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Nicolás Maduro no Tribunal de Haia

Entre um e outro II, Renata Pedrosa

Os relatos são daquele tipo conhecido. Choques elétricos nas áreas genitais, unhas arrancadas, sufocamento dentro de sacos plásticos, estupros e espancamentos.

Os nomes e as siglas não são tão fáceis de reconhecer. Sabemos sobre o Dops brasileiro, a Pide portuguesa, a KGB, a Stasi, a Gestapo.

Mas minha memória pessoal não continha registros do Sebin. É o Serviço Bolivariano de Inteligência, protagonista do relatório do Tribunal Penal Internacional de Haia sobre abusos aos direitos humanos na Venezuela. O texto foi divulgado em abril deste ano.

Mais de quinhentas vítimas diretas do regime enviaram seus depoimentos, além dos que se fizeram representar por entidades diversas. Total, quase 9 mil casos de abuso. Entre os perseguidos, mencionam-se membros do Partido Comunista da Venezuela e de um agrupamento de oposição a Nicolás Maduro que se chama, hum, “Bandeira Vermelha”.

Prendem uma grávida, que aborta em função dos tratamentos recebidos. Prendem um cidadão transgênero, que é torturado nos órgãos genitais e conduzido a uma cela de prisioneiros comuns, informados de que estão diante de um “estuprador”; a punição corre por conta desses companheiros de cela.

Entre um e outro III, Renata Pedrosa

A sede do Sebin é um belo e enorme prédio moderno, no estilo desses da Berrini, em plena Caracas. Seu apelido local é “La Tumba”; são cinco andares subterrâneos para a prática de torturas. Mas não existe só a Sebin; os “colectivos” são milícias independentes pró-Maduro, e a polícia e o exército matam manifestantes, às abertas (foram 135 nos atos de protesto em 2017) ou em segredo. Um velho conhecido nosso, o assassinato policial por “resistência à prisão”, contou 7.523 casos em 2018.

O país tem 7 milhões de emigrantes e refugiados. Não só por causa da política, decerto. Mas política e dificuldades econômicas se fundem sob a direção de Maduro. A ajuda para quem está em situação de miséria, diz o relatório, é organizada pelos Claps — Comitês Locais de Abastecimento e Produção. Eleitos localmente, eles distribuem caixas de alimentos à população, conforme a adesão de cada um ao sistema político vigente. Aposentados que se opõem ao regime também são subitamente destituídos da pensão.

E a Justiça venezuelana está naturalmente a serviço desse sistema. É interessante lembrar um caso mencionado no relatório. Um réu, preso ao longo de anos, contava com um advogado da defensoria pública. Este era tão incompetente que ele resolveu dispensá-lo e contratar um novo, por conta própria. A corte venezuelana tinha de reconhecer o novo advogado. Fez isso apenas uma hora antes de o julgamento começar, de modo que o defensor teria de ler todo o processo em prazo supersônico.

O relatório provém do Tribunal Internacional de Haia — o mesmo em que os advogados de Lula depositaram esperanças quando ele foi condenado em 2018 pela Lava-Jato. O mesmo em que, agora, Lula espera ver Jair Bolsonaro condenado por suas omissões na pandemia.

Entre um e outro IV, Renata Pedrosa

Mas continuamos a ouvir, no governo e na esquerda brasileira, manifestações de simpatia e tolerância à ditadura venezuelana.

A parte principal é a pura mistificação de sempre: se os Estados Unidos estão contra, a pior ditadura tem de ser apoiada.

Uma parte menor parece nascer das esperanças da diplomacia brasileira: quanto menos o país se alinhar às democracias capitalistas avançadas, mais acumula trunfos para atuar como “mediador”. Ucrânia, Rússia, aqui vamos nós. Na Venezuela, poderemos mediar uma negociação com os opositores do regime. Maduro, seja bem-vindo. E os torturados por ele? Ah, quem sabe um dia agradecem a Lula também.