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Terrorismo sexual: notas sobre o assédio sexual

Imagem da série Território, Andrea Tavares

Semana passada estive em Brasília para conversas sobre a prevenção e o enfrentamento do assédio sexual no ambiente de trabalho. A boa notícia é que o Ministério das Mulheres — em diálogo com demais ministérios, com a Casa Civil, o legislativo e o judiciário — liderará um grupo de trabalho para o desenvolvimento de um novo marco normativo contra o assédio sexual no ambiente de trabalho. É inequivocamente uma oportunidade histórica. Inspirada pela potência das conversas difíceis, mas necessárias, que tivemos, compartilho aqui impressões — pontos de atenção e razões para seguir lutando.

O assédio no trabalho é difícil de medir, trata-se de um tipo de violência de gênero muitíssimo subnotificado. A Organização Internacional do Trabalho estima que metade das vítimas, em casos assim não compartilha com ninguém o que viveu. Dados globais publicados pela OIT em 2022 sugerem que os motivos mais comuns apresentados para silenciar diante da violência sofrida são “perda de tempo” e “medo pela reputação”. A OIT ouviu homens e mulheres e concluiu que as mulheres sofrem três vezes mais com o assédio sexual. É por isso que políticas de prevenção e enfrentamento eficazes têm mais chance de êxito se forem desenhadas por e para mulheres.

De acordo com a OIT, a manifestação mais frequente da violência de gênero no ambiente de trabalho em todos os países é a violência psicológica. Ameaças, constrangimentos, humilhações, chantagens… mulheres no mundo inteiro vão para o trabalho como vão para a guerra. Escolhem roupas que camuflam, procuram se adaptar e sobreviver, tentam se mover discretamente, sem despertar a atenção dos outros para voltar pra casa em segurança.

Grande referência dos estudos feministas, a norte-americana Carole Sheffield publicou em 1989 o clássico The Invisible Intruder: Women's Experiences of Obscene Phone Calls. No artigo, Sheffield cunhou o termo “sexual terrorism”:

The analysis of male sexual violence as an integrated phenomenon rests on a theoretical premise that violence and its threat are the foundation of male dominance. I call this phenomenon “sexual terrorism”: the system by which males frighten, and by frightening, dominate and control females. Sexual terrorism is manifested through both actual and implied violence and takes many forms.

Autoras e militantes feministas norte-americanas interessadas em denunciar a violência sexual em campi universitários recuperaram o termo “terrorismo sexual” no contexto do #metoo e hoje o termo é largamente empregado para nomear a sucessão de experiências traumáticas de mulheres que buscam qualificação e realização profissional. Terrorismo sexual, é disso mesmo que se trata.

Olhe ao seu redor. No seu trabalho, há mulheres sobrecarregadas? Há homens delegando a funcionárias tarefas impossíveis e cobrando prazos inviáveis? Profissionais mulheres são contestadas a todo momento? Menosprezadas? Mulheres são humilhadas, alvo de piadas sem graça? Corpos de profissionais mulheres são expostos? Mulheres ganham igual aos homens para exercer as mesmas funções? Mulheres têm talento e eficiência reconhecidos? Mulheres conseguem emitir opiniões sem interrupção? A vida particular das profissionais mulheres são alvos de comentários indiscretos, desrespeitosos? Há assédio moral e discriminação? Esses são sinais de toxicidade. Examinar nosso entorno e mergulhar num exame de consciência genuíno nos ajudam a perceber se nosso ambiente de trabalho é comandado por terroristas sexuais.

Outra característica cruel desse problemão que é o terrorismo sexual no ambiente de trabalho escancarada pelos dados da OIT: reincidência e revitimização são especificidades do terrorismo sexual no trabalho. Aqueles que assediam alunas e funcionárias não o fazem apenas uma vez. Alunas e funcionárias que sofrem com o assédio sexual não costumam passar por isso apenas uma vez. Terroristas sexuais explodem a dignidade sexual das mulheres reiteradas vezes.

A autora Tatiana Salem Levy publicou em 2021 o romance Vista chinesa. Obra de ficção inspirada num comovente caso real, o romance é escrito em primeira mão e a protagonista é uma arquiteta carioca vítimas de violência sexual. Já na primeira página, a protagonista diz: “há coisas que, mesmo depois de acontecer, continuam acontecendo”. É uma definição bela e completa do binômio reincidência-revitimização.

Essa não é a única lição que a personagem principal de Vista chinesa nos ensina sobre a violência de gênero. Ao narrar o trauma que viveu às leitoras e leitores, a personagem diz: “Um trauma, palavra que eu ouviria da polícia dezenas de vezes, interrompe tudo ao redor, interrompe o próprio mundo, embaralha o tempo, a memória, e você é arrastada para fora da paisagem”.

Em seu relato, uma carta endereçada aos filhos, a protagonista de Salem Levy diz ter saudade da pessoa que era antes do trauma que viveu e que não se reconhece mais em seu corpo desde o seu “encontro fortuito com o mal”. Ao descrever o que a violência sexual lhe fez sentir, a personagem diz que a ansiedade que experimentou desde o dia em que foi estuprada na Vista chinesa se traduz assim: antes, um sentimento dava lugar ao outro; agora eles se acumulam. A protagonista de Vista chinesa ilustra com máxima habilidade o que se passa no íntimo das tantas mulheres que têm sua dignidade sexual afrontada, violada, vilipendiada. Ela quer justiça, ela quer que responsabilidades sejam adequadas, ela quer que haja punição exemplar para que, no futuro, exista emancipação. Mulheres que passaram pelas mãos de terroristas sexuais como a arquiteta de Vista chinesa querem reparação e querem seguir em frente. Os marcos normativos que temos nos aproxima desse desejo? Ainda não, mas isso está mudando.

Atualmente, temos de um lado terroristas sexuais que contam com a impunidade. De outro, mulheres como a personagem de Tatiana Salem Levy. Mulheres arrastadas para fora da paisagem. Mulheres como as vítimas de Marcius Melhem e de Pedro Guimarães. O que mudou? Temos um novo governo que promete estar de portas abertas para as feministas e bater a porta na cara dos terroristas sexuais. Uma novidade cujos resultados são incipientes, mas é muito promissora.

Fomos recebidas pela primeira-dama Janja Lula da Silva no Palácio do Planalto para falar sobre prevenção e o enfrentamento do assédio sexual no ambiente de trabalho. Pude, lá, ver de perto os estragos que os extremistas que protagonizaram as cenas horríveis que vimos no último 8 de janeiro vandalizaram. Vi a tela As mulatas, de Di Cavalcanti, perfurada 8 vezes. Vi o mobiliário danificado, vidros quebrados. Vi uma Brasília imponente por fora, porém frágil por dentro. Intocada e intocável por fora, vulnerável por dentro. Me lembrei, quando cheguei pertinho dos furos na tela de Di Cavalcanti, do que a historiadora Heloisa Starling disse sobre o bolsonarismo em Linguagem da destruição, lançado em 2022: o ativismo de direita não é arruaçå, há um projeto escondido no meio da aparente confusão. Para Starling, o afeto que serve de argamassa para o projeto da direita antidemocrática é o ressentimento, um afeto sabidamente vigoroso. O ressentimento se aferra à ideia de que você foi destituído de seu lugar de direito, de que algo que era seu foi roubado pelo progresso. A política do ressentimento aumenta a voltagem do radicalismo e se firma na relativização acrítica dos acontecimentos, na irrelevância dos fatos e na hipervalorização da perspectiva subjetiva. Trata-se de um sistema de explicação da realidade que promove, para Starling, a futilidade cívica, um tipo de ativismo embebido no recalque. Como não enxergar paralelos entre a Brasília e as nossas mulheres? Impossível.

Brasília foi vítima de atos terroristas. Sujeitos interessados em manter nossa democracia cativa a ameaçaram primeiro no gogó. Depois, chegaram armados e dispostos a aniquilar o que não podiam controlar. A política do ressentimento os tomou e eles tentaram tomar Brasília. Olhando a certa distância, Brasília parece forte, mas por dentro ainda tenta lidar com um trauma de proporções gigantescas. Apresenta-se forte, mas internamente lida com um grande trauma.

Temos um novo governo disposto a cuidar de Brasília respeitando tanto a necessidade da manutenção da pujança evidente quanto a necessidade da restauração do que está danificado nas profundezas. Temos também um governo disposto a cuidar desde Brasília das mulheres, que precisam de apoio numa toada semelhante. É comovente e inspirador perceber que há feministas liderando os trabalhos e ditando rumos, finalmente.