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Lydia Tár e o feminismo acidental

Imagem da série Território, Andrea Tavares

Uma amiga querida me disse esses dias: acho que se eu fosse a melhor do mundo no que faço, como Lydia Tár, seria parecida com ela. Lydia Tár é a protagonista de Tár, filme escrito e dirigido por Todd Field. O longa foi lançado em 2022 e está nos cinemas brasileiros. No filme, a infinita Cate Blanchett dá vida a uma maestrina que comanda a Filarmônica de Berlim e está prestes a gravar a Quinta Sinfonia de Mahler. Tár é uma artista talentosa e uma mulher absurdamente bem-sucedida cuja carreira triunfante tem como vantagem comparativa aquilo que para muitas de nós joga contra: ser mulher. A maestrina fala abertamente sobre ser lésbica, dirige um programa que oferece bolsas de estudos para mulheres… Contudo, narcisista e incapaz de qualquer empatia, Lydia Tár repete condutas comumente associadas aos homens: discrimina e assedia moralmente e sexualmente alunas e funcionárias. Lydia Tár abusa do poder que tem e das mulheres ao seu redor.

O filme é perturbador, desconcertante. Blanchett, como de costume, hipnotiza. É como se não houvesse mais ninguém no mundo além dela e de quem a assiste. Essa performance está lhe rendendo louros e ainda renderá muitos prêmios. O Oscar vem aí e muita gente diz que o prêmio de melhor atriz será dela. Há quem diga que é um filme sobre a cultura do cancelamento. Há quem diga que é um filme misandríaco. Há quem diga que é um filme misógino. A maestrina Marin Alsop, condutora da Vienna Radio Symphony, anda reclamando das várias semelhanças entre sua vida e a de Lydia Tár. A internet está repleta de gente disposta a decretar a moral dessa história e eu sou mais uma nessa pipoca. 

O filme perturba porque nos convida a um mergulho num tema que, feliz e infelizmente, está na ordem do dia de um ponto de vista arriscado. Tár é uma história sobre violência de gênero contada a partir do ponto de vista de quem a comete. Qual é a moral da história? Do ponto de vista de quem abusa não existe abuso algum. Quem agride meninas e mulheres não acha que o fez, acha que violência é flerte, é consentimento, é parceria, é amizade, é troca, é exagero, é do jogo, faz parte. Abusadores quando confrontados com as violações que cometem frequentemente se surpreendem porque tudo dentro deles e à sua volta leva a crer que não há nada nas suas atitudes que cause espécie. Um filme sobre esse tipo de dissonância cognitiva sem uma protagonista tão bem escrita e bem representada poderia destruir carreiras. Todd Field e Cate Blanchett operaram um pequeno milagre que merece atenção e respeito.  

São muitas as razões para odiar a personagem principal de Tár, mas há também inúmeras razões para se apaixonar por ela. Ela é a maior do mundo no que faz, leva a platéia ao delírio, provoca, incomoda, arrebata. Ainda na sala de cinema, me lembrei do obituário fantástico que o Clarín publicou sobre Maradona em 2020: 

Quizá su mayor coherencia haya sido la de ser auténtico en sus contradicciones. La de no dejar de ser Maradona ni cuando ni siquiera él podía aguantarse. La de abrir su vida de par en par y en esa caja de sorpresas ir desnudando gran parte de la idiosincrasia argentina. Maradona es los dos espejos: aquel en el que resulta placentero mirarnos y el otro, el que nos avergüenza.

Lydia Tár é mesmo como Maradona: um gênio que assombra e deslumbra e que, de quebra, ainda nos ajuda a entender mais sobre nós mesmos. Mulheres que têm talento e poder sabem como se comportar diferente dos chefes que tiveram? Sabem ser diferente do mundo que a moldou? Sem letramento feminista é possível às mulheres usar talento e poder sem mimetizar condutas machistas? Que tipo de letramento feminista é suficiente para reabilitar os homens do nosso tempo? Qual é a diferença entre redenção e reabilitação? Se você fosse a maior do mundo no que faz e estivesse ladeado apenas de yes people, saberia os limites que a grande maioria dos homens e Lydia Tár extrapolam e nem notam? São perguntas sem resposta, óbvio. Mas já é um feito estar numa sala de cinema e perceber que são aflições compartilhadas.

A poeta norte-americana Adrienne Rich fala bastante em suas obras do que chama de choque de reconhecimento. Num ensaio publicado em 1979, diz acreditar que o feminismo completa seu ciclo efetivamente transformador quando uma mulher olha para dentro, revê à luz do feminismo momentos traumáticos e faz das suas memórias argamassa para construção de uma nova maneira de ser. Toda mulher carrega traumas em silêncio. Todo trauma pode ser pensado à luz do feminismo e se tornar um recurso potente capaz de desorganizar narrativas que oprimem e inaugurar narrativas que libertam. Quando um trauma deixa de ser memória íntima revisitada em silêncio ou casualmente acessada e se torna de fato parte de um plano de libertação amplo, estão criadas condições para forjar e justificar novas lideranças. Ou seja, toda Lydia Tár pode estar apta, em tese, para investigar seus traumas e os traumas que causou, embarcar no feminismo à vera e não como mero anteparo e reger sua orquestra diferente. Porém, esse é um caminho duríssimo. A dissonância cognitiva é bem mais confortável. Em Tár, Blanchett encarna uma personagem que ainda não tomou essa decisão. Os traumas estão na tela, o choque de reconhecimento está dado. Estamos diante de uma mulher que precisa escolher entre a dissonância cognitiva e a transformação verdadeira. É esse suspense que permite que o público se apaixone, se desapaixone e se reapaixone por Lydia Tár tantas vezes em 2 horas. 

Sempre me pego pensando sobre a expressão em inglês larger than life. Ela às vezes é traduzida como “exuberante”, às vezes como “gradioso”. Nenhuma dessas opções dá conta; acho que deveríamos usar mesmo é maior-que-a-vida. Field e Blanchett entregam ao público uma heroína toda errada maior-que-a-vida incapaz de qualquer empatia que, por isso mesmo, permite um exercício de empatia inesperado. Em A mãe de todas as perguntas, Rebecca Solnit define empatia, essa palavra tão surrada que anda tão perto de se tornar um significante vazio, como uma maneira de nos ampliar. A empatia, para Solnit, “nos abre e nos alarga”. Sem empatia, nos tornamos estreitos demais e humanos de menos. Soldados são treinados para ignorar a empatia para matar mais, homens são treinados para descartar a empatia para mandar mais. Lydia Tár é uma predadora, recusa a vulnerabilidade, passa reto por inúmeras possibilidades de se abrir e se alargar. Recentemente, A.O. Scott definiu a protagonista para o New York Times:

Her charisma is overpowering, her power unchecked and her confidence absolute. (…) Her comeuppance is equally chaotic, as “Tár” refuses to resolve itself either into a parable of #MeToo justice or a rant about the excesses of cancel culture. (It’s so committed to its noncommittal stance that it sacrifices a dramatic ending for a ragged, wandering, superfluous denouement.)

Acidentalmente feminista, Lydia Tár encara todas as relações como um jogo que ela vai ganhar. Tudo que ela tem depende de uma homeostasia do silêncio. Os relatos das suas vítimas lhe soam algo alheio, frutos de interpretações inadequadas que carecem de contexto. Quantos homens você conhece cujas biografias se parecem com as de Tár? Quantas mulheres você conhece que passaram pelas mãos de homens assim? Você se reconhece, mesmo que remotamente, em Lydia Tár? Talvez não seja possível salvar a protagonista de Tár da dissonância cognitiva, mas ela certamente pode ser uma parceira estratégica em nossa luta diária contra a dissonância cognitiva de tantas e tantos ao nosso redor.