A esquerda precisa parar de ser chata

Monopilhas 1, Renata Pedrosa
Karl Marx é admirado por muitas coisas — mas uma de suas grandes qualidades costuma ser esquecida quando falamos dele. A saber: ele nunca foi chato.
Uso o termo em seus dois sentidos. O primeiro, de ser incolor, desinteressante e repetitivo; o segundo, e principal aqui, o de ser reclamão e choramingas.
Seria um grande avanço se a esquerda de hoje aprendesse com ele. Tomo como exemplo algumas reações à tragédia do submersível Titan, que ocupou o noticiário na semana passada. Os comentários de parte da esquerda não podiam ser mais previsíveis.
“O mundo presta atenção no destino desses bilionários brancos, e não liga a mínima para as centenas de refugiados que morrem semanalmente em botes de borracha.”
É uma crítica que eu acho difícil de responder, e fora de foco ao mesmo tempo. Claro que é possível comparar as duas coisas. Mas me parece importante lembrar que também são completamente diferentes.
Nem estou falando do raciocínio jornalístico, que cabe nesse caso: o fato mais raro tem precedência sobre algo que é noticiado semanalmente. Há outros aspectos a considerar.
Imagine que, em vez de submarino, tivéssemos uma cápsula espacial, orbitando bilionários num voo turístico. A cápsula explode — seria um caso parecido com o do Titan. Mas ninguém se lembraria de comparar o episódio com o drama dos refugiados pobres.
Ah, mas o que se critica não é só a disparidade nos interesses da “mídia”. Critica-se também o enorme esforço e o dinheiro gasto para localizar os bilionários, comparado ao pouco que se faz para salvar os navegantes precários do Mediterrâneo.
Não é bem verdade. O alvo principal desses críticos de esquerda é sempre “a mídia”. A qual não deixa de noticiar, diga-se, os naufrágios dos pobres. Mas que seja. Gasta-se pouco, ou nada, tentando salvar os emigrantes dos botes; pior ainda, não se faz nada para evitar que embarquem, desesperados. A hipocrisia, a crueldade, a desonestidade de conservadores e trabalhistas ingleses no trato dessa questão é escandalosa, e valeria outro artigo.
Mas voltando à discussão. Novamente, o caso é diverso. Quando apareceu a notícia de que o submarino estava desaparecido, havia a chance de que seus tripulantes estivessem vivos. Mais ainda — calculava-se que teriam cinco dias de oxigênio para sobreviver.

Monopilhas 3, Renata Pedrosa
Se a embarcação tivesse simplesmente explodido, o caso teria sido notícia por um dia, no máximo. Não haveria nada o que fazer, exceto discutir, quem sabe, meios de prevenir a repetição da tragédia no futuro.
Mas eles estavam, teoricamente, vivos… haveria como salvá-los. Natural que se tentasse o possível — como no caso dos 33 mineiros do Chile, presos a 700 metros de profundidade na mina de San José, em 2021. Não consta que fossem milionários; foram salvos, felizmente, e o mundo ficou aliviado com isso.
Do ponto de vista de uma estratégia política de esquerda, o que me mais preocupa é o seguinte.
Essa atitude de questionar o interesse pelos bilionários, e de lembrar o drama dos pobres, não leva a lugar nenhum. Como em tantos casos, é uma tentativa de orientar/legislar/censurar os sentimentos das pessoas (que, a meu ver, podem perfeitamente ser incoerentes, irracionais). “Tenha pena disso, e não daquilo.”
Tal comportamento leva a todo tipo de distorção. “Hum, você participa de um grupo em defesa da ararinha-azul. Por que não luta contra a escravidão infantil?” Ou: “vocês ficam falando do assassinato de 6 milhões de judeus pelos nazistas, mas por que não dizem nada sobre os uighurs?”
Que nossos sentimentos sejam vários, que nossos interesses divirjam, é um dado essencial para nossa humanidade.

Monopilhas 4, Renata Pedrosa
E a discussão, a meu ver, é outra. Não se trata de um campeonato entre compaixões e interesses. Talvez falte até algum interesse da esquerda pelo que se passa entre os bilionários.
De que miséria estão fugindo ao se meter num submarino idiota? Qual a razão de acumularem tanto dinheiro, para depois não saberem em que gastar? Por que não se noticia (aí sim, critico a mídia) o quanto esses coitados ganham por minuto? E que tal criar um imposto sobre iates e submarinos, de modo a custear embarcações decentes para quem procura refúgio nos países desenvolvidos?
O fato é que não passamos da choramingação — e pagamos o preço de, mais uma vez, passar pelos chatos de sempre.