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Burguesia brasileira ou nacional?

Ana Calzavara

Enquanto a pequena burguesia pseudorrevolucionária, representada pelo protagonista Paulo, cala o povo e sofre com crises existenciais, perguntando-se onde está a Verdade, a Beleza e a Liberdade, a portas fechadas a burguesia se reorganiza em torno de um projeto comum. Essa reorganização é evidenciada quando, em uma cena supostamente desimportante, o candidato a autocrata Porfírio Diaz se envolve em uma trama palaciana com o grande empresário Júlio Fuentes. O último tenta explicar ao primeiro que há interesse no desenvolvimento econômico do país, a ser impulsionado por um governo nacionalista em aliança com os sindicatos e os industriais. Afinal, se a economia cresce, o empresariado aufere lucros superiores.

Entretanto, em um choque de realidade, Diaz coloca os pontos nos is e elucida Fuentes: ele pertence a uma classe e essa classe tem interesses próprios, que não são nem os dos líderes populistas, nem os dos trabalhadores. Num estalar de dedos, Fuentes cai em si: ele faz parte da burguesia. Esse momento rápido e aparentemente singelo é a virada para que o filme possa chegar à parte final. Veira, o líder populista, foge; o intelectual pequeno-burguês Paulo se lança na luta armada e é alvejado pelos policiais; Diaz toma o poder; Júlio senta-se na linha de frente da festa de coroação de Diaz; o povo se vê esmagado por uma ditadura.

Terra em transe (1967) foi o filme definitivo da segunda leva do Cinema Novo. Se em um primeiro momento os cineastas estavam preocupados em apresentar ao público de classe média a miséria na qual vivia o resto do país, após o golpe era o próprio público que se tornava alvo da denúncia. O que essa pequena-burguesia com sua arrogância tinha sido capaz de fazer pelo país? A resposta estava ali: enquanto se preocupava com arabescos estéticos, politicamente ela escanteou os sindicatos, calou os miseráveis, tentou costurar uma aliança com a burguesia e apoiou um líder populista frágil.

O nacional-popular entrou em crise em 1º de abril de 1964, pois a burguesia havia feito sua escolha — estar ao lado da mídia e dos militares. A tese daqueles que defendiam uma aliança entre os trabalhadores e os setores “esclarecidos” da burguesia foi pelos ares. Desenvolvimentistas e comunistas tiveram que se exilar e promover uma amarga reflexão sobre os seus equívocos políticos e econômicos. Nos anos 1970, uma nova interpretação do Brasil foi expressa em obras convergentes — Crítica à razão dualista (1972), de Chico de Oliveira e A revolução burguesa no Brasil (1974), de Florestan Fernandes.

Chico de Oliveira explicava que a teoria econômica desenvolvimentista estava errada ao pensar que a avanço industrial iria varrer os bolsões de arcaísmo colonial, ou seja, que o avanço econômico colocaria um ponto final no dualismo brasileiro. Mesmo que agora ela fosse dona de indústrias em São Paulo, a burguesia periférica continuava com valores e práticas tão senhoriais e uma mentalidade tão escravista quanto os da elite aristocrática de outrora, contrariando o mantra da teoria da modernização de que o progresso capitalista promoveria a extinção de formas alegadamente antiquadas de exploração. No Brasil capitalista, não há dualismo: a vanguarda é a convergência do exponencial avanço tecno-científico com o atraso descomunal das relações sociais.

Por sua vez, em crítica à política do PCB, Florestan esclarecia que em países da periferia do sistema a burguesia se contentava em ser uma classe associada ao imperialismo e não tinha nenhuma motivação para participar de um projeto autônomo de desenvolvimento. Nos momentos em que se sentia acuada pelos avanços democráticos no interior da ordem social competitiva, ela se desvencilhava de sua fachada liberal, aliava-se às Forças Armadas e pedia ajuda aos EUA. Nessa aliança, além de benefícios econômicos e privilégios políticos, exigiam do Estado e da potência estrangeira uma cruzada contra sindicatos, movimentos sociais e trabalhadores, reafirmando sua cômoda subordinação antinacionalista. Em suma, aqui a Revolução Burguesa foi sui generis, um mal-entendido com apenas uma parca relação com o que se passou na Europa.

Parece que essa verdade sobre a burguesia brasileira — de que ela é brasileira, mas não é nacional — precisa ser relembrada de tempos em tempos. Se não, vejamos. O governo Dilma pensou em se aliar com a burguesia industrial ao oferecer isenções tributárias, benefícios fiscais e intervenções monetárias. Bilhões se foram com a crença de que o empresariado evitaria as demissões, modernizaria o parque industrial e melhoraria sua competitividade. Resultado: depois de ter devassado o erário, patos de borracha gigantes anunciavam que a Fiesp romperia com o governo; do pato ao impeachment tratou-se apenas de uma consequência lógica. Mais uma vez, 52 anos depois, a confiança da esquerda brasileira no nacionalismo da burguesia mostrou-se mera miragem.

Quem é essa burguesia “nacionalista”? Henning Boilesen que compareceu a sessões de tortura no DOI-Codi? Roberto Marinho, financiador do IPES? Eike Batista, processado inúmeras vezes por corrupção e manipulação de mercado? Marcelo Odebrecht e seu caixa dois generalizado? Roberto Justus, que menosprezou as mortes por Covid? Juliano Durski, investigado por fraudes ambientais e para quem o Brasil não podia parar na pandemia por causa de “5 ou 7 mil pessoas que morrerão”? As empresas Salton, Aurora e Garibaldi condenadas por manterem em suas vinícolas 207 trabalhadores em situação análoga à escravidão? Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Sicupira, que nada fizeram a respeito do ocultamento de R$ 40 bilhões em “créditos tributários” das contas da Americanas? André Esteves, que estimulou a queda de Dilma e interferiu na política de juros do Banco Central durante o governo Bolsonaro? Luciano Hang, suspeito de sonegação fiscal, lavagem de dinheiro e evasão de divisas? O famigerado Véio da Havan colocou logo na entrada de muitas de suas lojas uma enorme estátua da liberdade?…

A classe à qual esses indivíduos pertencem nunca pensou no desenvolvimento do país. Esse projeto não pode esperar pelo aval da burguesia; pelo contrário, ele precisa enquadrar essa classe, mostrando que, apesar de seus devaneios americanistas, ela deve prestar contas ao povo de seu país. Se uma frente nacional-popular se mostrou incapaz dessa realização, há outro caminho. Na trágica reflexão proposta pelo filme de Glauber, o protagonista e suas irritantes idiossincrasias nos tiram a atenção da militante de esquerda Sara. Ela parece, por vezes, quebrar a quarta parede, mirando direta e discretamente o público e sugerindo, de forma velada, uma alternativa. Nesse olhar, carrega as dores e a melancolia das derrotas, mas também a esperança de que um dedicado, paciente e engajado compromisso com o radicalismo seria capaz de construir uma sociedade livre, igual e democrática.