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Você tem que gozar!

Pequenos arranjos para depois da queda, Laura Andreato

No início do século XXI, um “cidadão de bem”, que a qualquer horário cruzasse a praça da República no centro de São Paulo, receberia o seguinte convite das meninas apoiadas na Igreja Matriz: “Olá, gatinho, vamos gozar?”. O apelo obsceno — mais do que uma quebra do ritual de encontro com o outro no qual controlamos nosso desejo reforçando a tensão e, portanto, aumentando a capacidade de desejar — pode ser usado como um dos referenciais da nossa atual economia libidinal: uma foda para desestressar. Para nossos insensíveis olhares tudo parece sempre ter estado lá, compondo o quadro cintilante da cidade; cinemas pornôs, clubes do sexo — que, com a falácia de proteger as prostitutas, regulam a superexploração do trabalho sexual —, casas de swings, etc., etc.

“A prostituição sempre existiu!”, dirão uns, “Ela sempre foi um negócio rentável!”, dirão outros. E, tirando o caráter a-histórico da conclusão, essa posição não é de toda errada. Entretanto, se a prostituição “sempre existiu”, a industrialização e sua relação com a indústria cultural são recentes. Quem hoje anda pela Times Square — diante de painéis eletrônicos que esbanjam roupas, carros, perfumes e modelos — nem imagina que aqueles prédios eram usados para experiências sexuais, muitas vezes perversas, que incluíam o assassinato quase diário de prostitutas. O radical impulso à pornografia se deu nessa avenida de Nova Iorque e, não por acaso, nos idos dos anos 1970, quando a forma de profissionalização do cinema do sexo, sob o influxo da assim chamada “libertação sexual”, ocorria. Paul Preciado em Pornotopia, ao pensar na criação da Playboy, busca demonstrar a encarnação de uma nova utopia erótica e popular; meu caminho é outro. Tento fazer o olhar do leitor se voltar para um novo regime repressivo da economia libidinal sob o capitalismo tardio.

Aliás, o peeping show, realizado na grande avenida novaiorquina, foi a primeira forma de flexibilização do trabalho. Com atuação sexual explícita, garotas nuas performavam cenas de sexo, cuja retribuição era dada na correlação com a parte do corpo exposta. Agora, não se tratava mais de um único cliente e o horário já não era somente o noturno. A flexibilização do trabalho foi antes a flexibilização do trabalho sexual. Um palco construído era ladeado por várias cabines fechadas, nas quais clientes, respeitáveis (ou não), depositavam dólares e observavam as poses por uma portinhola. A cada crédito se revelava um detalhe e o ápice era o orgasmo da própria atriz — ou seu fingimento — ao chegar à meta. Aí está o embrião do strip-tease virtual. A vanguarda de um mercado do gozo escópico atrelado à indústria pornográfica e à economia libidinal do olhar, depois domesticada pelos aparelhos eletrônicos — demonstra uma alteração profunda na relação entre a lei e a transgressão. Para se ter uma ideia, hoje, só nos EUA, a indústria pornográfica movimenta 2,84 bilhões de dólares e no Brasil pelo menos 22 milhões dizem consumir pornografia.1 Levando em consideração o conservadorismo do país, e o medo de se identificar, pode-se ter uma estimativa muito maior.

Mas a minha questão não é com a pornografia em escala industrial; me incluam fora dessa. Aqui se trata de outra coisa: a industrialização da pornografia desenha uma mudança radical nas formas de repressão no capitalismo tardio. Na entrada à era da eficiência e da flexibilização, marcando a racionalidade neoliberal, aquilo que orientava a lei só na aparência se perde, pois, o mestre (patrão), que ditava regras claras, é substituído por um eu, que vai impor suas próprias leis: do it yourself (faça você mesmo). Não é acidental que tais prognósticos comecem a ser elaborados por Lacan depois de 1968. A virada lacaniana, em relação ao que forja o sujeito, permite observar que a posição que organiza a subjetividade não trata apenas de uma imposição direta e coercitiva, mas nela o discurso está inscrito como realidade a animar à ação e orientar formas possíveis de gozo.

Então o que é o sujeito? É o efeito do discurso; “há uma relação primitiva entre saber e o gozo”.2 Gozo que, para ser alcançado pelo sujeito, precisa ter o seu sentido organizado pelo saber. Se o sentido do gozo é organizado pelo saber, o desejo é definido a partir do local do qual o saber emana, ou seja, da vida social. Ao se transformar a forma de reprodução social, portanto, transforma-se também a forma de desejar. É nesse ponto que, no capitalismo tardio, parece ocorrer a redução do desejo à demanda através da captura discursiva. Isso altera de maneira radical as formas de repressão e organização da estrutura libidinal. Se nos Estudos sobre a histeria,3 Freud e Josef Breuer demonstravam que a somatização histérica ocorria de maneira geral pela repressão (recalque) do desejo — o desejo voltava travestido de sintoma — agora o imperativo do gozo, demonstrado, em primeiro lugar, pela popularização da pornografia, se atrela ao supereu que se desvincula do campo do outro da castração (lei). É evidente que a castração não deixa de se realizar, mas ela é intervertida no seu contrário: castra-se a castração. Casam-se, finalmente, duas posições até então incompatíveis; a conciliação entre a necessidade do capital e a organização da demanda libidinal.

Atrelado à esfera de consumo mercadológico, o gozar se torna um imperativo e um dever do sujeito. Temos uma virada: se os sofrimentos psíquicos, até meados do século XX, se ligavam de maneira geral à repressão, agora o imperativo do gozo, atrelado à mercadoria, impõe a autorrepressão e o autocontrole na busca de realização da satisfação. Se na época fordista se traçava limites claros e regras estritas para os desempenhos individuais, agora, o mais importante é desejar a regra, internalizá-la e reproduzi-la na forma do gozo mercadológico. Evidentemente, não há satisfação completa da demanda (I can't get no satisfaction!) e, portanto, ela opera novamente o consumo. Agora não se trata mais do Outro da castração que impõe o recalque, como princípio ordenador da economia libidinal — lembremos Freud e a figura do pai autoritário —, mas de um Outro da castração que é permissivo e supostamente possibilita acesso ao objeto perdido monopolizado pela demanda. Se o gozo da demanda repõe o ciclo do consumo, isso, talvez, explique em partes como a frustração se torna a perda do desejo de desejar (I can't get no!) ou a busca acelerada por novas formas de satisfação, levando à depressão e à ansiedade milhares de pessoas. No Brasil os casos são alarmantes, na última pesquisa da USP, “o Brasil liderava com mais casos de ansiedade (63%) e depressão (59%), seguido, respectivamente, da Irlanda e dos Estados Unidos”.4

A sagaz transformação da repressão, na racionalidade neoliberal, explica-se pela forma como ela atrelou o suplemento do gozo à oferta no mercado. A produção massiva de objetos para o gozo, prometendo a completude, recoloca o processo de circulação das mercadorias e impõe a expansão do consumo. Isso subverte o paradigma da repressão cujo imperativo passa a ser: “você tem que gozar!”. A indústria pornográfica, nesse processo, foi tão somente a porta de entrada para uma nova forma de repressão muito mais sofisticada na qual quem não goza é um loser. Assim, o pai pós-fordista, ou pós-moderno, é muito mais sutil na sua repressão porque nos faz internalizar a norma sob a forma da infindável satisfação própria ao consumo. “E, aí, gatinhos e gatinhas, vamos gozar?”