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Caso da coleira, caso da mochila

Pulmões, Renata Pedrosa

Cenas de racismo acontecem todo dia no Brasil; os mais famosos, nestes dias, foram os da louca da coleira e o do voo da Gol.

O primeiro foi uma agressão física contra um entregador no Rio de Janeiro, que não só não estava fazendo nada como também sequer reagiu à investida da ex-atleta. Essa mulher é uma ameaça à segurança pública, e o devido processo criminal sem dúvida há de encaminhá-la à cadeia ou a alguma instituição especializada. Em liberdade, a agressora provavelmente pode vitimar não só negros, como mestiços e brancos também.

Por certo, a simbologia evidente do açoitamento está na essência do ataque ao entregador. A associação se faz na hora, para qualquer pessoa que tenha visto o vídeo, e é provável que estivesse presente na cabeça da criminosa também.

Seja como for, qualquer pessoa de classe baixa, dedicada a alguma tarefa humilde, poderia ou poderá sofrer tratamento parecido de gente como ela. São comuns os episódios de violência contra entregadores, faxineiros, porteiros de várias etnias. Mesmo porque, num país ainda próximo do sistema de castas, a subalternidade nunca será loira –o pobre, qualquer que seja sua cor da pele, é identificado pela aparência física.

Crime em qualquer circunstância, o ataque da coleira tem, assim, a cor da vítima como agravante. É provável – mas trata-se de hipótese – que a cor tenha sido também a causa do ataque. Mas também pode ser que não.

Na prática, muda pouco: uma agressão contra um negro é também racismo, e a mesma agressão contra um branco não é. Pior para a criminosa, e bem feito para ela. O triste é que esse tipo de caso individual vai continuar ocorrendo.

Aqui surge a diferença com a segunda ocorrência que ganhou celebridade nestes dias, o da mulher negra expulsa de um voo da Gol. Uma coisa bonita aparece no vídeo: passageiros mostraram-se solidários com a vítima da injustiça.

Aversão ao racismo também existe no Brasil. Mas há outro fator em curso: as classes altas e médias têm outro forte sentimento em casos como esse – a raiva contra companhias aéreas.

Lembro-me de ter visto, por exemplo, um casal chiquíssimo, burguês a mais não poder, esbravejando quando a comissária mandou que despachassem a mala de mão. Não tinham embarcado ainda; fizeram valer todo o repertório que possuíam sobre os direitos do consumidor. Foi chato; talvez tenham atraído simpatia de quem estava na fila – mas, afinal de contas, não dava para afastar a ideia de que eram uns burgueses criadores de caso.

Samantha Vitena, entretanto, já estava dentro do avião. Tinha passado por todos os controles. A ideia de mandá-la embora do voo partiu do comandante. Também foi por solicitação do comandante que a polícia federal foi chamada.

O caso é revoltante; o poder desses comandantes de avião é absurdo, e utilizado com arbítrio e irresponsabilidade. Um amigo meu apareceu nos jornais porque, cadeirante, com lugar na classe executiva, foi impedido de voar por um comandante da Lufthansa, apesar de ter igualmente passado por todas as barreiras do aeroporto.

Pormenor odioso no caso de Samantha: a polícia federal fez um joguinho sujo, registrado no vídeo. Uma passageira apoiava a vítima da discriminação; notava o racismo, a insensibilidade, a criação-de-caso do comandante. Um dos policiais, para intimidar a passageira solidária, disse-lhe que teria de ficar junto com Samantha – porque serviria de testemunha em favor dela. A passageira solidária iria perder horas e horas no processo. É óbvio que, na condição de testemunha, bastava-lhe dar à polícia o seu telefone e o endereço. Quiseram retê-la para encher a paciência, e para que desistisse.

Tudo foi gravado pelos diversos passageiros e saiu em todo lugar. Com uma grande vantagem com relação ao caso da coleira.

Quem vai ser responsabilizado pelo crime de racismo não é uma doida qualquer, mas uma empresa aérea. Ações civis contra a Gol, assim como a que espera a Lufthansa pela expulsão de um cadeirante, acho que terão ganho de causa certo.

O racismo continuará. A violência contra pobres em geral continuará.

As companhias aéreas vão continuar infernizando a vida dos passageiros. Anote aí: vão logo começar a cobrar pelo uso de malas de mão, alegando falta de espaço na cabine.

Vão encher a paciência – mas vão ter de moderar o racismo. Casos como o da Gol vão dar dor de cabeça demais.

Shoppings, lojas, aeroportos, restaurantes, escolas particulares: a lição é óbvia, e a ficha vai ter de cair. Essas instituições, não importa o racismo que tenham, vão ter de aceitar uma nova lei: com negro não se brinca. Já não era sem tempo.