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Estalos feministas em Women Talking1

Imagem da série Território, Andrea Tavares

A colônia Manitoba, na Bolívia, é uma comunidade fundamentalista e ultraconservadora menonita. Os menonitoas são cristãos que crêem nos ensinamentos de Menno Simons, líder religioso frísio do Século XVI. Hoje em dia, estima-se que há 2,1 milhões de meoniitas no mundo e que aproximadamente 26 mil vivem na Bolívia. Alguns têm crenças religiosas muito semelhantes à maioria dos grupos evangélicos e protestantes, outros rejeitam a vida moderna e vivem em comunidades isoladas. Conflitos internos e perseguições de todo tipo fizeram com que os menonitas se dividissem em inúmeras denominações antagônicas e levaram os fundamentalistas e ultraconservadores a optar por uma vida isolada do mundo. Dentre as denominações que surgiram no bojo desta diáspora estão grupos conhecidíssimos como os Amish, mas há também grupos menores e menos célebres como os menonitas que partiram da província de Manitoba no Canadá e fundaram na Bolívia a colônia Manitoba.

Para proteger sua doutrina e práticas, menonitas fundamentalistas e ultraconservadores migraram para a Bolívia e optaram pelo isolamento. Dentre as práticas que desejavam proteger, infelizmente, estavam a violência de gênero.

Entre 2005 e 2009, mais de 100 meninas e mulheres de Manitoba foram estupradas em suas casas, em suas camas. A vítima mais jovem de que se tem notícia tinha 3 anos. A vítima mais velha tinha 65. Todas viveram o mesmo inferno: acordaram com dores no corpo, havia sinais claros de violência sexual ao seu redor, suspeitavam ter sido estupradas mas não lembravam com clareza do ocorrido. Meninas e mulheres que dividiram com aquelas e aqueles em quem confiavam o que tinham enfrentado escutavam que seus relatos não eram reais e que se tratavam de produtos da “selvagem imaginação feminina”. Tragicamente, era tudo real sim. Um grupo de homens de Manitoba usavam sprays anestésicos usados para sedar vacas e cavalos para sedar meninas e mulheres durante o sono e vitimizá-las.

É importante lembrar que estamos falando de uma comunidade de fé fundamentalista e ultraconservadora que hoje soma 2 mil pessoas. Manitoba não tem ruas pavimentadas ou eletricidade. Meninas e mulheres são mantidas propositalmente analfabetas e desconectadas do mundo. Apenas os homens de Manitoba sabiam ler. Apenas eles podiam dirigir. Apenas eles sabiam o espanhol; mulheres falam só o baixo-alemão. Apenas eles sabiam que havia um mundo inteiro para além das cercas que eles mesmos ergueram. Tudo que forçava esse limite era rapidamente taxado de pecado, de produto perigoso da imaginação feminina.

Em 2009 alguns dos homens de Manitoba foram pegos em flagrante por meninas jovens dispostas a provar que seus relatos eram verdade. Diante dos fatos, as mais velhas de Manitoba decidiram fazer algo que por décadas lhes pareceu impensável e chamaram a polícia. Analfabetas, subjugadas e feitas cúmplices de seus algozes durante toda a vida, as idosas de Manitoba viviam a 150 quilômetros da cidade boliviana de Santa Cruz de la Sierra. Foram ensinadas a evitar a todo custo qualquer contato com quem vinha de lá e viver sob um código moral restrito. Em 2011, oito homens foram julgados pelos ataques e sete deles foram condenados. Um veterinário de uma colônia vizinha foi condenado por fornecer o produto usado para drogar as vítimas. O número total de vítimas é incerto e certamente há expressiva subnotificação.

Na colônia Manitoba, as meninas se recusaram a se acostumar e decidiram fabricar a gota d'água capaz de mudar tudo ao seu redor. A  tarefa mais dura do mundo. A que cobra o preço mais alto.

Em 2018, a romancista canadense Miriam Toews publicou Women Talking. Sob o impacto das notícias sobre Manitoba, a autora empreendeu o que chamou de uma “reação pela via da ficção”. Na nota inicial que precede o romance, Toews diz que seu livro é — ele sim — um produto da selvagem imaginação feminina.

O romance tem como ponto de partida o relato do personagem fictício August Epp, um jovem de Manitoba convocado por um grupo de meninas e mulheres de Manitoba para tomar notas das reuniões que ocorrerão para decidir o que fazer após a polícia deter preventivamente boa parte dos líderes homens da colônia em decorrência dos estupros ocorridos entre 2005 e 2009. Epp sabe ler e escrever; as meninas e mulheres de Manitoba, não. Apavoradas, acreditam que têm pouco tempo até que os homens detidos sejam liberados e temem o que pode acontecer quando retornarem. Elas supõem que têm aproximadamente 48 horas para agir e decidem debater as seguintes opções: não fazer nada e orar; lutar (eventualmente lutar para valer, literalmente) ou abandonar a colônia e partir juntas, levando consigo apenas os meninos com menos de 12 anos. As mulheres reunidas sabem que precisam registrar suas reuniões embora não saibam como fazê-lo, sabem que um futuro distinto do presente nasce quando quem não tem voz consegue contar sua história. A aposta de colocar a história na boca (ou na ponta da caneta) de um homem é arriscada mas cumpre seu papel — inquieta e depois apazigua. O resultado é um livro dinâmico que sacode a gente e nos bota para pensar no tanto que o moviento feminista produziu de avanço, mas também no tanto que ainda há por fazer.

É digno de nota: Toews escolhe resumir tudo que sabe sobre o caso real que inspirou o romance em apenas uma página, a primeira. O restante do livro é uma fábula feminina e feminista. Essa é mais uma escolha arriscada da autora do livro, cujo resultado encanta.

Em 2022, Women Talking foi adaptado para o cinema. O filme, dirigido por Sarah Polley, leva o mesmo nome do romance e é cotado para o Oscar 2023. Assim como o livro, o filme começa com a declaração: “what follows is an act of female imagination”. Mas Polley faz suas próprias escolhas a partir daí — igualmente potentes e felizes. O filme não é narrado por Epp. August Epp é um dos protagonistas da trama, mas não sabemos dela pelas palavras dele. Quem narra a trama é Autje, uma das adolescentes de Manitoba responsáveis por pegar os predadores da colônia no flagra. Outra escolha arriscada que vale a pena: Polley não localiza a narrativa no tempo ou no mapa. Vê-se meninas e mulheres (e August Epp) rodeadas de feno e charretes, sem luz elétrica e é razoável supormos tudo, menos que estamos diante de uma história real que se passou na Bolívia em 2009.

Nas telas, Woman Talking foca nas meninas e mulheres reunidas por algumas horas em Manitoba para decidir pela primeira vez como legislar sobre seus corpos, tentando inventar alguma justiça. E se os pais fundadores fossem mães? E se Washington, Franklin, Adams, Jefferson, Madison e Hamilton fossem mulheres menonitas analfabetas em Manitoba, na Bolívia? O filme nos permite um mergulho ainda mais profundo na premissa: e se os oprimidos tivessem uma breve janela de oportunidade para imaginar seu futuro e positivar regras eficientes para garanti-lo?

A história da colônia Manitoba e das mentes femininas e feministas que se dispuseram a contá-la ao seu modo é inspiradora. É sobre poder e política. É sobre violência, consentimento e perdão. É sobre fé e rebelião. E está aí para ser degustada tanto por marinheiras de primeira viagem quanto por feministas esgotadas.

Em seu livro Viver uma vida feminista, a pensadora feminista Sara Ahmed fala da figura da estraga-prazeres feminista, aquela que não consegue escapar do destino de ser crítica voluntariosa e obstinada da felicidade. A estraga-prazeres feminista convive diariamente com o risco de ser reduzida à sua raiva mas não desiste das suas reivindicações. Meninas e mulheres assim estão esgotadas. Nas palavras de Ahmed:

Quando algo é exaustivo, você nem sempre sente a exaustão. Sentir a exaustão pode decorrer de um entendimento retrospectivo de que você foi ou está sendo exaurida. Pode ser que, para habitar certos espaços, tenhamos que bloquear a consciência da exaustão que eles nos causam: quando a sensação nos alcança, pode ser que você tenha chegado ao ponto em que é demais para suportar. Você se despedaçou. Sentir o esgotamento: acho que as feministas estraga-prazeres estão familiarizadas com essa sensação de dar de cara com as mesmas coisas, não importa o que você diga ou faça.

O feminismo tem feito tanto e ainda é tão pouco. Feministas operam revoltas em todo canto e assumem as consequências cruéis de serem rebeldes e mesmo assim a revolução nunca se encerra. Vivemos tempos ambivalentes. É raríssimo que um mesmo livro ou um mesmo filme satisfaça ao mesmo tempo marinheiras de primeira viagem e feministas estraga-prazeres. A história de Manitoba e das mulheres que se propuseram interpretá-la têm estalos feministas para todos os gostos.