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Direita transante e direita brochante

Ana Calzavara

No início da década passada, o sucesso implacável da fórmula social-liberal dos governos Lula deixou a direita desnorteada. Por um lado, Lula não havia rompido com os dogmas do liberalismo econômico; por outro, acoplou à insensibilidade social dos liberais medidas que atendiam os mais pobres. Diante da popularidade da fórmula, o PSDB se viu obrigado a caminhar um pouco mais à direita para se diferenciar do PT e angariar uma nova fatia do eleitorado. Na eleição de 2010, Serra deu enorme peso ao tema do aborto nos debates televisivos. Ainda assim, o partido continuou a patinar nas urnas. O PSDB não conseguia se descolar por completo de suas origens social-liberais e servia apenas como forma de expressar oposição ao PT. Os liberais que votavam no partido o faziam não por convicção, mas por falta de alternativa.

O biênio 2013–14 era o que faltava para que a direita liberal pudesse se reorganizar. As mobilizações populares que nasceram à esquerda se transformaram pouco a pouco em um laboratório liberal. Do MPL ao MBL. Essa direita empunhou, antes que o PSDB encampasse a tese, a bandeira pedindo o impeachment de Dilma e, assim, ganhou o aprendizado de organizar ações de massa para uma classe média despolitizada e ressentida. Nesse momento, pipocam nas ruas uma miríade de movimentos, siglas, slogans e pretensos líderes. O adágio “Menos Marx, Mais Mises”, que já se se encontrava há anos na internet, passa à praça pública.

Entretanto, pesavam sobre a direita dois problemas: desvencilhar-se da herança da ditadura e tornar sua cultura política mais vendável. O primeiro deles foi resolvido com um discurso de renovação, taxando a ditadura de esquerdista por ter sido pró-Estado, desenvolvimentista e nacionalista. Já a solução do segundo problema passou por outro caminho, mais engenhoso: a ideia de uma reformulação estética da direita, que a tornaria desbocada, jovial e cool.

No artigo “Por uma direita festiva”, publicado em 2014 na Folha de S.Paulo, Luis Felipe Pondé explicava que o grande problema da nova direita é que lhe faltava certo sex appel caro à esquerda. Ou, em suas palavras, “ser jovem e liberal é péssimo para pegar mulher. Este é o desafio maior para jovens que não são de esquerda”. Essa mistura de misoginia mal disfarçada e prognóstico abrutalhado presente no texto se tornou imediatamente motivo de chacota entre a esquerda. No entanto, foi a partir desse tipo de reflexão, que não se restringia a esse artigo, que a direita começou a desatar um nó importante para se recriar.

Começava a surgir um movimento dentro da direita liberal para reformular sua apresentação. Pensavam: ora, se a esquerda está no poder, ser rebelde é ser de direita! Contra o status quo, os liberais usaram uma nova linguagem que atingia diretamente um público jovem: páginas de memes, humoristas pastelões, vídeos caça-like no Youtube, um partido “novo”… Em suma, criaram sua própria bolha. Nascia a “direita transante”. A expressão foi cunhada por um membro do Bonde do Rolê e cofundador do MBL. Pedro Ferreira lançava a ideia de descolonizar a direita da estética do coxinha sapatênis ou do troglodita militarista. Não por acaso, a expressão foi o título do II Congresso Nacional do MBL, no final de 2016.

Porém, no período 2015–16, paralelamente, gestava-se outro tipo de direita. Em uma das muitas manifestações de 2015, no final da Avenida Paulista, encontrava-se um caminhão de som, um pouco apartado dos demais, no qual alguns fardados faziam discurso golpista. Os apoiadores vestiam camisetas com estampas de Olavo de Carvalho e gritavam o nome de Bolsonaro. Sem endosso, mas também sem reprovação nítida, os transantes diziam não concordam com esse tipo de manifestação, mas a acolhiam, afinal, contra o PT, valia tudo. Apenas não queriam ser associados à ditadura, por isso diziam discordar dos radicais, mas achavam ótimo que mais gente estivesse ali engrossando as fileiras.

Era puro semblante. Mais tarde, o próprio MBL toparia invadir escolas para atacar professores, universidades para atacar estudantes, museus para atacar artistas e, mais tarde, hospitais para atacar profissionais da saúde. Tudo ia bem até que, após o impeachment, aqueles que estavam a reboque começaram a tomar a linha de frente. Aos poucos, os personagens secundários se tornavam protagonistas. Se antes todos estavam lado a lado, apesar de poucas divergências, os holofotes passaram cada vez mais de Janaína Paschoal, Kim Kataguiri e Rogério Chequer para Joice Hasselman, Eduardo Bolsonaro e Bia Kicis.

Como de praxe, a direita liberal foi incapaz de criar uma liderança popular. Acabou por entrar no barco da outra direita, aquela que não tinha vergonha de seu passado, era militarista, “patriótica” e golpista. Paulo Guedes foi o fiador dessa ponte: se os liberais topassem apoiar Bolsonaro, ganhariam uma política econômica a seu gosto, com a velha direita abrindo mão do desenvolvimentismo típico das alas militares. O mercado, que se mostrava ressabiado com o passado estatista de Bolsonaro, o abraçou como se fosse um velho amigo.

Bolsonaro foi eleito com apoio explícito dos transantes. Durante seu governo, a velha direita conseguiu tudo que sonhara, enquanto a nova direita parecia cada vez mais escanteada. Bolsonaro instrumentalizou a política econômica, como de resto todo a institucionalidade, para servir a seus interesses e aos de sua família. Mostrou como não tinha se convertido a nenhuma ideologia e continuava a ser aquele velho deputado corrupto e ultrarradicalizado proveniente do baixo clero. Em um dos momentos mais constrangedores e sintomáticos dessa presidência criminosa, Bolsonaro fez milhares entoarem o coro de “imbrochável”. Não é preciso ser versado em psicanálise para interpretar a cena. Da direita transante à direita brochante, dos jovens descolados e empreendedores para os tiozões bregas e golpistas — a tentativa de repaginar a estética direitista tinha ido por água abaixo.

Após quatro anos de governo, alguns transantes se arrependeram. Não pelo desmatamento, não pela perseguição aos ministros do Supremo, não pelo acobertamento de inúmeros casos de corrupção, não pelo negacionismo mortífero, nada disso. Arrependeram-se porque, para eles, o governo não havia sido liberal o suficiente. Para não sucumbir, Bolsonaro foi obrigado a entrar em todo tipo de negociata com o centrão, mesmo que mantendo o verborrágico Paulo Guedes como fachada para enganar os liberais com suas piruetas retóricas. Outros, porém, foram até o fim e não se arrependem de nada. Basta ver o destino de Marcel von Hattelman, Fernando Holiday ou Rodrigo Constantino. Todos partiram empunhando a bandeira do neoliberalismo até passarem para a mais despudorada defesa de um reacionarismo golpista.

O bolsonarismo foi o ponto de chegada da nova direita. Consciente ou não, a direita transante se tornou linha auxiliar da direita brochante. O resultado da última onda liberal foi a subtração do erário para financiar caixas de Viagra e próteses penianas para o Exército brasileiro. Os liberais apenas refizeram a história clássica do liberalismo brasileiro: da falta de apoio popular ao golpismo puro e simples.