Nas fronteiras da irrealidade

Bigudim 1, Renata Pedrosa
A ameaça de Jair Bolsonaro parece razoavelmente afastada no momento, com o processo de sua inelegibilidade correndo no Tribunal Superior Eleitoral. Não chego a ter esperanças de que ocorra uma “goleada de 7 a 0” na votação da corte, como se comenta nestes dias. De resto, qualquer resultado negativo para o ex-presidente não será garantia, acho, de que se anule para sempre sua presença na política brasileira.
Menos garantida ainda, sem dúvida, é a extinção do bolsonarismo como fenômeno ideológico; haverá muitos políticos já se considerando aptos a substituir o líder, ou que vejam no seu exemplo uma boa forma de conquistar votos em eleições legislativas ou municipais. A aposta na radicalização não os impedirá de obter vantagens fisiológicas junto ao governo Lula, e muito menos de usar o próprio fanatismo como moeda de troca nos esquemas tradicionais da corrupção parlamentar.
Não faltam, em todo o Brasil, sinais de grande vitalidade no extremismo de direita — e o que se conta, deputado a deputado, não é apenas o apoio ou a recusa a temas como reforma fiscal ou terras indígenas: cada projeto posto em votação coloca em teste, desde já, o sucesso de um futuro impeachment de Lula.
Em matéria de absurdo radical, talvez seja difícil superar o que se registra atualmente na Assembleia Legislativa de Roraima — estado que reelegeu o ultrabolsonarista Antonio Denarium, do Progressistas. Ele ganhou destaque durante a tragédia humanitária dos yanomamis, no começo deste ano, ao observar que desnutrição “tem no Brasil inteiro”, e que os indígenas deveriam “se aculturar”, e “deixar de viver no mato como bichos”.
Pois bem, esse é o governador reeleito — contra o qual se desenvolve um processo de cassação no tribunal eleitoral do estado. Não é pouco, mas espere para ver o que propõe o deputado estadual Isamar Júnior, do PSC.
Seu projeto de lei, o 145/2023, estipula que a rede de ensino estadual promova ações que “visem à valorização de homens e meninos e a prevenção e combate à discriminação e a violência contra homens” nas escolas de Roraima.
Violência contra homens e meninos? Eis como o projeto define o que deve ser combatido: “considera-se violência contra os homens e meninos todas as práticas e relações sociais fundamentadas no feminismo, na crença da inferioridade de homens e meninos e na sua submissão ao sexo feminino.”
Claro que uma coisa dessas, se aprovada, terminaria caindo no STF por ser inconstitucional. Para esses fanáticos, seria apenas uma prova de que o STF está nas mãos do demônio. O objetivo é propagandístico, mas nem por isso deixa de ter consequências reais.
Sim, a coisa é tão grotesca que parece fake news. Mas as coisas são desse jeito mesmo. Esse direitismo fundamentalista vive num mundo paralelo, feito de conspirações, fantasias e mentiras. Mas, à medida que obtém seguidores e força política, tenta transformar suas fake news em true news. O mundo deles é imaginário, mas suas crenças existem, e estão vivas, no mundo real — no nosso mundo. E este se vê, pouco a pouco, sob ameaça de ser transformado. O nazismo foi delírio, e se fez realidade — realíssima e delirante ao mesmo tempo.

Bigudim 2, Renata Pedrosa
Em 2022, uma vasta maioria de direita se formou na Assembleia de Roraima. Nenhum deputado do PT, nenhum do Psol, nenhum do PDT ou do PV foi eleito. Ah, Roraima já teve um deputado estadual do PC do B: o Soldado Sampaio, que passou para o Republicanos e é hoje presidente da Assembleia.
No segundo turno de 2022, Bolsonaro teve 76% dos votos válidos em Roraima, contra 24% para Lula. É o estado da tragédia yanomami; lá, o desmatamento, no primeiro trimestre de 2023, cresceu 115% comparado ao mesmo período de 2022.
A vitória das forças democráticas contra Bolsonaro, que foi um alívio para o Brasil, pelo visto ainda não chegou por lá. Mas Roraima não está tão longe assim.
Há setores profissionais, classes e subclasses sociais cujo bolsonarismo não se abala, e talvez não venha a se abalar nunca. Independentemente das estratificações de classe, há também, em todo o Brasil, fatias regionais, geográficas, sob controle da barbárie. Nesse mundo invertido, homens e meninos sofrem violência das mulheres feministas, índios oprimem pecuaristas e mineradores, democratas são comunistas e golpistas são democratas. São as fronteiras da irrealidade, cujos avanços e recuos não correspondem facilmente ao que decidam o TSE e o STF.