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Os pedidos de desculpa na era do #metoo

Imagem da série Território, Andrea Tavares

Na era do #metoo, declarações e pedidos de desculpa de homens que não se sentem de fato culpados deveria ser considerado um gênero literário. A lista de homens poderosos cuja reputação foi abalada por relatos de abuso moral e sexual é enorme e relativamente fácil de acompanhar. O New York Times, o Washington Post e o The Guardian são exemplos de veículos que monitoram o que falam homens acusados de assédio moral e sexual. Há centros de pesquisa que estudam esse tipo de comunicação, há gente pensando em como usar chatbots para segmentá-lo e otimizar o tempo de agressores. O tema é quente.

No Brasil, grandes veículos ainda não aderiram à moda, mas feministas de boa memória usam as redes sociais para monitorar predadores sexuais poderosos e suas parcas teses de defesa no radar. Cá e lá, o fluxo é parecido: mulheres relatam violências e homens poderosos acusados de assédio moral e sexual usam o que sobra do seu cartaz e do seu dinheiro para empreender projetos de redenção mal-ajambrados liderados por advogados e especialistas em gerenciamento de crise. O resultado são declarações desalinhadas e pedidos de desculpas tortos que beiram o realismo fantástico. Obras de ficção assinadas por sujeitos brutos que tentam se desculpar para serem descancelados.

Há diferentes subgêneros, claro. Há, por exemplo, casos em que predadores apostam todas as fichas na negação. Nada disso aconteceu, dizem. Não fiz nada disso, dizem. Querem me prejudicar, dizem. É um complô, dizem. I did not have sexual relations with that woman, dizem. Eu gosto de Campari, dizem. Quando eu disse “bala” era uma metáfora, dizem. Acreditem em mim e não nela, dizem. São casos cada vez mais raros, é verdade. Mas preocupam.

O eu lírico desse subgênero é um misantropo que evoca tradições que precedem hashtags. Quem joga no Google os termos sorry not sorry e me too encontra infinitas entradas nas quais se vê misantropos chauvinistas redpilados que confiam muito no seu elã.

A geração #metoo fez o que pode e pode tranquilamente reivindicar o mérito de ter tornado esse tipo de narrativa pública cada vez menos crível e cada vez mais cara. Até mesmo Woody Allen, cânone da negação, teve que mudar de tom depois do #metoo e trocou a desconformidade irrestrita pela ironia. Em 2019, disse à revista Rolling Stone ser feminista e que suas protagonistas mulheres são “tudo o que o movimento #metoo gostaria de alcançar”. A negação plena diante de relatos críveis tem se tornado cada vez mais salgado; as bilheterias de Woody Allen são prova disso. James Franco, Garrison Keillor, R. Kelly e John Travolta são outros bons exemplos de acusados de assédio que exageraram na negação e caminham a passos largos rumo à bancarrota. Felizmente, há cada vez menos gente razoável disposta a bater o enfadonho papo sobre separar artista e obra. Isso é mérito incontestável de uma geração de feministas muito sagazes que devemos celebrar. Porém, ainda convivemos cotidianamente com esse eu lírico deprimido que se torna por grande injustiçado. E é preciso ter cautela diante dele.

Homens que defendem suas reputações lançando mão da intransigência e da negação estão necessariamente dizendo que as mulheres que os denunciam o acusam falsamente. Suas declarações são redigidas com o intuito de convencer sua constituency de que foram falsamente acusados de cometer crimes sexuais. Embora custe caro e pareça um tanto demodé a essa altura, a narrativa dos misantropos injustiçados ainda cola e prejudicam bastante o legado de gerações de meninas e mulheres que lutam por igualdade. Por quê? Porque, ao assoprar a brasa da descrença e tentar jogar lama em suas vítimas, contribui para um dos constructos mais perigosos do patriarcado: o mito das acusações falsas. Um mito que mantém vítimas em silêncio, homens poderosos exatamente onde estão e feministas insones.

Em O direito ao sexo, um best-seller que todas e todos devem ler urgentemente, Amia Srinivasan fala sobre o mito das acusações falsas de estupro:

Conheço dois homens acusados falsamente de estupro. Um deles era um jovem rico, acusado por uma jovem que havia roubado cartões de crédito e estava fugindo. A acusação de estupro era apenas parte de uma fraude maior. (…) O outro homem é um canalha: narcisista, charmoso, manipulador e monstruoso. É conhecido por usar os mais variados coercitivos para conseguir sexo, mas não tipo que se enquandra na definição legal de estupro. (…) Conheço bem mais de duas mulheres que foram estupradas.

De acordo com Srinivasan, homens que defende suas reputações apostando na negação contribuem para a descrença no movimento feminista e seus aliados. As narrativas que protagonizam servem de cortina de fumaça e desorientam o debate público. Acusações falsas de estupro existem? Sim, mas são raríssimas e ocupam espaço desproporcional no debate público. É como a queda de um avião. Um evento que acontece pouco, coisa que acontece mais nos filmes que na vida real. Mas que fascina. Devemos zelar pelo devido processo legal e pela presunção de inocência, com toda certeza. Sempre. Mas devemos também ter em mente que o mito da acusação falsa é um recurso poderoso na mão dos poderosos. Trasa-se de uma estratégia que, no fundo, aproxima homens brancos poderosos que têm medo de serem moídos pelas engrenagens do sistema da mesma maneira que são moídas as mulheres e outras demografias minorizadas. Se olharmos por esse ângulo, esse subgênero segue relevante pois segue perigoso. O mundo mudou, mas não tanto.

Há também o subgênero daqueles que alegam incompreensão por parte da vítima. Era brincadeira, dizem. Foi só uma piada sem graça, dizem. O mundo anda muito chato, dizem. Não se pode mais fazer piada, dizem. O politicamente correto estragou o mundo, dizem. Feministas no Twitter costumam chamar debochadamente estes homens de has-been good guys.

Mulheres vêm acusando o ex-presidente norte-americano George W. Bush de ser um predador sexual há décadas. Recentemente, Bush soltou uma nota que dizia:

At age 93, President Bush has been confined to a wheelchair for roughly five years, so his arm falls on the lower waist of people with whom he takes pictures. (…) To try to put people at ease, the president routinely tells the same joke—and on occasion, he has patted women's rears in what he intended to be a good-natured manner. Some have seen it as innocent; others clearly view it as inappropriate. To anyone he has offended, President Bush apologizes most sincerely.

Em sua declaração, Bush assumiu ter protagonizado condutas inadequadas, mas as chamou de simply elderly humor. Homens assim imprimem um eu lírico bufão, um sujeito nonchalante. Em O direito ao sexo, Srinivasan conta a história de Brock Turner, nadador da Universidade de Sandford acusadao de agressão sexual. O jovem foi julgado e condenado em 2016, tinha à época vinte e poucos anos. Após a condenação, o pai do agressor apelou ao juiz do caso por uma sentença branda através de uma carta em que se lia: "A vida de Brock foi profundamente e para sempre alterada pelos (…). Ele nunca mais terá aquele jeito despreocupado, a personalidade descontraída e o sorriso amigável". Ao comentar da nota, Srinivasan é certeira: essas são características que devem ser atribuídas a um golden retriever, não a um homem adulto que deve arcar com as consequências de seus atos. Brock pegou seis meses de sentença. O eu lírico fanfarrão desse subgênero tem algo de ingênuo e comove muita gente. Essa suposta ingenuidade garante a muitos o privilégio de viver a vida como bem entenderem sem prestar contas adequadamente pelos crimes que cometem. Esse é o subgênero dos bons moços café-com-leite. Embora sejam artífices da ordem moral, demandam a manutenção de seu privilégio de viver à margem dela.

Há o subgênero dos predadores que são de outra época e estão aprendendo. É, sabemos, o subgênero mais popular, o que tem atualmente maior adesão. Estamos falando de acusados de assédio moral e sexual que buscam reabilitaçãode maneira bastante dinâmica e sintonizada com o que dizem as feministas nas redes sociais. Esses poderosos querem ser ressocializados pagando o mínimo possível por isso. O eu lírico que protagoniza histórias assim é como um menino que brigou com um colega e foi posto de castigo, ele quer voltar pro play. Harvey Weinstein e Louis C.K. são cânones da desconstrução. Não era assim no meu tempo, dizem. Estou em desconstrução, dizem. O que eu fiz foi tirado de contexto, dizem. Ela queria, dizem. Ela consentiu, dizem. Não era a minha intenção, dizem. Estou sendo condenado sem ser julgado, dizem. É um linchamento. É uma caça às bruxas, dizem. Sou um homem melhor agora, dizem.

Aqui, vemos em ação um eu lírico versátil, capaz de calibrar a narrativa de acordo com seus interlocutores. Um eu lírico que sustenta simultaneamente linhas de argumentação aparentemente conflitantes com habilidade. Um eu lírico que consegue a proeza de, ao mesmo tempo, corroborar e rejeitar os fatos. Um grande feito que se mostra bastante eficiente na era do #metoo. Homens que fazem uso desse expediente querem sair ilesos de acusações seríssimas e estão dispostos a acenar para o movimento feminista mesmo que isso lhes dê ânsia. O ostracismo os corrói — e eles chamam ostracismo de exílio.

Em 2017, o jornalista norte-americano John Hockenberry, uma celebridade da rádio, foi acusado de assédio pela autora Suki Kim. Um ano depois, publicou nas páginas da Harper's Magazine um ensaio intitulado Exile: a year of trying to find a road back from personal and public shame. O texto vertiginoso dizia:

It was open season on me, just as with others, in the public radio world. The inchoate anger of #MeToo was suddenly given license to target me, to make me an example, whether intended or not, to characterize me as the symbol of a tolerant radio culture of abuse, to see that I never worked in public radio again, to make sure any young women I met were cautious and vigilant and kept their distance. It has worked. But this isn’t only about me. Even if I conceded the worst possible view of my own behavior, #MeToo does not seem to consider the effect my being tossed out onto an iceberg has on my five children, especially my three daughters.

Também em 2017, Weinstein finalmente capitulou e, morrendo de medo de ter que pagar pelo que fez, enviou ao New York Times uma nota que dizia: “I came of age in the ‘60s and ‘70s, when all the rules about behavior and workplaces were different. That was the culture then. I have since learned it’s not an excuse, in the office — or out of it. To anyone”.

No mesmo ano, o comediante norte-americano Louis C.K. veio à público pedir desculpas e fez a seguinte declaração:

I want to address the stories told to the New York Times by five women named Abby, Rebecca, Dana, Julia who felt able to name themselves and one who did not. These stories are true. At the time, I said to myself that what I did was okay because I never showed a woman my dick without asking first, which is also true. But what I learned later in life, too late, is that when you have power over another person, asking them to look at your dick isn’t a question. It’s a predicament for them. The power I had over these women is that they admired me. And I wielded that power irresponsibly. (…) There is nothing about this that I forgive myself for. And I have to reconcile it with who I am. Which is nothing compared to the task I left them with.

Nas redes sociais, feministas bradaram com toda razão: porque devemos perdoar um homem que não se perdoa? Meses depois, um magistrado então indicado por Donald Trump à Suprema Corte, o juiz Brett Kavanaugh, foi acusado por três mulheres de assédio sexual. Kavanaugh mobilizou em sua defesa mais de sessenta mulheres que chamou de “amigas da vida inteira”. Kavanaugh recorreu a expedientes semelhantes aos usados por Harvey Weinstein, Hockenberry e Louis C.K. Mas foi além e recrutou mulheres para defendê-lo. As feministas são recorrentemente indagadas: em quem eu devo acreditar quando uma mulher que desconheço acusa um homem que admiro de assédio? É comum que respondam: nas mulheres, sempre. Comece sempre acreditando nas mulheres. É uma norma corretiva que funciona e por isso mesmo homens como o juiz Kavanaugh tentam escapar dela. A tática aqui é: o eu lírico do predador reformado, produto de outro tempo que tenta se adaptar ao tempo presente, tem limites. Convém recrutar mulheres para tomar seu partido. É sempre uma boa descolar mulheres dispostas a validar suas boas intenções. Todo bruto em desconstrução precisa confundir as normas corretivas para se manter no poder.

Não há feminismo, há feminismos. Os feminismos não são pontos de vista, são projetos complexos de emancipação, São repertórios distintos que desejam o mesmo resultado: libertar todas nós da condição subalternizada que nos é imposta. Tal condição nos é imposta disfarçada de algo natural, pré-político, apolítico. Pensar declarações e pedidos de desculpa como obras de ficção a serviço da manutenção das desigualdades tem grande utilidade para meninas e mulheres. Há tantos mitos que mantém mulheres sob controle, não é? Observar como opera cada desses eu lírico pode ajudar a implodi-los.