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O fim do luto e o velório fast-food

Pequenos arranjos para depois da queda, Laura Andreato

Mircea Eliade, um célebre pensador das ideias religiosas — deixemos de lado sua complicada posição política — ensina-nos algo central acerca do processo de humanização: a capacidade de elaborar o devir a partir da morte. Ao que parece, hipótese confirmada por uma miríade de historiadores e antropólogos; as experiências com a sacralização da morte se inauguram paralelamente com o processo de humanização, quando a linguagem excede o meramente existente projetando uma ideia de futuro.1

Não caia da cadeira, meu hipotético-leitor iluminista, mas, ao que tudo indica, o homo faber era um homo sapiens e religiosus e os registros deixados no período paleolítico confirmam essa tese. A sepultura Teshik Tash no Uzbequistão talvez seja o exemplo mais antigo desse registro que prodigalizava o luto como um modo de constituir uma prática humanizante e, claro, revigorante diante da tristeza pela morte do outro. O luto desde então se torna fundamental para compreensão de si.

Mas, quem poderia suspeitar que a pandemia, ao encurtar os velórios devido o risco de contaminação, não seria vista como ótimo negócio?2 Quem diria que aquilo que era uma forma de prevenção aos riscos não se verteria numa prática lucrativa do mercado da morte que prevaleceria posteriormente? Se há algo que o capitalismo tardio faz, meus amigos, é transformar magicamente a desgraça em redenção. Mesmo com o fim da pandemia, a prática de velórios curtos e online segue como uma possibilidade lucrativa, afinal, “vida que segue”.

Evidentemente, não poderia aqui fazer propaganda dos múltiplos planos funerários que envolvem diversas formas de atendê-los com presteza “nesse momento tão doloroso em que perdemos nosso ente amado”. Na cartela de ótimos serviços prestados, não deixa de figurar no topo da lista os velórios virtuais, com rapidez garantida e para garantir conforto ao cliente “nesse processo tão difícil que é o da separação”.

Com a aceleração do capitalismo tardio, que organiza um tempo em que o futuro já está no presente, fica complicado manter a estrutura lenta do luto: negação, raiva, barganha, depressão e aceitação, como pensava Kubler-Ross em seu importante livro Sobre a morte e o morrer,3 é algo do passado. Perde-se muito tempo com isso! Ao encurtamento do velório, falsamente justificado pela sensação de alívio, segue-se o tamponamento via medicalização e se mantém uma anestesia produtiva que tem feito do Brasil um dos países mais legalmente drogados do mundo.4 Os impactos são tenebrosos.

Nós, as antígonas contemporâneas, diante desse horizonte inimaginavelmente desumano, somos assim convocados a hastear bandeiras, ante olhares incrédulos, com a seguinte inscrição: “só o luto muda a vida!”. Isso porque por mais dependente que seja dos diversos acidentes na vida de um indivíduo, a sensibilidade ao luto não é, por isso, menos fundamental no processo de elaboração da perda e reequilíbrio psíquico. Inerente a esse gesto reside nossa capacidade de superá-la e — ao dar sentido ao que foi — pensar no que será que será!

Se o processo de luto revigora o sujeito que emerge depois da ferida traumática da perda, a impossibilidade de enlutar-se se traduz na impossibilidade de recriar-se a partir do trauma. O sujeito, que poderia dar o passo seguinte, a partir do reconhecimento de que o que se perdeu foi também sua identidade com a morte do outro — e isso implica um renascimento de si —, ao ser impedido de ter uma relação pós-traumática acaba por melancolizar-se: gasolina na fogueira da depressão. É nesse momento que entra a indústria farmacológica. Puxa! Casamento perfeito!

Pensando bem, a obliteração do luto em escala ampliada é uma fonte lucrativa que atinge uma escala produtiva considerável na indústria da morte. O drama social que isso elabora se revela nos incríveis dados brasileiros que desnudam níveis de depressão estratosféricos — para não falar da ansiedade.5 Claro, nem tudo nesses números diz respeito à obliteração do luto, mas, sem dúvida, ela é em parte responsável por uma manutenção do sofrimento causado pela depressão.

O mais impressionante é a naturalização desse processo como se o ato sagrado do enterro nada mais significasse. Isso implica um processo de assujeitamento ao capital não imaginado sequer por Marx. Interessante como aqui se expressa minha rusga com Kurz. Não me parece existir também aqui um colapso da modernização — a menos que a entendamos como um processo meramente progressivo, o que oblitera o negativo que a constitui — o velório fast-food faz parte da logística contemporânea que financeirizou não só os momentos da vida como também da morte dos indivíduos. O velório fast-food é, afinal, modernizador.