Tilene

Pequenos arranjos para depois da queda, Laura Andreato
Na quarta-feira da semana passada foi estranho voltar ao campus. Fui convidado para falar sobre “o lugar do negro na universidade”. Nada lá está tão diferente. Um botequim ali, outro acolá. A estrada do caminho velho… a mesma, talvez mais cheia de gente. Eu é que mudei, além dos quilos a mais, ganhei expressões faciais e além disso me sinto muito confortável com a solidão — coisa que, como você bem sabia, me era insuportável. A verdade é que nunca sabemos ao certo se um luto chegou ao fim, resta sempre um excedente incômodo, algo que dá significado outro para a experiência passada e que, ao se desempoeirar nas dobras de nossa dorida memória à luz do presente, traz para perto aquilo que parecia ter repousado nas sombras. Talvez tenha sido essa a estranheza; voltar àquele espaço, ver tantos rostos jovens diferentes e indiferentes ao que ali vivemos. Não os culpo. Eu também tentei sepultar e, apesar de tudo, estou hoje exatamente onde queria estar. Mas, a memória… ah! Nossa memória!
Me senti deslocado ao pegar o elevador. Algo do qual estou acostumado, afinal; comigo me desavim, não posso estar comigo tão pouco fugir de mim. Nossos versos preferidos à sombra de Bergson no bar do Luiz. Lembrei deles. Lembrei também que do mesmo modo que ardorosamente líamos Oscar Wilde interpretávamos com afinco Solano Trindade, da mesma maneira que gozávamos com Balzac, tínhamos enorme tesão por Patativa do Assaré, fazíamos poesia com Sergio Vaz sem deixar de delirar com Maiakovski. Quase ninguém percebeu que nossa vantagem foi poder trafegar tranquilamente sobre os mundos. Nossa criolagem era nossa força. O nosso lugar; o da passagem. Sempre foi. Ao chegar na sala 210, onde ocorreria a minha palestra, estava lotada de estudantes do ensino médio e do primeiro ano de história. Eu fui escalado para ser o último da mesa a falar. Uma estudante negra e um estudante iniciaram. Durante a fala deles, citaram a dificuldade do estudante negro na universidade, trouxeram dados e ruminaram à vontade. De repente falaram sobre os estudantes negros que lá se suicidaram. Os três estudantes que lá se suicidaram. Os três!
Meus amigos viraram estatísticas. Você sabe. Não sou moralista e o ressentimento em nós sempre atuou mais para construção de laços do que para desfazê-los. Mas diante da inocente fala percebi de novo que é assim que o implacável tempo age. É assim que o absurdo aponta sempre à falta de sentido de nossas ações. Lemos Beckett juntos. Rimos com Policarpo. Atravessamos nossas feridas. Dividimos o gosto pelo teatro. Nossas marcas. Você não era estatística. Mas ninguém saberia e ninguém tinha culpa. O desconcerto era só meu e me acompanharia na volta para casa como uma sombra. “Cristilene Carneiro, Thiago Cerqueira e Luiz Carlos. Eles tinham nomes!” lembrei impotente durante a minha fala em meio aos olhares curiosos e outros sonolentos.
Remexi no baú depois. Fazia tempo que sua presença não se fazia tão viva. O esquecimento da voz de alguém que perdemos sempre me deu um profundo horror. Naquela noite no ônibus, na minha volta, porém, sua voz se fez nítida. Me arrepiei. Lembrei de você falando meu nome, pude sentir as ondas dela, quase tocá-las. Guardo até hoje o canhoto da peça “A vida de Galileu”, salvo engano, sua estreia como atriz. Lembrei de suas excelentes notas em metafísica e lógica, da sua imponderada atuação. Essa sua voz viva na minha memória me fez voltar. Revelou-me mais um traço. Me deparei com o motivo pelo qual me interessei tanto em pensar o sofrimento psíquico causado pela racialização. Afinal, os três estudantes negros que se suicidaram eram três estudantes negros. De repente tudo se iluminou, ficou nítido, entendi por fim que só foi a partir disso que definitivamente abracei Fanon, Neusa Santos e Lélia.
Uma descoberta que para um espectador distante seria algo óbvia. Entender o sofrimento causado pela racialização para mim é tentar entender um pouco essa lacuna radical que nos separou. A impotência geral que temos de mergulhar na alma alheia ou sequer entender a profundidade da nossa. Hoje eu sei um pouco mais o quanto era importante nossas discussões sobre raça, o quanto foi importante nossas reflexões sobre a identidade e suas limitações. No baú achei o certificado do primeiro ciclo de debates sobre raça, gênero e sexualidade que organizamos na universidade em 2010, já são doze anos, mas foi ontem. Nós sabíamos que, se o conhecimento de si é a possibilidade de se humanizar, não podíamos deixar que a estrutura racial nos amputasse para que nosso desejo não fosse impregnado pela tentativa de fugir de nós mesmos.
Eu ainda me lembro como você antropofagizava Brecht para fugir da identificação com o mundo branco e impor o trabalho de reconstrução de si. Sabíamos também que se a branquidão implica na formação do indivíduo racializado, também o indivíduo racializado implica na formação do indivíduo branco. Essa tensão entre esses dois mundos aparentemente distantes, mas que se implicam mutuamente, devia ser resolvida. Enquanto não era, flutuávamos com Baldwin e Laferrière. Tentávamos resolvê-la pela ação artística, pela ação política, pelas drogas e pelo sexo. E, no entanto, nada sabíamos um da alma do outro. Seja como for, meu encontro com você foi fundamental, ele me tornou o que sou. Lembrar teu nome. Ou a frase que você adorava: “Respeitar as horas conforme o brilho do sol”.
É só isso, Tilene.