais clareza. Isso não tem a ver com radicalização do nosso lado. É simplesmente uma questão de fazer menos média, menos concessões, do que de hábito.
Lembro de quando Lula assumiu a presidência da República pela primeira vez, em 2002. O esforço não era apenas de parecer “moderado” e “sensato”. Tratava-se de praticamente anular qualquer traço de identidade ideológica reconhecível para quem acompanhava a história do partido. Logo nos primeiros dias do governo, uma reforma da previdência desdisse tudo o que se garantia na campanha eleitoral — e motivou a saída de alguns parlamentares do PT, como Heloísa Helena, que viriam a constituir o Psol.
Algum tempo depois, o descaso do governo Lula com o meio-ambiente levou a que Marina Silva saísse do ministério, desaguando na criação da Rede. Pode-se até achar que a gestão da economia, com Palocci à testa, mostrou-se prudente ao aceitar as pressões do mercado financeiro; estas eram talvez mais fortes naquela época do que agora.
O fato é que concessões foram feitas alegremente, e só sobrou, para salvar a cara do novo governo, propagandear um plano de “Fome Zero” que, lembro bem, começou muito indefinido e não constava como prioridade do programa de campanha. A coisa nasceu de um discurso de Lula, e tudo demorou até que fosse adotado um sistema de transferência de renda mais eficiente. Beneficiado pela situação econômica internacional, o governo Lula entregou-se ao Centrão, à bancada evangélica e ao “mercado”. Identificada a um conjunto de políticas sociais, foi a figura do presidente, o qual sempre insistia no fato de ser o primeiro operário a ocupar o cargo, o que manteve uma aura mais ou menos “popular” à sua gestão.
Que digo? Nem como “operário” ele se apresentava muito; a rigor, achou mais conveniente traduzir o termo pela ideia de que não tinha diploma universitário. O que não ajudou nada, porque isso terminou colando nele a imagem de que era avesso aos estudos, de que se orgulhava de não ter muita educação, etc.
Seja como for, a história se resume na terminologia proposta por André Singer em seus estudos sobre o período: nem “esquerdismo”, nem “petismo”, mas simplesmente “lulismo”. O poder simbólico das bandeiras de esquerda implodiu, sendo substituído pelo mito pessoal do presidente.
Braços e fumaça, Renata Pedrosa
Dado o descalabro bolsonarista, o quadro hoje parece indicar menor propensão a tantos eufemismos e cuidados. Se daqui a algum tempo Marina Silva resolver sair do ministério do Meio Ambiente, por exemplo, o acontecimento representará uma crise provavelmente bem mais grave do que a que se esboçou naquela época. O presidente Lula foi capaz de demitir o comandante do Exército logo nos primeiros dias do seu governo, e não houve como acusá-lo de ter sido intempestivo nessa decisão. Estremeceram-se, nestes dias, as relações entre o Planalto e o Banco Central, que tem um bolsonarista em seu comando. A chiadeira é inevitável nos setores de direita, mas não parece assustar tanto as autoridades econômicas. Nomear Fernando Haddad em vez de Armínio Fraga ou algum outro dos “faria-limers” foi um lance ousado. Não que Haddad seja um perigo para o capital; o que houve, em todo caso, foi a disposição de Lula para manifestar alguma independência decisória face às ameaças do mercado e seus representantes.
Nos anos que se seguiram a 2002, a “esquerda no poder” fugiu como pôde de temas como reforma tributária, doações empresariais a campanhas políticas e aborto. Nos dois últimos pontos, o que houve de iniciativa partiu do Supremo Tribunal Federal — recorde-se o debate sobre uso de células de embriões, por exemplo. Revisão nas concessões de TV, plano civilizado para a questão da segurança pública, reforma urbana, mão firme contra o golpismo militar — nunca houve coragem para levar isso adiante.
Tantos rapapés deram confiança para a direita radicalizar-se à vontade, inventando uma “ameaça comunista” que cuja inexistência nada, nem ninguém, a persuade. Em outras palavras, timidez e gentileza não ajudaram os progressistas, e hoje, mais do que nunca, vê-se que o “pragmatismo” lulista pode sair pela culatra.
Não digo que seja hora de radicalizar; não gosto do termo, e nossas próprias forças não devem ser superestimadas. Mas o outro lado radicalizou tanto, que fazer o básico, em termos de disputa política e gestão pública, é inevitável. Não é “radical” expulsar garimpeiros de terras indígenas. Mas o tempo da vista grossa, sob pretexto de prudência e pragmatismo, definitivamente passou. Não só com os garimpeiros: com os esquadrões da morte, com as igrejas evangélicas, com o Exército, com as polícias, com os abusos cotidianos de uma classe média empapada de racismo, ignorância e privilégio e com o “après moi le déluge” do mercado financeiro.
Claro que o novo governo terá de governar com o centrão, com o mercado, com ex-bolsonaristas e semibolsonaristas. Mas o antigo slogan do lulismo, o “sem medo de ser feliz”, era no fundo uma espécie de “relaxe e goze”. Agora, é tempo de perder o medo de ser de esquerda, de ser democrático, de ser civilizado.
Fez sucesso a ideia de que o PT e seu entorno só raciocinavam em termos de “nós” contra “eles”. Nunca vi nada de errado em pensar a política nesses termos; podem ser empregados de uma forma messiânica, mas não necessariamente. O tabu em torno dessa fórmula esconde, muitas vezes, uma patologia da busca do consenso a todo custo, da conciliação “por cima” à brasileira. Consenso não é unanimidade. E tornou-se, de qualquer modo, impossível com o extremismo bolsonarista. De resto, o que importa não é o consenso universal, mas a hegemonia.
“Nós contra eles”? Sim, por que não? E como poderia ser diferente? A minoria de vândalos merece cadeia. Merece cadeia quem os incentivou. Nem todos os adeptos de Bolsonaro concordaram com o charivari de 8 de janeiro — o que não constitui motivo para complacência nem justifica apelos “à união”. O bolsonarismo continua a exprimir-se em violências menos espetaculares, mas também inadmissíveis, em toda parte.
Não há como passar panos quentes em tudo isso. Depois de longa troca de cartas, uma personagem de As relações perigosas, de Choderlos de Laclos, perde a paciência com um antigo aliado, e comenta a situação em poucas palavras: “Eh bien! La guerre”. A guerra foi declarada desde 2018 pelo menos. Queira-se ou não, é hora do contra-ataque. Há mais coragem para isso agora? Creio que sim.